A consciência escravagista e o “jeitinho brasileiro” de conciliar a salvação dos pecados pela escravidão
Por Marco Aurélio Arrais
Ana Carlota de Gusmão era seu nome. Para os familiares e amigos era conhecida como Sinhana, mulher de hábitos sóbrios e muito religiosa.
Quando enviuvou aos 50 anos, havia parido 10 filhos, 8 sobreviveram, com a graça de Deus.
Feita a partilha dos bens, que eram muitos, distribuiu aos filhos enormes extensões de terra com plantações e gado, além do dinheiro guardado em cinco imensos baús de madeira. Eram moedas e cédulas nacionais e estrangeiras, especialmente libras esterlinas em ouro, amealhadas com os inúmeros negócios do marido, grande fazendeiro e comerciante.
A grande loja de importação e exportação, hoje nas mãos do filho mais velho, comerciava grande variedade de mercadorias, que iam de bebidas, tecidos franceses, porcelanas de luxo, roupas da última moda na Europa, até a mercadoria mais lucrativa e procurada: peças diversas trazidas de Angola, Moçambique, Benin e Daomé.
Essas chamadas “peças”, eram escravos que iriam suprir a mão de obra nas diversas propriedades rurais, e que eram negociados com um lucro enorme, pois a moeda de troca na África era, a cachaça e o fumo, largamente produzidos nas terras da família, a custos compensadores.
Para si, reservou a casa da cidade com todas as comodidades, onde era servida por dezenas de escravos domésticos, sempre ao seu dispor.
Embora tivesse a assistência dos filhos, sempre que necessário, e já que não era mulher de viver na dependência da família, optou por ter alguns escravos de ganho que, com seu trabalho, traziam à proprietária valores consideráveis semanalmente. Possuía ainda doze casarões espalhados pela cidade que, com o valor dos aluguéis, complementava a renda doméstica. Esses velhos e decadentes casarões eram divididos em cômodos, alugados a trabalhadores, libertos, prostitutas e outros miseráveis que compunham a ralé.
Os escravos de ganho eram divididos em grupos, conforme sua utilidade. E para administrar tudo, contava com a fidelidade do Firmino, escravo de meia idade, ladino, que sabia ler, escrever e fazer contas, pois fora preparado por seu finado marido nas lidas da casa comercial.
Os negros de ganho de Sinhana eram o Bastião, o Zefo, a Maria, a Dasdô, a Efigênia, a Tonha, o neguinho Quim, o Nhô Zé, O Nhô Chico, o Nhô Tomazim, mais as mulatas Ana, Chiquinha, Ceiça, Noca e Duvirge.
O Bastião, que fazia ponto numa esquina movimentada, onde atendia sua clientela composta de membros das melhores famílias, era sapateiro.
O Zefo era um negro alto, espigado, de riso fácil, conversador, preguiçoso e embromador. Desde rapazinho trabalhava na casa comercial do marido, e não tinha castigo que desse jeito na safadeza dele. A solução foi treiná-lo como barbeiro, pois só assim poderia render algum dinheiro fazendo o que mais gostava: conversar fiado, bater pernas nas ruas e beber cachaça. Deu certo, e atendia principalmente brancos pobres e libertos nas feiras e praças, à sombra de alguma árvore ou onde houvesse um ajuntamento de desocupados.
A Maria, a Dasdô, a Efigênia e a Tonha, eram doceiras e quituteiras afamadas, treinadas na cozinha do casarão. Saíam de manhãzinha, com enormes gamelas de doces, biscoitos, bolos e frutas cristalizadas, percorrendo as ruas de porta em porta, com freguesia certa, famosas que eram pela qualidade da mercadoria.
O menino Quim, negrinho esperto nos seus dez anos, fora parido numa das fazendas da família. Quando completou idade para trabalhar, lá pelos oito anos, foi levado para a cidade. Era de uma competência sem igual para levar recados, enredos e fuxicos, tudo debaixo do segredo, como muitas vezes Sinhana o instruíra. Certa feita, ameaçado pelo escravo de uma sinhá ciumenta que queria tomar-lhe um bilhete endereçado a uma certa dama, não teve dúvida. Engoliu a missiva, o que lhe valeu uma gratificação polpuda, dada pelo sinhô remetente: uma nota de cinco mil réis, além de um par de calções novos. Era muito disputado por quem queria um serviço que requeria sigilo e certeza de entrega.
Tinha ainda o Nhô Zé, com quase sessenta anos, cego. Crescera nas propriedades da família, e apanhara um mal nos olhos, que começaram a lacrimejar, a arder – e as vistas foram se apagando aos poucos. Não adiantaram as rezas e promessas para os santos do altar dos senhores. Não resolveu apelar aos orixás da religião antiga, do seu povo. Ficava imaginando que pecado cometera, para receber tamanho castigo. O jeito foi leva-lo para a cidade, onde tinham para ele um trabalho compatível à sua situação.
O Nhô Chico, destroncado do espinhaço, torto que nem um anzol, arrebentado de tanto carregar nas costas os fardos e caixas do comércio do falecido sinhô, também seria aproveitado no serviço de Sinhana.
Nhô Tomazim, que tinha os pés em chagas, comidos pelos bichos de pé, no qual faltavam alguns dedos, numa ferida pustulenta e fétida. Mal se arrastava, gemendo sem parar. Passara a vida cuidando dos animais, descalço, dentro de currais e chiqueiros.
Esses três últimos pediam esmola nas ruas, expondo suas desgraças e aleijões. Não deviam contar a ninguém que tinham dono. Para todos os efeitos, eram negros velhos libertos.
Finalmente as mulatas Ana, Chiquinha, Ceiça, Noca e Duvirge, bonitas de corpo e de rosto. Todas elas na casa dos vinte anos, sempre limpinhas e cheirosas, com peitos firmes, coxas roliças e bundas avantajadas.
Atendiam uma clientela de alto nível, composta por comerciantes, proprietários, funcionários públicos graduados. Clientes ilustres, interessados nos seus chamegos e carinhos, prendadas que eram na labuta de cama. A própria clientela garantia a segurança e o sossego das meninas, instaladas numa casa confortável, situada nos limites da cidade, longe de olhares indiscretos.
As escravas doceiras e o menino Quim moravam no casarão de sua dona, como também o Firmino. Os outros, em barracos espalhados pela cidade, ou onde pudessem encontrar abrigo.
Semanalmente Firmino percorria os pontos de trabalho de cada um deles. Recolhia o valor estabelecido por Sinhana numa prestação de contas rigorosa. Quando havia algum problema, era sempre com um dos três velhos, mas umas cacetadas os obrigava a serem mais convincentes, a saber amolecer o coração dos passantes, ao desfiar com voz chorosa e doída suas desgraças e misérias.
Nos cortiços apresentava-se com um enorme facão afiado como uma navalha, e sempre saía com os recebimentos em dia, pois sua dona não era madrinha de vagabundo.
Gostava mesmo, era de ir à casa das meninas. Lá era bem tratado, com um café quentinho, biscoitos, uma refeição decente, e o mais importante: ver suas duas filhas Ceiça e Duvirge, tão bem tratadas, vestidas que nem sinhás, usando perfume de branco e andando calçadas. Era muito mais do que podia pedir a Deus. Toda noite rezava pela Sinhá, por dar uma vida tão especial às suas meninas.
Mas Sinhana preocupa-se com a sua salvação.
Quer passar a eternidade nas graças de Deus, no Paraíso prometido, para onde vão os bons, os puros e os justos. Onde não tem lugar os que fazem de irmãos, escravos.
Isso ela e muitos outros ouviam, continuamente, nos sermões das missas, nos aconselhamentos e penitências dos confessionários. Essa cobrança, essa exigência, trazia intranquilidade.
Ela imaginava como poderia viver sem seus escravos, não tendo quem cuidasse de suas roupas, de sua casa. Quem iria preparar seu banho, vestí-la e calçá-la?
Quando fosse à rua teria de alugar cadeirinhas imundas, utilizadas anteriormente por estranhos. Seus escravos sempre tinham com ela todos os cuidados, transportando-a com carinho em sua cadeira de arruar, desviando de poças de lama, do lixo, de bichos mortos e das porcarias que vinham dos pinicos esvaziados de manhã nas ruas.
Todas suas escravas domésticas eram bem treinadas. Se libertas, talvez se tornassem ingratas e prefeririam trabalhar por conta própria como cozinheiras, quituteiras, engomadeiras. Todas elas estavam acostumadas à sua maneira de ser. Tanto que não era preciso dar muitas ordens, pois sempre que fosse necessário tudo vinha às suas mãos. Estavam todas muito bem treinadas. Sabiam seus gostos e preferências. E, principalmente, sabiam quem ela era!
Durante meses de noites insones, mal dormidas, pensou e repensou esta questão.
Não podia morrer dona de escravos, pois assim não alcançaria a Casa de Deus. Logo ela, que durante toda sua vida nunca deixou de dar esmolas aos santos nos dias santificados.
Sempre fez à Igreja ofertas vultosas para a construção de capelas, para a confecção de roupas bordadas com fios de ouro, nas vestimentas da mãe de Jesus, como também por várias vezes doou joias de família, para que fossem derretidas e usadas na confecção de coroas, que ornamentariam as muitas imagens da Santa Mãe de Deus nos altares principais.
Mas na missa do último domingo, teve a certeza de haver recebido de Deus uma mensagem que a tranquilizou.
O Padre, no sermão, disse que se no último momento de vida o pecador arrepender-se, estará salvo.
É o que ela fará.
Antes de sua morte, deixará de ser pecadora, pois será merecedora da piedade divina.
No dia seguinte, ao final da tarde, dirige-se a passos firmes à casa do Senhor Bispo. Tem a certeza do apoio daquele homem de Deus à sua decisão, pois sempre provou ser uma pessoa importante no seio da Igreja, benemérita e participante, nunca se fez de rogada para atender a tudo que dela necessitassem.
Leva nas mãos seu testamento, feito em cartório naquela manhã.
O que nele está contido livrará seu espírito de qualquer punição eterna.
Além da divisão de seus bens de maneira igualitária, entre os filhos e a Igreja, dispõe de forma clara, objetiva e segura em uma de suas cláusulas: “Todos os escravos de minha propriedade serão considerados livres duas horas antes da minha morte.”
Com o reconhecimento daquela autoridade eclesiástica às suas intenções, ela poderá estar em paz consigo mesma, pois traz na mente a tranquilidade dos justos, e no coração a certeza das bênçãos de Deus…
Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”.
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ela fez como muitos: tentam comprar DEUS