Destruo o campo de batalha que foi meu lar. Escancaro as portas para que o vento possa entrar e o grito do mundo. Despedaço a janela e com as mãos sangrando rasgo as fotografias dos homens que amei. Toco fogo na minha prisão. Atiro minhas roupas ao fogo. Exumo do meu peito o relógio que era meu coração. Vou para a rua vestida em meu sangue. (Ofélia em “Hamlet-Machine”, de Heiner Muller, 1997)
Por Marilene Nunes
O extraordinário filme “2001, Uma odisséia no espaço” (1968), de Stanley Kubrick traz numa cena antológica, conforme a imaginação do cineasta, o exato momento em que o homem primitivo toma consciência da potência do seu intelecto e inaugura o processo de construção da racionalidade humana. Essa consciência revelou-se quando trouxe para junto de si um pedaço de osso de um animal e o utilizou como extensão de seu braço e ferramenta de sua labuta. Nesse instante, transcendeu a animalidade para se converter em homem. A partir de então, tornou-se peculiar ao ser humano refletir o mundo circundante e dar sentido à realidade por meio da racionalidade que lhe permite criar condições de sobrevivência por meio da produção de conhecimento, fazendo da razão o mais importante recurso de adaptação e conservação da vida humana.
O conhecimento sobre a natureza como instrumento que proporcionou a garantia da existência posicionou o homem no centro de todas as espécies animais. Esse processo não foi tranquilo, mas extremamente desarmônico e, por isso, permeado por conflitos de naturezas diversas. Embates sociais, econômicos, psicológicos e sexistas sempre fizeram parte da longa história da produção do conhecimento e da construção da racionalidade.
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as contendas originaram diversas formas de poderes e controles. Entretanto, o sexismo como discurso de poder dirigido às mulheres foi o único que não se estabeleceu sobre minorias quantitativas, mas sob a metade da humanidade por meio da subordinação sociopolítica e econômica das mulheres. A manutenção dessa condição exigiu a produção de mecanismos complexos de controle social que excluiu brutalmente as mulheres da produção do conhecimento científico e cultural.
O entendimento de como se processou esse fenômeno partiu da identificação dos mecanismos de controles institucionais criados para dominar o corpo da mulher e a que utilidade se vincularam, expondo as suas tecnologias.
Entende-se o termo sexismo como discurso que se refere ao conjunto de ações e ideias que privilegiam determinado gênero ou orientação sexual em detrimento de outro gênero. É usado com frequência de forma errônea, como sinônimo de machismo. O machismo é na verdade palavra que pertence ao mesmo campo semântico do sexismo, porém é restrito, já que é possível identificar diversas posturas e ideias sexistas que privilegiam um gênero em detrimento de outro.
Sexismo dirigido às mulheres, de maneira geral, é o termo usado como exclusão e rebaixamento do gênero feminino. Entretanto, o sexismo é uma posição que pode ser praticada tanto por homens, como por mulheres. Assim sendo, vale ressaltar que neste texto abordo o sexismo como discurso político dirigido às mulheres.
Tecnologias de controle social sob o corpo da mulher
Apesar de nos últimos 60 anos, no ocidente, tenha sido discutido o tema da dominação sexista dirigida às mulheres, foi somente no final da Segunda Guerra Mundial, período marcado pela necessidade de inserção, em larga escala, de mulheres na esfera pública, que tal situação passou a fazer parte das investigações da sociologia e da antropologia. Embora sejam importantes, tais estudos não conseguiram elucidar como se constituíram os mecanismos e as estratégias de dominação contra as mulheres. Acredito que essa lacuna teórica reside na proposição que define o poder como repressão. Paradoxalmente junto à tese da repressão há um silêncio sobre a falta de resistência das mulheres, bem como, a explicação acerca da colaboração do oprimido com o suposto opressor durante toda a formação e vigência do patriarcado.
A tese da opressão patriarcal trata-se de uma concepção ingênua, visto que a opressão nunca foi a forma essencial de nenhum poder. Isso explica a inexistência de reações violentas por parte das mulheres; a “situação de sujeição” conforme lembra Simone de Beauvoir (1988).
Em outras palavras, as relações de dominação sob as mulheres, desde a sua gênese, nas sociedades patriarcais primitivas, até a sua forma mais elaborada que se expressa no mercantilismo capitalista, criaram estratégias sutis de coerção sob as mulheres por utilitarismo econômico-mercantil, o que leva a crer que nunca existiu a dominação pela dominação instigada por suposta superioridade do homem sobre as mulheres; pelo contrário, o sexismo foi o discurso necessário que vinculou o poder aos imperativos das utilidades, a uma causa econômica que produziu por necessidade o discurso sexista.
Mediante tais fatos, a explicação de como as estratégias de poder se vincularam às utilidades econômicas, repousa no fato de que a expansão demográfica e a urbanização crescente produzidas pelo mercantilismo passaram a ensejar a necessidade de administrar o caos imposto pela nova realidade. A diferença biológica entre homens e mulheres na reprodução foi fator preponderante para definir qual gênero deveria permanecer na esfera privada e qual deveria atuar na esfera pública, no patriarcado capitalista burguês.
O Estado como o representante do coletivo social foi o lugar da produção de um saber administrativo fundamental para colocar ordem no caos social inaugurado pelo capitalismo industrial. Políticas e gestão de saneamento e de saúde públicos e a organização dos espaços urbanos foram saberes produzidos a partir da administração estatal. A arte de governar deu lugar à ciência de governar. Contudo, para governar com ciência foi preciso conhecer o corpo social. Foi desse período que surgiu a estatística, os métodos de controle da natalidade e os inquéritos acerca da densidade demográfica e da geopolítica. Também data dessa época a invenção de um fantástico mecanismo de controle social coercitivo: a vigilância sobre os comportamentos humanos.
Vigiar o corpo social foi estratégia de controle inventada a partir da gestão estatal, no sentido de controlar os processos sociais em todas as suas formas de manifestações. Pode-se afirmar que a divisão da sociedade em duas esferas, uma de natureza pública e outra privada, foi um mecanismo tecnológico de vigilância que atingiu diretamente o corpo da mulher. A divisão da vida dos indivíduos entre mundo privado e público foi a generalização máxima do mecanismo do quadriculamento dos espaços pensado por Foucault (1997).
Na tecnologia do quadriculamento dos espaços subjaz o princípio de dividir para organizar, controlar e vigiar para obter economia de poder. Essa técnica foi aplicada em espaços urbanos separando bairros por etnias e classes sociais, além da aplicabilidade em instituições sociais penitenciárias, escolas, hospitais e manicômios. Se por um lado a aplicação dessa tecnologia às organizações sociais foi fácil, por outro, sua aplicação como estratégia de dominação de gênero exigiu ardis bem mais complexos.
A eclosão populacional urbana oriunda do capitalismo industrial dos séculos XVIII e XIX facilitou a disseminação de epidemias, moléstias, ocasionando uma série de desordens sociais que impactaram no processo produtivo industrial ao prejudicar o desempenho da produtividade e do lucro. Foi preciso controlar demograficamente o meio social. Ora, o corpo que engendra é o corpo da mulher, assim tornou-se necessário construir o discurso moral e científico sobre ele. Este discurso, segundo Foucault (1997) teve como base dois estratagemas: o Dispositivo da Aliança (D.A.) e o Dispositivo da Sexualidade (D.S.).
O uso do Dispositivo da Aliança para regular as relações afetivas foi apropriado da aristocracia, porém a burguesia o utilizou em outro contexto econômico-político. Enquanto na aristocracia o D.A. teve caráter político para a perpetuação da soberania através do matrimônio por consanguinidade, na burguesia o seu uso se ateve ao controle dos nascimentos e do sexo no limite das relações matrimoniais, tendo como fundamento a monogamia heterossexual e a reprodução. É desse dispositivo que nasceu a família nuclear burguesa. A reclusão da mulher burguesa na esfera privada teve como princípio a formação e a educação dos filhos da elite, além da garantia de que a propriedade privada por herança seria dos descendentes legítimos.
O D.A. engendrou ardis profundos de dominação da mulher, cujo estratagema mais complexo foi a deserotização do seu corpo, substituindo-lhe o dispositivo da sexualidade, mecanismo que se originou dos mesmos processos políticos de medicalização do corpo social.
Ao contrário do que se pensa a medicina não nasceu privada, a gênese do saber médico se deu como consequência de uma medicina que nasceu pública e que produziu a partir dos séculos XVIII e XIX, amplo inquérito acerca do funcionamento do corpo; também servindo de base para a produção de políticas sociais públicas de controle das populações.
Dessa forma, pode-se argumentar que as estratégias de poder utilizadas pelo capitalismo industrial em relação ao sexo, não foi de repressão como pensou Herbert Marcuse (1999), em seu notável texto “Eros e a civilização”. Nunca se produziu tanto discurso sobre o sexo na modernidade capitalista desde o século XVIII. A modernidade incitou o discurso sobre a sexualidade, porém inverteu os sujeitos que detinham o poder de formular o saber sobre o mesmo. Dos libertinos, das prostitutas, dos boêmios e das pessoas pertencentes às camadas populares, foi lhes tirado o poder sobre o discurso da sexualidade, transferindo-o para os especialistas, médicos, psiquiatras, pedagogos e psicólogos. Nascia a sexualização do sexo, ou seja, a ciência da sexualidade. A sexualização do sexo deu lugar à esposa deserotizada encarnando a mulher-mãe de modo que sua sexualidade passou a repousar na reprodução.
A sociedade do contrato social instituída pela burguesia pregava o princípio da igualdade, dessa forma não foi difícil estender esses mecanismos à totalidade da sociedade. A normatização dos comportamentos instituídos a partir do contrato social para regulamentar os comportamentos sociais desenvolveu-se a partir do Direito.
O Direito com base em extenso inquérito sobre o comportamento sexual realizado pela medicina psiquiátrica legislou sobre a prática sexual, o aspecto mais privado da vida dos indivíduos, controlando os comportamentos, classificando-os, definindo o que é normal ou anormal em relação a sua prática. União entre pessoas do mesmo sexo, relações sexuais fora do casamento foram definidas como crimes que lesam o dispositivo de aliança monogâmico e heterossexual.
Na cultura oriental, conforme Foucault (1996), o sexo é segredo que não se revela, não porque deva ser reprimido, mas porque se revela como arte erótica em que o poder não se faz presente entre os parceiros. O primeiro e único fim do sexo está na experiência do desejo e do prazer, não se liga a nenhum mecanismo de controle que o veicula a alguma utilidade social, política ou econômica.
No ocidente, o sexo como arte erótica só existiu nas sociedades patriarcais ou matriarcais primitivas e na classe social proletária do início do capitalismo, porque as relações de poder entre homens e mulheres eram atenuadas, uma vez que a mulher não estava enquadrada no espaço da esfera privada.
Na classe social proletária, o controle da prática sexual não se efetivou através da repressão da sexualidade. A estratégia foi outra, a prática sexual não foi reprimida, mas sim a prática do sexo como arte erótica. Esse mecanismo resultou na normatização do comportamento sexual através do dispositivo da sexualidade sustentado basicamente no poder sobre o corpo da mulher em que a arte erótica é apresentada como destrutiva e classificada como comportamento patológico.
A cinematografia ilustrou vastamente o antagonismo ideológico do discurso sexista entre sexo como arte erótica e os dispositivos da sexualidade e da aliança e a destruição moral da mulher que o pratica. No filme de Roman Polanski, “Lua de fel” (1992), o cineasta contrapôs o comportamento sexual de dois casais. Um que pratica o sexo como arte erótica e, o outro, que se insere nos mecanismos dos dispositivos da aliança e da sexualidade, ou seja, que pratica “o sexo higiênico”, nas palavras de Oscar, a personagem do ator Peter Coyote. Num lance genial, Polanski mostrou que a destruição pela morte do casal que pratica o sexo como arte erótica decorre da incompatibilidade do amor na sociedade em que impera os dispositivos da aliança e da sexualidade. Dito de outra forma, onde predomina o poder e a manipulação sobre os corpos de homens e mulheres.
Um outro filme que se tornou um clássico sobre a questão é “Atração fatal” (1987), de Adrian Lyne, em que a temática da separação entre mundo público e privado foi simbolizada na metáfora do triângulo amoroso: marido, esposa e amante. Ali, a esposa é retratada na imagem da mulher doce e domesticada e por isso é a representação de um “outro” para o homem, ao passo que a amante é apresentada na figura da mulher solitária e que atua em condições de igualdade na esfera pública. A personagem da atriz Glenn Close, a amante, não é um “outro”, mas um igual. No imaginário psicossocial da sociedade patriarcal do capitalismo industrial a mulher não domesticada é a encarnação do mal porque é a força da natureza não domesticada, a antinomia da razão. Assim como no filme de Polanski, no de Lyne, a amante tem como destino a loucura culminando com a morte. Muitos outros cineastas trouxeram essa perturbadora temática, dentre eles: David Linch em “Veludo azul” (1986); Uli Edel em “Corpo em evidência” (1993); Lars von Trier em “O anticristo” (2009) e “Melancolia” (2011), para citar alguns famosos.
Todas as mulheres antinômicas da razão, na verdade encarnam o mito de Ofélia, a noiva louca e suicida de “Hamlet” de Shakespeare (1997), que mergulhou para a morte num rio cristalino de águas correntes, carregando a culpa que não era sua.
O feminismo e a política de reforço ao sexismo
São vastos os estudos historiográficos (COLLEMAN, 1946), (BECKER,1977), (FRANCO JUNIOR, 1996) e (SCHOLZ, 1996) que mostram que o patriarcado somente exerceu domínio, de fato, sobre as mulheres, quando efetivou a separação entre mundo público e privado ao mesmo tempo em que expandiu o Estado Moderno, não só como função política, como a do Estado Monárquico que o antecedeu, mas também e, principalmente, com a incumbência de gestão econômica. Manter as mulheres no espaço privado foi útil ao capitalismo industrial nascente, que tinha como característica a economia de baixa produtividade. No caso das mulheres burguesas, como já foi dito anteriormente, a confinação na esfera privada garantiu a formação da elite e o direito de herança, ao passo que nas classes populares o confinamento tinha a função de assegurar a reprodução e formação da força de trabalho das futuras gerações proletárias, através do trabalho doméstico não assalariado. Confiná-las no espaço da esfera privada resultou em ampla economia para o capital.
Nesse contexto, a família burguesa culminou como a célula institucional que melhor desempenhou essa função. O amor deserotizado entre os cônjuges sublimado e canalizado para a criação dos filhos e o trabalho, passou a representar a economia de afeto imposto pelo padrão racional patriarcal do período mercantilista aos relacionamentos. Num modelo social tão conflituoso o erotismo recalcado num círculo neurótico passou a manter a sociedade em aparente equilíbrio.
Quando Freud (1997) detectou nas suas pacientes Ana O. e Emmy Von N. os polêmicos comportamentos histéricos-neuróticos através da sua inovadora terapia psicanalítica, descobriu que os sintomas denunciam os primeiros sinais da somatização decorrente do controle do sexo pela deserotização do corpo das mulheres. E não espanta o fato de terem sido as mulheres as primeiras a manifestarem os sinais da patologia, porque a deserotização das mulheres equivale a destruição da sua identidade de gênero.
O capitalismo é um modo de produção dinâmico; após o término da segunda guerra mundial foram injetados vultosos recursos na produção e na criação de infraestruturas, num esforço de reconstrução dos países ocidentais no pós-guerra. Essas políticas econômicas impactaram nas indústrias promovendo longos ciclos de produtividade, fenômeno que teve como consequência a integração tecnológica entre as empresas que levou à assimilação de todos os mercados, alterando profundamente o estatuto da propriedade privada pela globalização econômica. A consequência foi o desaparecimento da burguesia enquanto classe: sem revolução, muitos se integraram à nova classe capitalista, à classe social dos gestores.
Distinta da classe burguesa, os gestores não detêm a posse privada dos meios de produção, o conhecimento, o capital intelectual necessário à gestão das condições gerais de produção cujo campo prático são as infraestruturas, essenciais para a existência do capitalismo globalizado. O conhecimento da gestão das infraestruturas é o pré-requisito fundamental para o exercício da prática da gestão, não importando o gênero de quem o exerce, se homem ou mulher.
Embora a prática social dos gestores existisse desde os primórdios do capitalismo, sua existência como classe social emergiu somente a partir dos anos 50 do século passado, consolidando-se como classe social a partir dos anos 80. Da sua prática surgiu a cultura conhecida como “Yuppie”: derivação da sigla “YUP”, expressão inglesa que significa “Young Urban Professional”, ou seja, “Jovem Profissional Urbano”. A cultura yuppie passou a reinventar os relacionamentos amorosos, bem como, instituiu como modelo familiar as famílias polinucleares formadas por filhos de vários casamentos; pregou a valoração da carreira profissional para as mulheres e a assimetria de poder entre gênero.
Nada a ver com o bordão “paz e amor” da geração hippie, para os yuppies, competência, conhecimento, mérito e profissionalismo eram valores enaltecidos. A primeira crítica à cultura yuppie foi formulada pelo sociólogo Richard Sennet (2004) no livro “A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo”.
Mediante tais fatos, um ponto histórico importante e que deve ser destacado é: os gestores implodiram com a definição tradicional de propriedade privada, tirando a importância da sucessão por herança das grandes fortunas burguesas da qual a certeza da paternidade era fator preponderante. Ademais, a morte da burguesia enquanto classe dominante, bem como, a alteração do conceito de propriedade privada para o de sociedade anônima destruiu os dois dispositivos fundamentais que alimentavam o sexismo enquanto discurso e prática de controle social que pressupunha a confinação das mulheres na esfera privada: os Dispositivos da Aliança (D.A) e o da sexualidade (D.S), anteriormente comentados.
Portanto, foi o próprio capitalismo ocidental que destruiu o sexismo enquanto discurso e prática, na medida em que recuperou as lutas políticas dos trabalhadores, na sua esmagadora maioria organizada por homens, via sindicatos.
Em respostas às reivindicações sindicais pela redução da jornada e melhoria das condições de trabalho, o capital implementou na produção, tecnologias sofisticadas e políticas econômicas sob o comando da classe social dos gestores que alterou profundamente a cultura ocidental em relação à igualdade de gênero. Esse evento libertou as mulheres das classes populares para serem assalariadas, processo facilitado pela inventividade da indústria do setor de eletrodomésticos, cujos produtos reduziram enormemente as horas trabalhadas em casa. Além disso, o capitalismo passou a ampliar as condições gerais de produção importantes à reprodução da força de trabalho através da criação e expansão dos sistemas de educação com escolas de tempo integral e creches.
As mulheres somente se organizaram como grupo político mais de 20 séculos depois do surgimento e vigência do patriarcado no ocidente, vanguardeadas pelos movimentos sociais de esquerda a partir dos anos 60 do século passado. A esquerda se apropriou de todos os movimentos políticos de minorias usando-os como força política. Para alinhar a militância ao cabresto das vanguardas foi preciso criar o discurso de ódio numa relação que expressasse uma dualidade de oposição em que o lado pertencente à minoria seria o bem e a maioria o mal opressor, que deveria ser destruído, num discurso quase de dogma religioso e fundamentalista.
Durante a organização política das mulheres, a esquerda inventou o feminismo, recuperou o discurso sexista vigente no patriarcado do período do capitalismo mercantilista e por analogia, no lugar da figura do explorador capitalista, substituiu-lhe o termo opressor de modo que todos os homens passaram a ser incluídos na pecha de opressores. Foi assim que a luta de classes deu lugar à guerra dos sexos. A esquerda criou o fenômeno social e depois o investigou.
Todavia, é interessante ressaltar que o termo “sexismo” passou a ser substituído por “machismo”, palavra com semântica mais restrita de significante, uma vez que o machismo proclama a superioridade do homem, enquanto que o sexismo pode ser dirigido tanto para gênero masculino, como feminino. Esvaziado do seu conteúdo semântico o termo “machismo” passou a ser criticado. Sua base na “cultura do machismo” só serviu para chacota dos homens.
Assim sendo, um dos aspectos mais curiosos do discurso feminista atual é a reivindicação do retorno ao Dispositivo da Sexualidade (D.S.). Ou seja, ao criticar a objetificação do corpo das mulheres pela “cultura machista”, as feministas reivindicam a castração das mulheres. Objetificar-se é um jogo erótico e faz parte do processo da sedução amorosa. Mulher que não se objetifica nesse processo lúdico obviamente não goza.
Em outras palavras, pode-se dizer que o discurso feminista ocidental é um discurso extemporâneo, porque a base institucional que sustentou o patriarcado burguês no ocidente ruiu por conta do próprio capitalismo.
Creio que a grande questão que este texto suscita é: Seria possível formular um novo feminismo? Tema para um próximo artigo.
Até mais leitores!
Referências
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BECKER, G. Zum Kulturellen bild zur realen situation der frau in mittelalter und in frühen neu zeit. In: BECKER, BOVENSCHEN & BRACKERT. Au zeit der verzweiflung. Frankfurt/Main, 1977.
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__________. Vigiar e punir. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 1998.
__________. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1998.
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SCHOLZ, R. A socialização pelo valor e a relação entre os sexos. Novos Estudos CEBRAP, n.45, p. 15-36, 1996.
SHAKESPEARE, W. Hamlet. Editora Null, 1997.
Marilene Nunes é Doutora em Gestão e Políticas Públicas (USP), Mestre em Economia Política da Educação (UFRGS), Especialista em Gestão do Conhecimento (FGV), Graduada em Pedagogia (UFRGS). Especialista do Conselho Estadual de Educação (CEE – SP). Docente em Programas de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) no Brasil e no exterior. Articulista do Portal Ambiente Legal.
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Bom li o artigo! Muito bom. Minha opinião é que a nova formulação é seguindo a valorização da mulher como um ser humano e não um objeto, ou pedaço carne que pode ser usado e abusado em detrimento de outro ser! É a conscientização da mulher, da sua necessidade e importância em tdo setores da vida humana!