Iniciativas no Rio de Janeiro promovem instalação de equipamentos que transformam dejetos em biogás e biofertilizantes: o meio ambiente agradece.
Por Luiza Souto*
Se depender do envolvimento dos governos em alternativas sustentáveis para a destinação dos resíduos sólidos domiciliares e de limpeza urbana, o Brasil terá muita dificuldade para atingir o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 6 da ONU (Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas e todos) até 2030, como reforça recente estudo de pesquisadores da PUC/Campinas, publicado no Journal of Urban Technology and Sustainability. O fim dos lixões no Brasil era previsto, inicialmente, para 2014, mas ainda há quase três mil em funcionamento. E apenas 2,2% dos resíduos sólidos urbanos são reciclados no país.
Sem esperar por ações do poder público, ativistas e moradores de comunidades estão criando sua própria solução para dar fim correto aos resíduos que produzem lançando mão de biodigestores, equipamentos que transformam dejetos em biogás e biofertilizante. No Rio de Janeiro, Josefa Maria da Conceição Santos, 69 anos, moradora da Pedra do Sapo, no Complexo do Alemão, na Zona Norte, construiu um reservatório sozinha, no quintal de casa, mesmo espaço onde também produz sabão a partir de óleo de cozinha descartado pelos moradores.
Atuante há 10 anos na Verdejar Socioambiental – grupo formado na zona norte carioca que trabalha na preservação e recuperação do meio ambiente–, Josefa buscou vídeos na internet sobre as funcionalidades de um biodigestor. E não sossegou enquanto não produzisse um. Construiu um equipamento pequeno e começou a alimentar com esterco de cavalo. “Eu fiquei maluca, porque não imaginava que aquilo que você mais quer se livrar te gera o gás”, diz, empolgada, referindo-se ao lixo.
Depois, ela fez cursos de reciclagem, mostrou o equipamento para ativistas que deram aula sobre o biodigestor na comunidade, e com ajuda do próprio Verdejar e da ONG AS-PTA (Agricultura Familiar e Agroecologia) realizou os primeiros testes do aparelho, no ano passado. Josefa acabou ganhando um biodigestor e agora ela quer ligar o equipamento à sua casa para não precisar mais comprar botijão de gás. E pretende levar uma oficina para ensinar aos vizinhos da comunidade a fazer o mesmo. “É tanta gente sem dinheiro para um botijão que quero ajudar”, afirma a moradora da Pedra do Sapo, que também ensina a vizinhança a separar o lixo e reunir para reciclagem.
O biodigestor consiste em um reservatório sem oxigênio, por onde entra matéria orgânica de produção vegetal, animal ou de atividades humanas, além de resíduos industriais. Em 90 dias, a decomposição desse material no calor vai gerar biogás, uma mistura de gás metano e o dióxido de carbono. Os restos dessa decomposição também servem como biofertilizante, que não agride o meio ambiente.
Outras iniciativas estão espalhadas pela cidade. Na comunidade do Vale Encantado, no Alto da Boa Vista, apesar de a primeira casa, das 28 existentes, ter sido construída em 1900, o poder público nunca chegou ali com soluções para tratamento dos resíduos. Mas uma ONG, sim. Em 2014, a Solar Cities — organização americana criada para desenvolver soluções com biogás — doou um biodigestor para a comunidade. O reservatório recebe restos de comida do restaurante da cooperativa instalada no local, e é usado no próprio estabelecimento.
Otávio Barros, presidente da associação de moradores e da Cooperativa do Vale Encantado, explica que com os resíduos jogados ali, é gerado o equivalente a um botijão de gás por mês, além de biofertilizantes. A comunidade conseguiu ainda investimento para a construção de um segundo biodigestor, para tratamento do esgoto, despejado na Lagoa de Marapendi.
Inicialmente cinco casas foram ligadas a ele, em 2021. Mas Otávio explica que quando conectaram todas as outras residências, o reservatório não mais funcionou. Acredita ele que devido à grande quantidade de produtos químicos misturados na água. “Estamos tentando recursos para resolver isso e também fazer uma cozinha industrial, para gerar mais gás e consequentemente aumentar a renda das famílias”, explica o líder comunitário.
Focado em promover acesso à água para a periferia e assentamentos rurais, onde normalmente se usa água de poço, o geólogo Cássio de Almeida Pires explica que a presença de produtos como sabões e detergentes podem mesmo prejudicar a eficiência do tratamento da água no biodigestor.
Através da Geohídrica, ele tenta impedir a contaminação do solo por água de esgoto jogando esse resíduo no equipamento, que por conseguinte se transforma em outro tipo de matéria como metano. “A gente pode pensar o biodigestor como uma simples maneira de reciclar um material orgânico, derivado de dejetos humanos, como para geração de energia”, ele explica.
Reservatório pode ser feito em 15 minutos
A Fiocruz Mata Atlântica está fazendo exatamente esse trabalho no Complexo de Manguinhos, também na Zona Norte, do Rio. Vem dali um dos principais poluidores da Baía de Guanabara: o Canal do Cunha. Em junho engenheiros ambientais da instituição realizaram uma oficina sobre biodigestor para moradores, e juntos construíram dois reservatórios. Eles estão em fase de instalação em casas de duas famílias, que terão seu esgoto jogado ali.
A engenheira ambiental Aliciane Peixoto, bolsista no Campus Fiocruz Mata Atlântica, explica que dependendo do tamanho e do material usado num biodigestor, o equipamento sai barato e fica pronto em 15 minutos. “Você pode fazer com um galão de 20 litros, e gerar 2 quilos de biogás diariamente, por exemplo.”
Para atender a uma família com até 5 pessoas, o custo de um biodigestor para usar na cozinha e aquecer o chuveiro leva em torno de R$ 600, já contando com mão de obra de instalação. No Rio de Janeiro, um botijão de gás chega a custar R$ 100.
Aliciane ainda atua na ONG Engenheiros sem Fronteiras, espalhados por mais de 57 cidades trabalhando com desenvolvimento local, e que está em vias de terminar a instalação de um biodigestor num abrigo de crianças, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.
Moradores da Colônia Juliano Moreira, em Curicica, na Zona Oeste, também ganharão um equipamento. A Agente Verde, plataforma digital de pagamentos que apoia a reciclagem, está concluindo no local a construção de um biodigestor na região, onde funciona o Museu do Bispo. “O biodigestor traz uma função social porque tem a grande vantagem de tratar o esgoto local, de gerar energia e, dependendo do volume do metano, pode até abastecer carros. São várias as possibilidades de usar o que você jogaria fora”, conclui o engenheiro Rubens Gama, presidente da Agente Verde.
Rio desconhece lei para levar biodigestor a comunidades
Em 1991, o governo do Rio de Janeiro sancionou a lei 1806, que autoriza o poder executivo a promover junto às comunidades carentes a instalação de biodigestores. O #Colabora, através da Lei de Acesso à Informação, questionou a Secretaria de Estado de Infraestrutura e Cidades quantos foram viabilizados desde então, e onde se localizam essas instalações: a pasta informou que “não localizou qualquer processo, projeto ou informação que lhes tenha sido repassada pela extinta Secretaria de Estado de Infraestrutura e Obras, que absorveu a então Secretaria de Estado de Obras, relativa à lei.”
Em junho de 2022, outra lei estadual foi promulgada para incentivar o uso de biodigestor na compostagem de resíduos orgânicos em unidades escolares, hospitais, presídios, restaurantes populares e universitários e centros de abastecimento de alimentos.
A a destinação final dos resíduos é um problema crônico no país. O Brasil é o quarto país no mundo que mais produz lixo: 11.355.220 toneladas, segundo estudo do Fundo Mundial para a Natureza (WWF) feito em 2019. A Política Nacional de Resíduos Sólidos, instituída pela Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010, previa o fim dos lixões para 2014. Responsáveis pela gestão do lixo urbano, os municípios conseguiram seguidamente adiar esse prazo: com o Marco Legal do Saneamento, aprovado em 2020, o limite foi fixado em agosto de 2022, mas novamente não cumprido.
Com isso, ainda em 2022, o governo federal lançou o Plano Nacional de Resíduos Sólidos (Planares), com o objetivo de reaproveitar resíduos por meio da reciclagem, compostagem, biodigestão e recuperação energética – e acabar com os lixões até 2024.
*Luiza Souto – Jornalista e pesquisadora do Rio de Janeiro. Tem experiência na cobertura sobre Direitos Humanos, diversidade e gênero. Também produtora e roteirista de campanhas e minidocumentários com essas temáticas. Contribuiu com veículos como Folha de S. Paulo, Extra, O Globo, GloboNews e UOL.
Fonte: Projeto Colabora
Publicação Ambiente Legal, 04/10/2023
Edição: Ana Alves Alencar
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