De como o imbróglio da “tarifa zero” para energia solar revela um sério problema de governança
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*
O presidente Jair Bolsonaro declarou no penúltimo domingo (5 de janeiro de 2019), que não pretende tributar a geração de energia solar no país. Afirmou, porém, que a palavra final caberia à ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica, “que é autônoma”. Embora sua postura contra a tarifa era a posição “do presidente da República”, Bolsonaro afirmou, pelo twitter, que os integrantes da agência reguladora é que teriam a decisão final, pois “têm mandato”.
Encerrando a questão, o Presidente determinou que ninguém do governo iria mais discutir o assunto.
O problema originou-se em 2012, quando a ANEEL estabeleceu que as instalações domésticas dos painéis solares não pagariam encargos, subsídios e tributos pela produção, pelo consumo ou pela distribuição do excedente de energia. O objetivo do governo, à época, era incentivar a geração de energia solar.
A agência agora, entende que não há mais necessidade de incentivar a inclusão da energia solar no smart grid, pois esta já atingiu, segundo ela, um custo viável no mercado. A nova resolução, portanto, poria fim à isenção de taxas.
Os protestos não tardaram a ocorrer, e ante a grita geral do setor, o chefe do executivo federal adotou o mote “tarifa-zero”, contrariando o entendimento da ANEEL. Porém, Bolsonaro compreendeu que a saída seria estabelecer a isenção por meio de um novo marco legal, votado no parlamento. Remetendo a questão para o Poder Legislativo e declarando o caso encerrado.
Assunto encerrado? Entendimento correto? Claro que não!
A Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL tem por finalidade regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica, em conformidade com as políticas e diretrizes do governo federal (grifamos). Essa subordinação às diretrizes do governo implica, inclusive na necessária articulação com a Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, quando o assunto for a tarifação do uso dos sistemas de transmissão e distribuição que impliquem alteração nas regras de concorrência, ou seja – justamente o que instrui a resolução atacada pelo Presidente no Twitter.
Por sua vez, o Ministro de Minas e Energia comanda o Conselho Nacional de Política Energética-CNPE, cuja atribuição é justamente estabelecer as diretrizes do governo para programas específicos, como os de uso da energia solar e outras fontes alternativas.
Ou seja, é o CNPE – que analisa e baixa a diretriz conforme a qual deve a ANEEL agir.
Com efeito, estando a ANEEL legalmente vinculada ao Ministério de Minas e Energia, sua autonomia não a autoriza refugir às diretrizes de governo e, ainda que o fizesse, o próprio governo teria instrumentos postos no Ministério da Justiça e no Conselho Nacional de Política Energética para barrar o entendimento contrário. Por último, o próprio Presidente poderia, por decreto, baixar uma diretriz.
Essas atribuições e conformações encontram-se todas previstas pela Lei Federal 9.427 de 1996 (art. 2º, art. 3º – incisos IX, XVIII, § 1º e § 7º, art. 4º – §3º), Decreto Presidencial 3.520 de 2000 (art. 1º, IV), dentre outras normas e portarias. Basta um esforço de compreensão teleológica e aplicação deontológica, que a questão se encerra dentro dos parâmetros legais, no campo decisório do próprio governo federal.
Assim, antes de tuitar e decidir que o assunto não era da sua alçada, deveria o Presidente Bolsonaro observar o quadro legal que o ampara.
Várias perguntas permanecem no ar, senão vejamos:
Por que o presidente, antes de se pronunciar, não contatou seu Ministro de Minas e Energia? Por que não entrou em contato com o presidente da ANEEL? Por que não ouviu sua assessoria jurídica?
Se a ANEEL não é um alienígena na Administração do Executivo Federal e está adstrita legalmente à diretriz governamental. Se está na regra do Decreto que o CNPE, presidido pelo Ministro de Estado de Minas e Energia, é órgão de assessoramento do Presidente da República para formulação de políticas e diretrizes de energia, por que o próprio Ministro não convocou o Conselho Nacional de Política Energética quando surgiu a polêmica sobre a tarifação “solar”? Por que não firmou a diretriz “tarifa-zero”?
Por fim, se o presidente afirma que seus ministros estão proibidos “de falar no assunto” e transfere um conflito, cuja atribuição de resolver lhe compete, para o Poder Legislativo, o que se passa no governo federal?
Com todo o respeito devido ao nosso presidente, algo está errado, nesse episódio, com a sua governança.
Está claro que ninguém instruiu o chefe de estado adequadamente para lidar com o assunto. A impulsividade do Presidente não impede que seus auxiliares lhe encaminhem um paper, um memorando ou um roteiro básico que oriente a tomada de decisão.
O que se viu do episódio foi uma desconexão da chefia do estado com a máquina administrativa que lhe é subordinada. Nesse sentido, ao ser incumbido pelo presidente da república, de resolver a regulação tarifária, o Poder Legislativo ganha status de “tutor” dos conflitos internos do governo, com responsabilidade de “corrigir” as agências reguladoras, como se o executivo não tivesse autoridade sobre a própria máquina administrativa.
Não foi por outro motivo que, pela mesma rede social, o presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia (DEM-RJ), endossou a posição de Bolsonaro, afirmando que “vamos trabalhar juntos no Congresso, se necessário, para isso não acontecer”…
Visto por esse aspecto, a atitude presidencial traduziu-se em um deleite para qualquer lobista da esquina (se esquinas houvessem em Brasília… ).
Me sinto na obrigação de falar, como apoiador de primeira hora de Bolsonaro. O episódio revelou um sério problema de governança, que precisa ser urgentemente corrigido.
Energia solar envolve, hoje, todo um ciclo econômico, que está fragilizado pela insegurança regulatória – isso é problema do governo, jamais do parlamento.
Acreditei que o governo iria interferir eficazmente no debate, pondo as coisas no lugar. Mas não. O palácio, no episódio, deixou transparecer que desconhece como funciona o ambiente de regulação ou, ciente de como funciona, optou por se omitir.
*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa – API. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View”. Foi integrante da equipe que elaborou o plano de transição da gestão ambiental para o governo Bolsonaro.
Fonte: The Eagle View