Único Oscar africano de Melhor Filme Estrangeiro no século 21, Tsotsi revela o submundo de Johanesburgo.
Por Felipe Viveiros*
Desconhecido por muitos, o segundo continente mais populoso do mundo oferece um dos mais amplos cenários culturais e étnicos do planeta. Em rica “babel” de costumes e hábitos diversos, filmes africanos ainda não se configuram no radar permanente de muitos que se interessam por cinema. Contudo, embora fora dos holofotes, produções africanas já encantaram a comunidade internacional, do alto da propriedade que têm para abordar questões sociais marcantes presentes naquele continente.
Tsotsi (“Infância Roubada”) é um começo sensível para quem pretende explorar as adversidades vividas nos guetos das metrópoles africanas. Escrito e dirigido por Gavin Hood, em uma adaptação do romance de mesmo título do sul-africano Athol Fugard, o filme aborda os desafios da desigualdade na cidade de Johanesburgo. Tsotsi é o primeiro indicado africano do século 21 a ganhar um Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. E não só. Segue sendo o único que conseguiu o feito nos últimos 15 anos.
Fugard, o autor do romance que deu origem ao filme, é conhecido como um dos maiores dramaturgos do país, sempre firme em suas posições políticas de oposição ao sistema do apartheid — regime de segregação racial na África do Sul que esteve em vigor por quase 45 anos. Ele escreveu Tsotsi em 1960, sobre um menino que vivia às margens da lei na Johanesburgo da década de 1950. Seu romance só veio a ser publicado 30 anos mais tarde, para só então ter adaptação para as telas de cinema nos anos 2000.
O idioma falado na trama é o tsotsitaal, uma variedade linguística das comunidades urbanas sul-africanas, que remete ao africâner, zulu, xhosa, tswana e sotho, cinco dos 11 idiomas oficiais da África do Sul. Tsotsi é uma gíria que significa “criminoso”, e é adotada pelo personagem principal como seu nome de guerra. Adolescente, Tsotsi cresceu e viveu na miséria, teve uma infância roubada por um pai abusivo e uma educação que foi dada por si mesmo em uma vida permeada por medos. O jovem tem grande dificuldade de manifestar seus sentimentos abertamente, de criar conexões verdadeiras e de se relacionar com amigos e habitantes da comunidade. Embora, subjetivamente mostre essa necessidade o tempo todo. Vive de furtos e assaltos na cidade. Sua vida sofre uma reviravolta quando, ao atacar uma jovem senhora em um bairro rico, rouba o carro e, só na estrada, percebe que há um bebê no banco de trás. Demonstrando irônico sentimento de amor, Tsotsi não abandona o recém-nascido, o que faz com que o protagonista descubra novos sentimentos e desenvolva uma função paterna no mundo.
A colonização exploratória a qual o continente foi submetido e o regime do apartheid podem parecer algo do passado para aqueles que têm ânsia de ver o progresso imediato. Contudo, as marcas deixadas por tais episódios são sentidas no abandono crônico de uma sociedade ainda dividida. O filme Tsotsi é o entendimento da moral, da decência, da forma que tratamos e somos tratados pelas pessoas. Uma trama que explora o contraste das “cidades de lata” e os bairros onde os cidadãos têm outras preocupações muito além da própria sobrevivência.
Assista ao trailler do filme: abaixo
*Felipe Viveiros, graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, tem extensão universitária em Comunicação Empresarial pela Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) e é mestre em Relações Internacionais e Organização Internacional pela Universidade de Groningen (Holanda).
Fonte: Cultura do resto do mundo
Publicação Ambiente Legal, 22/07/2020
Edição: Ana A. Alencar