Por Talden Farias*
A Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa) disciplina as hipóteses de atos de improbidade administrativa cometidos pelos servidores públicos e suas respectivas punições. De acordo com Kiyoshi Harada, o ato de improbidade administrativa é “aquele praticado por agente público, contrário às normas da moral, à lei e aos bons costumes, ou seja, aquele ato que indica falta de honradez e de retidão de conduta no modo de proceder perante a administração pública direta, indireta ou fundacional, nas três esferas políticas”[1].
O intuito não é enquadrar apenas os atos meramente ilegais, mas também os que afrontarem os princípios da Administração Pública, a exemplo da moralidade administrativa. Apesar de ser voltada para o Poder Público em geral, não levando em consideração as particularidades das questões ambientais, essa lei também é aplicável ao Direito Ambiental, mesmo porque parte significativa do controle ambiental é exercido por meio de processos e de atos administrativos.
Nesse diapasão, é possível citar o sistema de licenciamento ambiental, que consiste no conjunto de processos e de atos públicos de liberação de atividade econômica voltados à seara ambiental, como autorizações ambientais, concessão florestal, licenças ambientais e outorgas de recursos hídricos. O outro destaque é para as sanções administrativas ambientais, que são as penalidades aplicadas diretamente pelos fiscais ambientais durante a atividade de fiscalização, a exemplo de embargo, multa simples, multa diária, inutilização, demolição etc. (conforme colunas anteriores sobre o assunto, como esta e esta) — o que, é claro, gera o direito de defesa para o autuado, o qual deverá contar com todas as garantias do processo judicial[2].
Com efeito, grande parte do Direito Ambiental brasileiro acontece dentro daquilo que se convencionou chamar de Administração Pública ambiental, que é o Sistema Nacional do Meio Ambiente — Sisnama, ficando assim mais do que evidente a vinculação prática entre essa disciplina o o Direito Administrativo. Aliás, não é por outra razão que se critica a pouca ênfase da nos chamados instrumentos econômicos de controle ambiental, que por vezes costumam ter respostas mais céleres e duradouras.
O fato é que é no exercício diário do poder de polícia que os órgãos ambientais atuam de forma mais ampla e efetiva no Brasil, tendo sido essa até então a sistemática predominantemente adotada pelo legislador e pelos gestores. Inclusive, parte significativa da responsabilização da responsabilização ambiental nas esferas cível e criminal têm origem em ações prévias desses órgãos, o que demonstra até um certo protagonismo excessivo da responsabilização administrativa nessa questão.
Qualquer ato ímprobo no decorrer dos processos de análise e concessão dos atos públicos ambientais de liberação de atividade econômica , além de afetar a Administração Pública em si, muito provavelmente lesará também o meio ambiente, já que a concessão indevida de tais atos já significa uma ameaça ao meio ambiente e à qualidade de vida da coletividade. O mesmo pode se dizer em relação a uma multa ou a um embargo corretamente aplicados que deixarem de ser mantido em razão de um ato de improbidade do servidor ou do gestor do órgão ambiental.
Isso implica dizer que a Lei de Improbidade Administrativa também é um importante mecanismo da Administração Pública ambiental, tendo assim uma relevância dentro do Direito Ambiental brasileiro. A esse respeito, Ricardo Coelho afirma o seguinte:
“A improbidade administrativa – conduta amplíssima em sua concepção – está sempre próxima das questões ambientais, porque estas normalmente são grassadas de intensa atividade administrativa, é o poder público que deve gerir o meio ambiente e as práticas potencialmente danosas ao meio ambiente, basicamente através de atividades autorizativas, fiscalizatórias ou licenciadoras.
A importância desta atividade estatal, essencial aos procedimentos de implantação e funcionamento de atividades impactantes (praticamente toda atividade industrial ou de desenvolvimento importa em perda ambiental), é capaz de criar e proporcionar situações que facilitam a caracterização de condutas ímprobas, principalmente em face dos interesses envolvidos e da grande parcela de poder que é transferida para o agente publico incumbido destas tarefas, o que amplia ainda mais o espectro de possibilidades em face do número de pessoas envolvidas[3].”
O objetivo dos instrumentos do Direito Ambiental é contribuir para a concretização do direito fundamental ao meio ambiente nos termos do que determina o caput do art. 225 da Constituição da República, de maneira que não pode o servidor público responsável pela sua análise sucumbir a interesses de outras ordens. O Capítulo II da lei citada organiza os atos de improbidade administrativa em três seções: i) os que determinam o enriquecimento ilícito do agente, ii) os que causam prejuízo ao erário e iii) os que atentam contra os princípios da Administração Pública:
“Art. 9º Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1º desta lei, e notadamente: (…)
Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente: (…)
Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente: (…)”
Todas as situações são aplicáveis ao sistema de licenciamento e de responsabilização administrativa ambiental, embora a do art. 10 seja a menos frequente, pois na maioria das vezes o ato ímprobo no licenciamento não gera prejuízos diretos ao erário e sim ao meio ambiente. Por outro lado, a do art. 11 é provavelmente a mais comum, tendo em vista que poderá ser enquadrado dessa forma qualquer ato administrativo que afaste tais mecanismos de sua finalidade de promover a defesa do meio ambiente dentro das normas e dos padrões de qualidade ambiental estabelecidos.
Não é recomendável, no entanto, banalizar a interposição de ações de improbidade administrativa sob pena de comprometer a eficiência e a credibilidade do instituto, cabendo ao Ministério Público e ao órgão da Administração Pública indireta legitimado adotar uma certa cautela em relação a isso. É por isso que o parágrafo 8º do art. 17 prevê um juízo de admissibilidade do magistrado, que poderá rejeitar a ação caso não vislumbre os fundamentos necessários ou entenda que a via não é a mais adequada.
A demonstração do dolo se faz cada vez mais necessária, já que não se pode processar e condenar ninguém com base em juízos de mera subjetividade. Nessa ordem de ideias, o art. 28 do Decreto-lei n. 4.657/42 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) dispõe que “O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”.
Também é preciso considerar a falta de estrutura dos órgãos ambientais, que normalmente sofrem com a falta de servidores e de equipamentos, ao mesmo tempo em que enfrentam um aumento na demanda em razão do crescimento da importância da burocracia ambiental. Daí a exigência do caput e do § 1o do art. 22 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro de que “Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados” e “Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente”.
Os crimes tipificados nos arts. 66 e 67 da Lei n. 9.605/98 (Lei dos Crimes e das Infrações Administrativas Ambientais), por exemplo, que dizem respeito à concessão indevida de licenças ambientais, também podem configurar a prática de improbidade administrativa em função do desrespeito aos princípios da Administração Pública, entre outros aspectos que poderão ser levantados de acordo com o caso concreto[4]. Contudo, por se tratarem de esferas distintas de responsabilização, a improbidade administrativa não se confunde com a responsabilidade civil ou criminal, até porque suas penalidades são específicas:
“Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato:
I – na hipótese do art. 9º, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano, quando houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de oito a dez anos, pagamento de multa civil de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez anos;
II – na hipótese do art. 10, ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos;
III – na hipótese do art. 11, ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.
Parágrafo único. Na fixação das penas previstas nesta lei o juiz levará em conta a extensão do dano causado, assim como o proveito patrimonial obtido pelo agente.”
É importante destacar ainda que após as alterações trazidas pela Lei 13.964/2019, a Lei de Improbidade Administrativa[5] passou finalmente a permitir a celebração de acordo, já que antes existia uma vedação expressa a qualquer negociação nesse sentido. O assunto foi até objeto de regulamentação da Resolução 179/2017 do CNMP[6], de maneira que não existem mais dúvidas quanto a essa possibilidade. E não poderia ser diferente, pois até mesmo em matéria criminal existem as soluções negociadas, como o acordo de não persecução criminal e a delação premiada.
[1] HARADA, Kiyoshi. Ato de improbidade administrativa. Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 41, 1º maio 2000. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/361>. Acesso em: 8.fev.2020.
[2] O inciso LV do art. 5o da Constituição Federal de 1988 dispõe que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
[3] COELHO, Ricardo. Improbidade administrativa ambiental. Recife: Bagaço, 2004, p. 130.
[4] “Art. 66. Fazer o funcionário público afirmação falsa ou enganosa, omitir a verdade, sonegar informações ou dados técnico-científicos em procedimentos de autorização ou de licenciamento ambiental: Pena – reclusão, de um a três anos, e multa” e “Art. 67. Conceder o funcionário público licença, autorização ou permissão em desacordo com as normas ambientais, para as atividades, obras ou serviços cuja realização depende de ato autorizativo do Poder Público: Pena – detenção, de um a três anos, e multa. Parágrafo único. Se o crime é culposo, a pena é de três meses a um ano de detenção, sem prejuízo da multa”.
[5] “Art. 17. A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação da medida cautelar. § 1º As ações de que trata este artigo admitem a celebração de acordo de não persecução cível, nos termos desta Lei. (…) § 10-A. Havendo a possibilidade de solução consensual, poderão as partes requerer ao juiz a interrupção do prazo para a contestação, por prazo não superior a 90 (noventa) dias (…).” Na redação anterior da lei, o § 1º vedava expressamente qualquer transação, acordo ou conciliação.
[6] “Art. 1º. (…) § 2º É cabível o compromisso de ajustamento de conduta nas hipóteses configuradoras de improbidade administrativa, sem prejuízo do ressarcimento ao erário e da aplicação de uma ou algumas das sanções previstas em lei, de acordo com a conduta ou o ato praticado” (…).
*Talden Farias é advogado, professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE, doutor em Direito da Cidade pela Uerj e em Recursos Naturais pela UFCG, mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB e autor de publicações nas áreas de Direito Ambiental, Minerário e Urbanístico.
Fonte: Conjur
Publicação Ambiente Legal, 03/12/2020
Edição: Ana A. Alencar