Por Werner Grau Neto*
Filó certamente não estaria por aqui se Agenor não a tivesse acolhido. Agenor é igual a mim, a você. Mas não vive como vivo eu, como vive você. Agenor é um ribeirinho, um dos múltiplos indivíduos que integram a categoria dos povos da floresta.
O Ibama, ente da Administração Pública ao qual a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, entre outras, atribuiu função essencial à busca — estabelecida pela Constituição — pela sustentabilidade, tem entre suas atribuições a de zelar pelo bem-estar animal.
Ocorre que ao Ibama, assim como se verifica com muitas, senão todas as instituições públicas, faltam recursos para o básico. Não por outra razão, a ADPF 640 foi proposta, por partidos políticos, para que se vedasse ao Estado dar, como destino a animais apreendidos porque sob maus-tratos, a eutanásia. A contradição, gritante, revoltou todos aqueles que militam pela causa animal, este que rabisca estas mal traçadas linhas incluso.
A conduta, atestada por Parecer da AGU, que foi derrubada — felizmente — pelo STF, revelava a negação daquilo que é origem, base de tudo: entendo — e ensino aos meus alunos — que a norma fundamental a que se referia Kelsen não é mais do que a bipartida base da vida que faz sentido: o valor vida, e o valor dignidade. Sem esses dois elementos, serve para nada o ordenamento. Mais do que princípios, normas, regras, esses valores informam a existência do ordenamento.
E esses dois valores excederiam o bicho-humano para abranger também os bichos não-humanos, conceituação que, em si, é já esquizofrênica — o humano não é mais do que os outros.
Pois bem. A AGU recomendava salvar para matar por uma razão: não há orçamento, não há condição adequada a ofertar dignidade àqueles não-humanos que, submetidos à estupidez humana, revelada em forma de crueldade — vedada pela Constituição no artigo 225, § 1º, VII — pura, são apreendidos pelo Estado. O Estado, que deles deveria cuidar e por eles e sua vida e dignidade deveria zelar, a eles negava a vida, submetendo-os à eutanásia, por falta de recursos.
Um ponto, pois, dispensa demonstração, não admite debate, revela-se claro: o Estado brasileiro, por meio de manifestação expressa da AGU, pretendia — e só não o fez porque o STF declarou ofensivo a preceito fundamental — dar cabo da vida de animais não-humanos apreendidos, aí incluídos os apreendidos sob maus-tratos, por falta de recursos materiais a mantê-los de forma digna.
Volte-se à Filó.
Filó nasceu na floresta. Filó sobreviveu graças ao suporte que lhe proveu Agenor. E Filó, ponto fundamental, foi mantida em seu habitat. Filó não foi submetida a um processo de “domesticação” típico, pelo qual o animal não-humano é retirado de seu habitat e chamado a adaptar-se a habitat, a espaço outro. Filó não foi encarcerada, como são as aves e pássaros, nem tampouco levada ao espaço urbano para circular contida por uma coleira.
Ao contrário. Filó foi cuidada, porque sem cuidados não sobreviveria, por um humano que, por razões que dispensam explicação, convive com a floresta, com o meio ambiente, e com os animais não-humanos, de forma imensamente diversa daquela que nós, os humanos da “selva de pedra”, podemos imaginar.
Mas Filó ganhou as redes sociais, esse elo de ligação entre todos os humanos, estejam em seus apartamentos com temperatura regulada por aparelhos de ar condicionado, estejam nos mais distantes e ermos espaços dessa nossa terra abençoada pela diversidade.
E nesses tempos sombrios em que tudo se divide entre o sempre certo e o sempre errado, em que se vive de imagem, de casos emblemáticos que já não servem de lição a nada diante de tanta impunidade, resolveram, aqueles que respondem pelo Ibama, agir como se retirar a Filó da floresta, e colocá-la em um cativeiro ao qual faltam recursos básicos, servisse de lição a toda uma sociedade.
Nada mais longe da realidade.
A uma, Filó não era mantida em cativeiro. Porque Agenor é que vive na floresta, espaço natural para Filó viver, não havia ali algo, algum animal ou alguém “fora de lugar”. A premissa primeira do bem-estar animal, que é estar no meio em que deve viver, revela-se clara, evidente.
A duas, Filó não era privada das atividades e modos de vida naturais a uma capivara. Filó apenas e tão somente decidiu — porque livre, poderia decidir de forma diametralmente oposta, se assim quisesse — manter-se próxima do espaço e animais outros — sim, ela nos vê apenas e tão somente como outros animais — que lhe provêm comida, liberdade e espaço.
A três, dessa convivência não resultou ofensa aos comportamentos básicos de Filó, que de diferente de seus pares, as capivaras outras, tem apenas a proximidade com os animais-humanos. Proximidade, diga-se, que não difere daquela que têm com você, comigo, moradores de São Paulo que trafegam, diariamente, pelas avenidas marginais do rio Pinheiros e do rio Tietê. Mas essas, essas não recebem atenção.
Em síntese, Filó somente está viva, bem e feliz, porque Agenor a salvou sem aprisioná-la. Agenor, ao melhor estilo Saint-Exupéry, aceitou o fato de ser responsável por aquele a quem cativou, sem fazer disso razão para transformar-se em um escravizador de outra vida.
Agenor, um guardião da floresta.
Agenor, em realidade, está longe de ser um transgressor. Ao contrário, constitui de forma plena e absoluta a figura do protetor da floresta a que a Convenção sobre a Diversidade Biológica atribuiu o direito ao recebimento de parte dos benefícios obtidos da exploração dos recursos biodiversos e do conhecimento tradicional cuja manutenção e perpetuação somente ocorrem porque estão lá, vivendo da e pela floresta, os Agenores da vida.
Não existe pretensão à conservação florestal se não compreendermos que os Agenores vivem dessa forma, em comunhão e em harmonia com a floresta. Não existe preservação de conhecimento tradicional que salva milhões de vidas quando encapsulado sem a cultura dos Agenores da vida. E não existe o sonho de manutenção da floresta, acalentado por aqueles que vivem — sim, nós! — do resultado da destruição da floresta, sem os Agenores da vida.
Por isso é que, na condição de cidadão que escreve este texto aqui no coração do “mundo” urbano, entre paredes de concreto que sustentam um edifício localizado onde um dia foi uma floresta, agradeço ao Agenor por salvar e cuidar não só da Filó, mas de uma miríade de bens e cultura que eu jamais acessarei. E por isso que, ao Ibama, se me coubesse algo dizer, sugeriria primeiro estruturar — e se eu soubesse, diria o caminho para isso — os Cetas e Cras de forma adequada, para depois, de forma mais racional e adequada, escolher entre “salvar” a Filó de sua vida natural ou salvar os animais não-humanos que têm a triste realidade de viver sob cativeiro, sem poder manter seus hábitos e forma de vida, e sob o jugo de pessoas cruéis.
Nós precisamos é debater como remunerar o Agenor e os demais ribeirinhos da comunidade em que ele vive como forma de retribuição por cuidarem, tão bem, da floresta em que habitam.
*Werner Grau Neto é advogado e professor. Especialista em Direito Ambiental, mestre em Direito Internacional e doutor em Direito Tributário pela USP. Ativista da proteção animal.
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 03/05/2023
Edição: Ana Alves Alencar
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