Por Ricardo Viveiros*
Quando ainda jovem, lendo pela primeira vez o novelista russo Leon Tolstoy, memorizei uma explicação sobre o que significa ser judeu: “…aquele ser sagrado que trouxe dos céus o fogo eterno com o qual tem iluminado o mundo inteiro. Ele é a nascente, o manancial, a fonte da qual todos os outros povos sorveram suas crenças e suas religiões”.
Dessa época em diante, passei a observar melhor os judeus. Sua maneira de ser, pensar a vida, agir, propor soluções que garantam a paz para todos. Um compromisso com as raízes, fé inabalável, respeito absoluto à educação e à cultura. O desejo de empreender e garantir digna sobrevivência para sempre. Solidariedade com seus irmãos. Esse conjunto de valores está sempre nos mandamentos do bom judeu.
Mais tarde, conheci o rabino Henry Sobel. Um ser humano simpático à primeira vista, alto, magro, cabelos longos, brilhantes olhos azuis, sorriso largo, calmo e um sotaque inconfundível de quem, embora estivesse vivendo aqui há muitos anos, parecia manter um vínculo com a sua origem — um belga que fala inglês norte-americano.
Mesmo ocupando posição de destaque no rabinato da Congregação Israelita Paulista, a poderosa CIP, Sobel não se omitiu e, corajosamente, uniu-se ao cardeal católico Dom Paulo Evaristo Arns e ao pastor presbiteriano Jaime Wright na defesa dos presos políticos. Soube, embora frequentando o mesmo ambiente de alguns empresários simpatizantes da direita, exigir respeito e direitos humanos para aqueles que combateram o Golpe Militar que, em 1964, instaurou uma ditadura no Brasil. Sobel defendeu a liberdade de imprensa, jornalistas e veículos de comunicação.
E foi muito além da participação política responsável. O rabino Sobel, enquanto viveu, disse “presente” — de corpo e alma —, às ações humanitárias em busca de justiça social para velhos, crianças, deficientes físicos e mentais, negros, mulheres e outras minorias ainda vergonhosamente discriminadas neste País. E sem medo, com sua voz pausada e firme, enfrentou toda e qualquer tentativa de desrespeito à liberdade.
Cada uma das vezes que eu presenciei, e foram muitas, o rabino Sobel lutando por oprimidos, necessitados e sofredores eu lembrava das palavras de Tolstoy sobre o que significa ser judeu. E via naquele doce guerreiro, algo como se o povo judeu fosse uma Torá viva, e ele uma letra dourada do livro sagrado.
Num enterro de um amigo, lá estava Sobel. Na hora da saída do féretro, ele disse algumas palavras. Lembro-me como se fosse hoje, arrastando os erres como de hábito, o rabino perguntou aos presentes a razão de acenderem velas para os mortos. E ele respondeu: “É para iluminar o caminho do morto ao encontro de Deus”.
No contexto cruel da violenta e fria vida das grandes cidades, o rabino Sobel — cada vez mais preocupado com os que sofrem —, perdeu o sono. E, como qualquer um de nós, embora sua leveza interior, começou a sentir-se mal, a não ter ânimo para trabalhar e seguir ajudando aos semelhantes, levando esperança e fé aos seus irmãos. Porque para o judaísmo somos todos irmãos, filhos de um mesmo Pai.
No contexto da sabedoria popular que diz “de médico e de louco todo mundo tem um pouco”, o mortal rabino Sobel resolveu tomar comprimidos para dormir. Passou a usar algum desses que as pessoas receitam entre si, nas horas de um bate papo informal. Alguma boa senhora judia, depois de um chá, ao ter percebido o semblante abatido do rabino, deve ter lhe receitado o que o médico, segundo ela “muito bom”, prescreveu para o marido.
Os comprimidos tiveram o efeito previsto, Sobel venceu a “insônia severa”. Mas — o que ele não esperava —, vieram os efeitos colaterais: “confusão mental e amnésia”, sintomas típicos de quem tomou hipnóticos diazepínicos na dose errada. Tanto que, o bom rabino Sobel, dormiu mesmo acordado. E deu oportunidade a um outro ser, que independentemente de seus bons costumes, sabe-se lá por quais razões, furtou quatro gravatas numa elegante avenida de Palm Beach, na Flórida, Estados Unidos.
O rabino Sobel esteve internado — comprovadamente doente, segundo boletim médico do respeitado Hospital Albert Einstein —, para tratamento de saúde. Antes, porém, numa demonstração de humildade e respeito, licenciou-se do cargo que ocupava no rabinato da CIP e, após a primeira medicação correta seguida ao lamentável episódio que viveu, mais uma vez sem medo, concedeu entrevista coletiva à imprensa e, com muita dignidade, pediu desculpas pelo ocorrido.
O rabino Henry Sobel, um homem de coragem e boa vontade, morreu neste 22 de novembro de 2019, aos 75 anos. Perdemos um cidadão solidário e comprometido com nobres causas que transcendem supostas obrigações religiosas e raciais. Foi iluminar o céu.
*Ricardo Viveiros, jornalista e escritor, é autor de “Justiça seja feita”, “A vila que descobriu o Brasil”, “Pelos caminhos da Educação” dentre outros livros. Tem o título de Notório Saber, em nível de doutorado, pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, é membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP) e da Academia Paulista de Educação (APE).
Fonte: Ágata Marcelo – Ricardo Viveiros & Associados – Oficina de Comunicação