“Gestão processual” do STF filtra o acesso à justiça
Por Susana Henriques da Costa
O acesso à justiça é um direito fundamental no Brasil, já que a Constituição Federal prevê a possibilidade de todo indivíduo ingressar no Poder Judiciário para a resolução de seus conflitos (art. 5º. XXXV). Por uma interpretação literal garantidora do texto constitucional, a previsão de filtros de qualquer natureza (p. Ex. Mediação e conciliação e exigência prévia de processos administrativos) por muito tempo foi vista com desconfiança. Havia a crença implícita na superioridade e na legitimidade exclusiva do Poder Judiciário para a solução de controvérsias e obstáculos, ainda que não excludentes da apreciação jurisdicional, eram tidos por inadmissíveis.
O dado que parece começar a por em xeque a lógica monopolista do acesso à justiça é a situação atual do sistema de justiça. Dados do CNJ de 2012 apontam para um aumento crescente da litigância no Brasil. O esforço do Judiciário em aumentar a produtividade dos seus juízes não tem conseguido acompanhar a proporção de novos casos e a situação se agrava ano a ano. Não é exagerado prever que em breve se chegue ao montante de 100 milhões de processos no Judiciário brasileiro. Em 2012, 40% desses processos eram execuções fiscais, ou seja, processos em que o Poder Público cobra suas dívidas, especialmente, as tributárias.
O que também se constata pelos dados do CNJ é que os processos brasileiros têm personagens repetidos. A lista dos 100 maiores litigantes, até março de 2010, indicava que o Poder Público, em suas três esferas (Federal, Estadual e Municipal), os bancos e as empresas de telefonia eram os que mais acionavam e eram acionados judicialmente. Dentro dessa mesma lista dos 100 maiores litigantes, o INSS, maior litigante do Brasil, estava presente em um terço dos processos.
Nesse contexto, o desafio do Poder Judiciário é gerir seu acervo. A perspectiva de gestão processual está cada vez mais evidente no discurso do CNJ, como se pode perceber na fundamentação da sua Resolução 125, em 2010, que instituiu a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário. A Resolução criou os setores de mediação e conciliação judicial e legitimou a existência de filtros internos no Judiciário. Começava a haver a atenuação da ideia de que acesso à justiça significava acesso ao Poder Judiciário.
De fato, é mais correto pensar em acesso à justiça a partir da existência de múltiplos mecanismos que forneçam uma variedade de respostas aos conflitos sociais. O problema é que associar uma lógica que visa a aumentar a qualidade da justiça pela busca da adequação entre conflitos e seus mecanismos de solução a uma lógica de gestão de milhões de processos judiciais gera distorções e incompatibilidades. Nesse sentido, os mecanismos judiciais consensuais de solução de conflitos (mediação e conciliação) podem ser filtros que ampliem o acesso à justiça, quando utilizados para a resolução dos conflitos para os quais eles sejam adequados; porém, poder também significar violação do acesso à justiça, se forem utilizados unicamente forma de desafogar o Judiciário de seus processos, sem ter por base qualquer raciocínio de adequação. Neste último caso, os mecanismos consensuais não seriam filtros, mas sim obstáculos criados por necessidades gerenciais do sistema de justiça.
Não somente no CNJ há uma mudança de visão em prol da admissão de filtros ao acesso à justiça por questões, dentre outras, de gestão. A recente decisão do Supremo Tribunal Federal no recurso extraordinário n. 631.240 renovou o debate sobre a necessidade de requerimento prévio administrativo perante o INSS para o ajuizamento de demandas judiciais voltadas à concessão de benefícios previdenciários. Ao final, prevaleceu o voto do relator Min. Luís Roberto Barroso, alterando entendimento anterior da Corte, no sentido de que é necessário o acionamento prévio do órgão administrativo para configuração do conflito de interesses que justifique a atuação do Poder Judiciário. A exceção é para os casos de revisão de benefícios e para os casos em que o posicionamento do INSS, contrário o interesse do segurado, seja notório.
Se é fácil reconhecer uma racionalidade na decisão do STF, na medida em que sem o conflito caracterizado pela resistência do INSS não haveria interesse na prestação jurisdicional, não há como desvincular a mudança de entendimento da Corte da crise de gestão processual que vive o Poder Judiciário. Essa motivação é explicitamente citada pelo relator que trouxe dados sobre a dimensão do INSS no sistema de justiça brasileiro. Segundo o Min. Barroso, o INSS, em 2012, era parte em 34% dos processos na Justiça Federal de primeiro grau e em 79% dos processos dos juizados especiais federais. A preocupação também aparece na fixação pelo STF de normas de transição para novo posicionamento, determinando, p. Ex., que, nas demandas em que ainda não tenha havido contestação, deve haver o sobrestamento do feito para requerimento administrativo que deve ser respondido pelo INSS em 90 dias. Segundo o relator, essas regras são necessárias tendo em vista os milhares de processos sobrestados, aguardando o julgamento do recurso extraordinário com repercussão geral. Portanto, a regra de transição é, também, regra de gestão.
Como visto, o INSS é o maior litigante da Justiça brasileira e a exigência de requerimento prévio representa a admissibilidade de um filtro administrativo ao acesso à justiça. Revê-se o antigo entendimento garantidor de acesso em favor de um novo entendimento que busca aperfeiçoar a gestão processual, restringindo a apreciação pelo Poder Judiciário dos casos em que ela seja efetivamente necessária.
Há duas questões importantes que o novo posicionamento do STF levanta. A primeira delas é saber se, em um país como o Brasil, de dimensões continentais, em que há imensos óbices de informação e custo à população, em especial aquela que demanda a concessão de benefícios previdenciários, a criação de um obstáculo administrativo extra não representará a negação prática da fruição ao direito. Não foi por outro motivo que por anos o próprio STF tratou a exigência de prévio requerimento administrativo como violadora do acesso à justiça.
A segunda questão diz respeito à coerência de posicionamento da Corte. Como visto acima, se o INSS é o maior litigante da Justiça brasileira, a espécie de processo de maior incidência é a execução fiscal. No julgamento do RE 568.657-4, em 2007, envolvendo a necessidade de cobrança amigável prévia ao ajuizamento de execuções fiscais municipais, o STF não reconheceu repercussão geral. Isso significa que a Corte, em acórdão relatado pela Ministra Carmen Lúcia, entendeu que não havia relevância suficiente na questão a justificar o julgamento pelo STF.
A exigência de cobrança amigável em execução fiscal, em que o Poder Público é autor, traz para discussão exatamente os mesmos argumentos da necessidade de requerimento administrativo prévio em processos envolvendo a concessão de benefícios previdenciários, em que o Poder Público é réu. Tudo gira em torno da legitimidade da criação de filtros que condicionem o acesso ao Poder Judiciário à resistência da parte contrária. Vale lembrar que a execução fiscal é fundada em título executivo extrajudicial elaborado unilateralmente pelo Poder Público, sem a participação do devedor. Uma pesquisa do Ipea de 2011 sobre execuções ficais federais mediu um índice de quase 34% de execuções extintas por pagamento, percentual que sobe para 45%, em caos em que houve citação pessoal. Do total de demandas extintas por pagamento, 36,3% se extinguem pela adesão e cumprimento de programas administrativos de parcelamento do débito. O alto índice de pagamento administrativo, depois da propositura da demanda, põe em xeque a efetiva existência de conflito de interesses nas execuções fiscais, da mesma forma como apontado nas ações de concessão de benefícios contra o INSS, pela recente decisão do STF. Há ainda, a mesma dimensão quantitativa impactante no cenário de crise do Judiciário, na medida em que 40% dos processos em curso no Brasil, em 2012, eram execuções fiscais. Resta agora saber se o posicionamento da Corte será revisto também nas execuções fiscais ou se o acesso à justiça no direito brasileiro terá tratamento diferenciado, a depender da posição que o Poder Público ocupe no processo. Gestão processual não deve significar vantagem ao grande litigante.
Susana Henriques da Costa – Professora Doutora da Faculdade de Direito da USP, Professora da FGV DIREITO SP, Promotora de Justiça do Estado de São Paulo (afastada para ocupar o cargo de Secretária Adjunta de Segurança Urbana do Município de São Paulo).
Obs – Artigo publicado no Site JusBrasil