Advogado Maurício Terena afirma que indígenas estão aperfeiçoando estratégias de luta para defender seus direitos no Judiciário e no Legislativo
Por Fernanda Pierucci e Ramon Vellasco*
Assessor jurídico na Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), o advogado Maurício Terena acompanha os processos de interesse dos indígenas no Supremo Tribunal Federal e os projetos em tramitação no Congresso Nacional que ameaçam seus territórios e suas vidas. “Há 18 anos essa mobilização do Acampamento Terra Livre acontece e, a cada ano que passa, a gente vem construindo um protagonismo muito importante dentro dessas esferas de poder. Nós estamos aperfeiçoando estratégias de luta, indo ao Judiciário com advogados indígenas e descolonizando as instituições e promovendo uma nova vertente de movimento social”, afirma o advogado da etnia terena.
A mobilização dos povos indígenas parece em fazendo efeito. No começo de março, a Câmara aprovou o pedido de urgência – apresentado pelo líder do governo, Ricardo Barros, a pedido do presidente Jair Bolsonaro – para o PL 191/2020, que libera a mineração e outras atividades econômicas em terras indígenas. Mas, apesar da urgência, o projeto não avançou mais. “Nós estamos na 18ª edição do Acampamento Terra Livre, que é um movimento histórico muito simbólico, porque os povos indígenas de todo o Brasil ocupam a capital federal, ocupam os espaços de uma cidade, onde as decisões políticas e jurídicas que dizem respeito às nossas vidas são tomadas”, afirma Maurício Terena, coordenador no Observatório Justiça Criminal e Povos Indígenas.
O projeto é um dos alvos principais do Acampamento Terra Livre. As pressões das entidades indígenas, de organizações da sociedade civil, de artistas, e até de associações empresariais fizeram o PL 191/2020 não voltar a pauta; o presidente da Câmara, Arthur Lira, disse que o projeto seria avaliado por um grupo de trabalho de 20 deputados que sequer foi formado. “A gente tem entendido o Poder Legislativo como um poder que tem voltado as suas incidências, no sentido de restringir o direito dos povos indígenas. O PL 191, na leitura dos povos indígenas, é inconstitucional”, afirma o advogado, formado em Direito, com mestrado em Educação na Universidade Católico Dom Bosco (DF) e doutorando em Antropologia na USP.
Esta semana, durante o Acampamento Terra Livre, Maurício Terena estava entre advogados e lideranças indígenas que visitaram o Supremo Tribunal onde está em julgamento o Marco Temporal, ameaça a demarcação das terras indígenas. “O Judiciário é majoritariamente formado por homens brancos que já participam ou são membros de uma elite brasileira. Enquanto nós, povos indígenas, durante muito tempo, fomos considerados relativamente incapazes pelas próprias leis do Estado brasileiro”, comenta, enfatizando sua confiança no reconhecimento dos direitos indígenas. “As terras indígenas têm proteção da Constituição Federal no artigo 231”.
Está lá no artigo 231: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Com base no mesmo artigo, o advogado defende a inconstitucionalidade do PL 191/2020. “Essa decisão não cabe ao Poder Legislativo de homens brancos e ricos. Para eles, é natural extrair e minerar em nossas terras, porque nós nunca estivemos à frente do exercício e do gozo do direito. Nós somos uma sociedade composta majoritariamente por mulheres e negros. E essas pessoas não estão no Poder Legislativo”, destaca Maurício Terena.
Não por acaso uma das pautas do acampamento foi a necessidade de maior representação no Congresso Nacional: os indígenas pretendem lançar candidaturas por todo o país para garantir a defesa de seus direitos no Legislativo e serem ouvidos em Brasília, onde são tomadas as decisões que impactam suas vidas e seus territórios. O próprio PL 191/2020 é lembrado como exemplo.
Apesar de o projeto ainda estar em discussão no Legislativo, os indígenas já sofrem suas consequências. “Enquanto discutimos o trâmite desse PL, a mineração explode e nós sofremos os impactos negativos em nossos territórios. É como se o projeto já estivesse aprovado. As pessoas que estão lá minerando e garimpando se sentem legitimadas a explorar nossas terras. A gente precisa de vontade política”, alerta o advogado da etnia terena, que vê um relação próxima dos exploradores com quem julga e com quem legisla. “Se a gente estudar o contexto histórico do garimpo, a gente vê que existe um lobby muito forte”, acrescenta.
Indígena e advogado, Maurício Terena lida com sua espiritualidade na rotina de uma cidade regida pelas leis de pessoas não indígenas. “Eu entendo a minha missão como indígena advogado. Quando falo dos parentes contaminados por mercúrio, eu sinto a destruição do meu corpo através do corpo deles. É uma cosmovisão que nós compartilhamos; essa luta eu não enfrento sozinho. Não tenho mercúrio no corpo, mas sinto a dor deles. Essa pauta está destruindo os nossos territórios”, desabafa.
Mauricio Terena lembra que a mobilização do Acampamento Terra Livre está mais em torno do PL 191/2020, mas faz questão de frisar a importância do Marco Temporal. “É um dos julgamentos mais importantes da história do movimento indígena; o Supremo Tribunal Federal tem o poder de definir as demarcações de terras indígenas e a continuidade ou não das vidas dos povos indígenas do Brasil”, destaca.
O advogado vê o Poder Judiciário longe do Brasil. “A formação dos juízes é fora da realidade brasileira; eles precisam pisar mais nos territórios para entender um país como o Brasil. É um trabalho cansativo e pesado. Nós, indígenas, lidamos com a morte e com a tortura. Nós tivemos duas crianças indígenas Yanomami sugadas por uma draga de um garimpo que nem deveria existir”, lembra Maurício Terena.
Abril indígena
O Acampamento Terra Livre é tradicionalmente realizado no mês de abril, simbólico pela data do Dia do Índio, 19 de abril data criado por decreto no Estado Novo (1943), e também pelo assassinato do líder indígena Galdino Pataxó, que completa 25 anos no dia 20 de abril. O cacique da etnia pataxó-hã-hã-hãe estava em Brasília para tratar de questões relativas à demarcação de terras indígenas no sul do estado da Bahia. Cinco jovens atearam fogo ao corpo do cacique enquanto ele dormia em uma parada de ônibus. Em 2022, os sete mil indígenas acampados na Esplanada dos Ministérios juntam esforços na luta contra o pacote de leis que estão em tramitação pelos três poderes.
O relatório Violência contra os Povos Indígenas do Brasil, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), destaca que a pandemia de covid-19 foi mais um agravante entre as destruições causadas pelas invasões dos territórios e por um governo sem qualquer preocupação com os povos tradicionais. “A grave crise sanitária provocada pela pandemia do coronavírus, ao contrário do que se poderia esperar, não impediu que grileiros, garimpeiros, madeireiros e outros invasores intensificassem ainda mais suas investidas sobre as terras indígenas”, aponta o documento.
Em 2020, os casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio” aumentaram, em relação ao já alarmante número que havia sido registrado no primeiro ano do governo Bolsonaro. Foram 263 casos do tipo registrados em 2020 – um aumento em relação a 2019, quando foram contabilizados 256 casos, e um acréscimo de 141% em relação a 2018, quando haviam sido identificados 109 casos. Este foi o quinto aumento consecutivo registrado nos casos do tipo, que em 2020 atingiram pelo menos 201 terras indígenas, de 145 povos, em 19 estados.”
Outro índice confirma a violação de direitos, a violência e o descaso do Estado brasileiro com a população indígena: os casos de “conflitos relativos a direitos territoriais”. De acordo com pesquisas do CIMI, foram 96 casos do tipo em 2020, 174% a mais do que os 35 identificados em 2019. E também o aumento de assassinatos de indígenas no Brasil. Em 2020, 182 indígenas foram assassinados – 61% maior do que o registrado em 2019, quando foram contabilizados 113 assassinatos.
*Fernanda Pierucci e Ramon Vellasco – Graduanda em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Fernanda Pierucci atua como fotojornalista desde 2020, começando a carreira durante a campanha eleitoral. Em 2021, iniciou pesquisa voltada para os povos originários do Brasil, com foco em identidade, gênero e ancestralidade. Ramon Vellasco trabalha como fotojornalista e repórter freelancer, desenvolvendo temas de questão urbana, cultura popular, arte, democracia, cidadania, periferia e favela
Fonte: Projeto Colabora
Publicação Ambiente Legal, 24/04/2022
Edição: Ana Alves Alencar
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