Por Elias Miler da Silva*
Nesse momento de discussão e votação no Supremo Tribunal Federal das ações diretas de inconstitucionalidade 4.901, 4.902, 4.903 e 4.937 e da Ação Declaratória de Constitucionalidade 42, todas tendo como objeto o questionamento de vários dispositivos do novo Código Florestal (Lei 12.651/2012) — que dispõe sobre a proteção da vegetação nativa —, chegamos a um ponto extremamente perigoso para o futuro do Brasil. Por desconhecimento do funcionamento e da importância dos aterros sanitários, o STF caminha para tomar uma decisão absolutamente equivocada, que pode significar um grande retrocesso para esse serviço público essencial, afetando a saúde da população e o meio ambiente.
Não entender a gestão de resíduos como de “interesse social” e “utilidade pública” é o mesmo que aniquilar a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), Lei 12.305/2010, que estabelece princípios, objetivos, instrumentos e diretrizes para a gestão e gerenciamento do lixo, as responsabilidades dos geradores, do poder público e dos consumidores, bem como os instrumentos econômicos aplicáveis à situação.
A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu artigo 225, parágrafo 3º, que: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
Justamente para cumprir o mandamento constitucional, o governo federal aprovou o PNRS e também por esse motivo é urgente que o STF entenda a importância de se desenvolver novos aterros sanitários no país. Para, enfim, acabar com os quase 3 mil lixões existentes no país que poluem rios, mares e solos.
É claro que só haverá utilização de áreas de preservação permanente (APPs) no que tange aos resíduos sólidos, se tal medida for ambientalmente adequada e não houver outra alternativa viável na região onde há a demanda pelo serviço. A retirada de sua previsão como serviços de utilidade pública, com o consequente impedimento de uso dessas APPs, é descabido, uma vez que já existe uma lei federal que regulamenta a atividade e sua atuação ambiental, visto que a exclusão dessa previsão de gestão de resíduos na utilidade pública poderá ocasionar danos irreversíveis ao meio ambiente e à saúde pública.
Corroborando para o dito acima, de que já há regulamentação da matéria ambiental quando se trata de gestão de resíduos, tem-se, ainda, o artigo 3º da lei que instituiu o PNRS. Ele estabelece que a gestão integrada dos resíduos sólidos é um conjunto de ações voltadas para a busca de soluções para o lixo, considerando as dimensões ambientais, com controle social e sob a premissa do desenvolvimento sustentável.
Hoje, no Brasil, a melhor forma (e única economicamente viável) de gestão desses detritos é através dos aterros sanitários, que consistem em um espaço destinado à deposição final de resíduos sólidos gerados pela atividade humana: residências, indústrias, hospitais, construções. O solo do local onde será despejado o resíduo deve ser impermeabilizado e são implantadas canaletas para coleta do chorume que será enviado para uma estação de tratamento de esgoto (ETE). Também é feito o monitoramento do lençol freático e das emissões atmosféricas, podendo haver a captação dos gases gerados no aterro para geração de energia.
A gestão de resíduos através dos aterros sanitários proporciona não só a adequada disposição dos rejeitos, preservando a saúde da população, mas também a preservação do meio ambiente, uma vez operado dentro dos parâmetros estabelecidos.
Resta, portanto, necessário o esclarecimento de que a ressalva prevista no artigo 8º, da Lei 12.651/12, no sentido de que a intervenção ou a supressão de vegetação nativa em APP somente ocorrerá nas hipóteses de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental previsto nesta lei, e que nos termos do artigo 3º, VIII, b, da lei entende-se por utilidade pública as obras de infraestrutura destinadas às concessões e aos serviços públicos. Gestão de resíduos nada mais é do que uma previsão que viabiliza a prestação de um serviço público de fundamental importância para o cumprimento do artigo 225 da CF/88, pois com o devido tratamento de resíduos se estará possibilitando o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem como dará cumprimento ao artigo 6º da CF/88, porquanto, com a gestão correta se estará propiciando o direito à saúde da população.
Assim, se mantido o entendimento já expresso na maioria dos votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal de que a gestão de resíduos não é de utilidade pública e, consequentemente, proibindo a atuação dessa gestão nas APPs, haverá prejuízo para toda a sociedade e para o meio ambiente. Isso porque não se terá local adequado para a destinação final ambientalmente adequada dos resíduos, inviabilizando-se a prestação desse serviço público essencial e de utilidade pública, e consequentemente aumentando-se os números de lixões, que são ilegais e poluem sobremaneira o meio ambiente.
Vale trazer que a doutrina, principalmente Ildefonso Mascarenhas da Silva, Cunha Gonçalves, Caieiro da Mata e Sabatini, sustenta que o conceito de utilidade pública deve ser considerado extensivo a tudo o que representa satisfação para a coletividade. Ou seja, tudo o que vem a ser necessidade e proveito da coletividade. Todas as obras, empreendimentos e serviços que possam contribuir para a segurança, o bem-estar material, moral e intelectual da sociedade. Por isso, o seu conceito não é rígido nem mesmo limitado; ao contrário, é flexível e largo.
Pode-se entender, ainda, por serviço de utilidade pública aquele em que a administração, reconhecendo sua conveniência aos membros da coletividade, presta-os diretamente ou aquiesce em que sejam prestados por terceiros (concessionários, permissionários ou autorizatários), nas condições regulamentadas e sob seu controle.
Consequentemente, esse conceito contém relação direta com os serviços essenciais, visto que os serviços considerados como tais são todos de utilidade pública. Por determinação legal, tem-se que a coleta de lixo e a limpeza dos logradouros públicos são classificados como serviços públicos essenciais e necessários para a sobrevivência do grupo social e do próprio Estado, porque visam a atender as necessidades inadiáveis da comunidade, conforme estabelecem os artigos 10 e 11 da Lei 7.783/89.
Por tais razões, os serviços públicos dessa natureza são regidos pelo princípio da continuidade. Logo, por a coleta e gestão de resíduos constituírem serviços essenciais, são imprescindíveis à manutenção da saúde pública, o que os torna submissos à regra da continuidade. Não podendo, inclusive, sofrer interrupção, por serem considerados justamente serviços públicos de natureza essencial aos indivíduos e à coletividade. Conclui-se, portanto, que, como o serviço de gestão de resíduos é um serviço de utilidade pública, não cabe a sua retirada do rol previsto na Lei 12.651/12.
Ante a todo o exposto, nota-se que a manutenção de gestão de resíduos como sendo serviços de utilidade pública, conforme previsto no artigo 3º, inciso VIII, alínea “b”, da Lei 12.651/12, é medida que se impõe, visto que para todos os demais efeitos já é considerado como tal. Sendo, inclusive, regulado como serviço essencial e tendo que ser operado não somente com respeito a todos os parâmetros de preservação do meio ambiente, mas como medida necessária para preservá-lo, além de garantidora da saúde pública. É, portanto, notória a sua constitucionalidade, sob pena de um retrocesso que gerará, por consequência, violação a direitos previstos na Constituição Federal.
*Elias Miler da Silva é advogado, doutor, mestre e professor de Direito Administrativo do Centro de Formação da Câmara dos Deputados.
Fonte: Conjur