Por Marco Aurélio Arrais
O nome do arraial já era, lá pelos anos de 1920, São José de Mossâmedes. Também era conhecido também por Aldeia, isso porque na época colonial, na sua origem, fora aldeamento dos antes belicosos e ferozes Caiapós, ali reduzidos por ordem do governo da província de Goiás, no século XVIII. Estrada de acesso era só a trilha que, volteando a Serra Dourada, ia dar em Vila Boa de Goiás, capital e sede do governo, distante vinte quilômetros.
A população, rala e miserável, vivia da agricultura de subsistência, da caça, que era a fonte de carne para a maioria dos moradores e da pesca.
Alguns criavam alguns porcos, que eram disputados pelas onças moradoras nas furnas existentes naquelas brenhas.
A iluminação à noite era feita pelos candeeiros, abastecidos pela gordura dos animais ou óleo de mamona, extraídos das plantas nativas que infestavam os quintais.
Lampeão a querosene, só na casa de alguns poucos abastados que podiam fazer, periodicamente, algum comércio no mercado da capital, levando couro de animais silvestres, raízes medicinais, uma ou outra boiadinha para abate, carne de caça ou de porco previamente salgadas.
Essas carnes eram enroladas em folhas de bananeira, e depois acondicionadas em couros curtidos de boi, bem amarrados e vedados, para proteção contra as varejeiras e carrapatos que infestavam as trilhas.
O transporte era feito no lombo de cavalos e mulas, ou em carros de boi, numa jornada vagarosa e cansativa, que era iniciada pouco depois da meia noite, e durava até o fim da manhã. Para a maioria deles, o comércio consistia na troca dessa pouca mercadoria por sal, querosene, pólvora e chumbo, tecido grosseiro de algodão ou umas botinas para calçar a família.
Um ou outro mais sortudo podia, num acaso, topar com algumas pepitas de ouro no raso ou nas areias das pequenas praias dos córregos que cortavam aquelas lonjuras.
Distante da aldeia, num sovaco da serra, estava o rancho do meu avô, de nome José Arrais. Homem alto, claro, olhos azuis e segundo meu pai, de uma brabeza e ferocidade desmedidas. Nunca dirigiu a palavra a qualquer filho, a não ser para dar ordens e cobrar o que achava de direito.
Castigava com rigor e energia. Quando achava necessário corrigir, ensinar e mostrar autoridade, batia na prole com o mesmo chicote de couro cru com que tangia os animais. Sua presença despertava medo e apreensão nos filhos.
Meu pai era o caçula. Dependia de todos, e era o mais frágil e desamparado. Minha avó, Antônia, era uma mulher sacrificada e sofredora, que cuidava daquela família da maneira que fosse possível. Roupa era quase nenhuma, calçados ninguém tinha. O rancho, misto de pau a pique e adobe, de chão batido, possuía poucas divisões. A pouca mobília consistia de meia dúzia de troncos de árvore cortados, que serviam de assento, alguns jiraus trançados com cipó e cobertos por couro de boi curtido, que faziam as vezes de cama, e um banco de madeira rústico.
No canto de um dos cômodos, um fogão de barro sobre um jirau de aroeira. Em cima dele, algumas panelas de barro e colheres de madeira.
Dependuradas em gravetos fincados na parede, perto de um pote com água, cuias de diversos tamanhos eram utilizadas como copos.
A comida era quase sempre a mesma. Carne de caça com mandioca ou abóbora, colhidas ali mesmo ao redor. Era servida à filharada em uma gamela de madeira, colocada no chão. Em volta dela, cada um com uma pequena colher de pau, improvisada e mal feita, disputavam a comida.
Os maiores e mais fortes sempre comiam mais. Minha avó, quando percebia, tinha de intervir para que os menores também pudessem comer.
O irmão mais velho era encarregado de tomar conta dos menores, notadamente do caçula. Não gostava disso, e enganchando meu pai na cintura, longe das vistas da mãe que lavava a roupa num córrego distante do rancho, batia com a sua cabeça nas árvores e nos mourões da pequena cerca, ameaçando judiar mais se houvesse choro. Quando esse irmão, o mais velho, cresceu, um dia disse que iria embora. Juntou suas coisas, pegou a estrada e nunca mais apareceu.
Quando a mãe morreu, o meu pai não tinha ainda dois anos de idade. A lembrança dela que ficou foi de umas pernas morenas, uns pés descalços pisando o chão de terra do rancho, e uma mão que acariciava sua cabeça quando, chorando, agarrado num vestido de tecido escuro, pedia colo.
Não se lembrava do rosto dela, mas durante toda sua vida, em seus sonhos, revia essa cena e ouvia sua voz doce, tranquilizadora, que cantava para ele no escuro da noite. Era uma voz triste e bonita, que o consolava.
Lembrava-se ainda, de que, quando ainda pequenino, pegou na cabeça alguns bernes de varejeira. O seu pai amarrou sobre o ninho dos vermes um pedaço de toucinho aquecido no fogo. Os bernes então romperam o couro da cabeça, atraídos pelo calor e o cheiro do toucinho. A ferroada dos bichos, rompendo a pele da cabeça, que o fez chorar, foi o sinal para que meu avô, desamarrando o pano, prendesse sua cabeça entre as pernas e espremesse para fora aqueles bichos, fechando as feridas com uma faca aquecida. Carregou por toda a vida as cicatrizes do tratamento.
Após a morte da mãe, foi entregue para seus avós paternos, Manuel e Deolinda, que o criaram. Teve uma infância pobre, mas feliz, correndo nas ruas de Goiás Velho, nadando no Rio Vermelho e no Bacalhau. A Serra Dourada proporcionava à meninada muitas frutas silvestres, como mangaba, gabiroba, caju, ingá, pitanga, jatobá. Era uma fartura danada.
No inverno, quando chovia, a enxurrada descia aos borbotões da serra, inundando as ruas calçadas de pedra. Aí, então, era sair com uma latinha na mão, catando minúsculas pepitas de ouro misturadas à terra trazida pela água. Dava para comprar alguma roupa e chinelos novos. Sobrava ainda para gastar com doces e bolos, comprados nos armazéns do mercado.
Em Goiás Velho havia um colégio profissionalizante, no qual foi matriculado. Sonhava em aprender marcenaria, pois desde pequeno gostava de fazer tamboretes e um ou outro trabalho em madeira. Ficou muito frustrado quando o diretor da escola decidiu que ele seria alfaiate. Terminou o curso, mas não trabalhou nem um dia nessa profissão.
Tinha pouco mais de vinte anos quando recebeu sua primeira carta. Era um envelope com o selo da República, mandado pelos homens do governo. Meu bisavô foi quem leu a correspondência. Ordenava que o menino se apresentasse ao Tiro de Guerra, em Ipameri, em data determinada. O Brasil havia declarado guerra à Alemanha, e ele estava sendo convocado para ir lutar na Europa.
O velho morreu de desgosto, depois da sua partida. Junto com ele, dezenas de outros roceirinhos das redondezas – filhos da pobreza, do esquecimento e da desimportância tinham sido chamados. Fizeram parte do contingente goiano que foi mandado à Itália.
Em sua esmagadora maioria, os convocados eram originários de famílias humildes, gente que foi lembrada porque a nação necessitava desses seus filhos para que, transfoados em soldados, lutassem em benefício da pátria. Ganhou uma farda e um par de botas novas, que foram as primeiras que calçou, sentindo-se muito orgulhoso em ser um soldado do exército brasileiro.
Os soldados goianos foram incorporados no Sexto Regimento de Infantaria, sediado em Caçapava – SP.
Na Itália participou de todos os principais combates. Foi treinado para destruir ninhos de metralhadora pesada do inimigo, atingindo-os com granadas, atiradas da boca do fuzil. Para isso, tinha que se expor, rastejando sob fogo intenso, até alcançar uma posição favorável para o lançamento. Milagrosamente, nunca foi ferido.
Esse foi para ele o acontecimento mais marcante. Ir à guerra o fez ver o tamanho do mundo, a descobrir que este ia muito além daqueles limites que pela vida tinham sido a ele impostos, a conhecer outras terras e outros povos. Dizia que ter ido à guerra fora a maior lição da sua vida.
Quando voltou, era um homem. Não mais o menino humilde, o caboclinho descalço e ingênuo que falava com os outros de cabeça baixa, de olhos voltados para o chão. Participara de uma luta vitoriosa contra um dos mais poderosos exércitos do mundo e voltara com honra. Descobrira que possuía dignidade e que fazia parte de um povo. Estava pronto para a vida.
Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”.
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Boa tarde amigo, a foto em questão dos soldados da FEB na trincheira é de minha propriedade, peço a gentileza que coloque na legenda Acervo Família Nalvo ok. Muito obrigado.
Obrigado pela informação valiosa, Thiago. Faremos isso.