BACHARELISMO E BIOCENTRISMO
Por José Higídio*
A aplicação da legislação ambiental no Brasil é prejudicada pelo envolvimento ideológico de operadores do Direito, especialmente do Ministério Público. O grande aumento de poder dos órgãos de controle e das carreiras jurídicas dificulta o trabalho da Administração Pública.
Esta é a opinião do advogado Antonio Fernando Pinheiro Pedro, atual Secretário Executivo de Mudanças Climáticas da cidade de São Paulo, desde junho deste ano. Para ele, o principal obstáculo do Direito Ambiental é o excesso de “bacharelismo” na gestão pública. Além disso, considera que o Brasil é negativamente influenciado pelo biocentrismo, teoria segundo a qual o ser humano não é o centro das preocupações, mas apenas mais um elemento na natureza.
Hoje com 62 anos, Pinheiro Pedro é envolvido com Direito Ambiental desde os tempos na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Foi o primeiro presidente da Comissão de Meio Ambiente da OAB-SP e participou da redação dos projetos da Lei de Crimes Ambientais, da Política nacional de recursos hídricos e do Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Como consultor na área ambiental, já prestou serviços a instituições como o Banco Mundial e a Organização das Nações Unidas (ONU), além do próprio governo brasileiro.
O secretário municipal é defensor da avaliação ambiental estratégica nas obras de infraestrutura do país, algo que não é feito com frequência. Segundo ele, a falta de avaliações do tipo, que levem em conta os impactos ambientais, explica o grande volume de judicialização na área de licenciamento ambiental.
Em entrevista à ConJur, Pinheiro Pedro ainda lamenta as indefinições do governo federal quanto à área ambiental, o que desampara os entes federados. Porém, ressalta que a sistematização existente é capaz de mitigar tais prejuízos: “Graças ao Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama), por pior que seja o governo de plantão, nós ainda conseguimos ter algum sistema de fiscalização e de gestão ambiental”.
Leia a entrevista:
ConJur — O que a Secretaria de Mudanças Climáticas pode fazer em favor do meio ambiente na capital paulista?
Pinheiro Pedro — Não só a execução do plano climático, como também autoridade hídrica da cidade, a preocupação com a alteração da matriz energética — seja do veículo, seja estacionária — e a implementação de uma série de programas relacionados com a defesa de mananciais, Mata Atlântica, entre outros.
O clima é a grande emergência do planeta. A grande palavra hoje no que tange à gestão climática, no mundo e no Brasil, é resiliência. E resiliência a gente inicia a partir da cidade. É a partir daqui que a gente vai construir a resiliência para as alterações do clima que já estão ocorrendo. Essa é a função de uma secretaria municipal sobre o clima.
ConJur — Os entes federados exercem bem seus papéis na defesa do meio ambiente hoje?
Pinheiro Pedro — Sempre houve uma confusão de competência na área do Direito Ambiental. O grande problema sempre foi a charada do que é competência concorrente legislativa e competência comum de implementação. Essa charada só foi regulamentada efetivamente com a Lei Complementar 141/2012, que estabeleceu uma série de atribuições claras para os entes federados. Até então houve muita confusão de atribuições. Principalmente quanto à implementação da legislação de fiscalização. Acho que agora nós estamos naquela fase em que, após um período de judicialização, os entes federados começam a compreender melhor o que lhes cabe na implementação da lei ambiental.
Nós podemos observar hoje, por exemplo, as autoridades locais já estabelecendo formas mais claras de fiscalização ambiental e de licenciamento de projetos de interesse local. O próprio município de São Paulo é um exemplo. Já existem hoje programas de intervenção urbana, de operações urbanas, de alterações de obras de infraestrutura com avaliações do impacto local ambiental, mas mais circunscritos aos interesses da cidade. Também o estado passou a fazer um trabalho forte de delegação de funções de fiscalização para os municípios. E com isso a gente observa no Brasil todo uma redução de conflitos nessa área.
Por outro lado, nós observamos também indefinições na área do governo federal. Infelizmente, até por razões muito mais políticas do que jurídicas. Nós observamos uma redução drástica das atividades de fiscalização do Ibama, principalmente em relação ao trabalho que lhe cabe de proteção dos biomas, como um todo. E isso tem realmente deixado vários estados — que não têm aparelhamento suficiente para fiscalização — literalmente na mão.
ConJur — A União concentra poderes demais nessa área?
Pinheiro Pedro — Não. Eu acho até que a União poderia concentrar mais poderes. Eu sou e sempre fui favorável a que obras de infraestrutura federal ficassem a cargo do licenciamento da União. Isso tem ocorrido desde o final do governo do Lula, e com razão. Havia uma indefinição muito grande com referência a essa questão do licenciamento, mas isso tem sido pacificado. O interesse nacional deve ser prevalente, até por uma razão de soberania.
Agora, é óbvio que deve haver uma preocupação ambiental desde o planejamento dos projetos de intervenção. Sempre fui favorável à introdução do Conselho de Avaliação Ambiental Estratégica. Acho que esse instrumento, até por uma falta de conhecimento por parte dos operadores da Administração Pública, não foi até o momento bem implementado.
Temos uma avaliação ambiental estratégica que foi aplicada com sucesso no programa de transporte urbano no estado de São Paulo, na região metropolitana, na década de 1990: o Plano Integrado de Transportes Urbanos (Pitu). E depois o Rodoanel foi objeto de uma avaliação ambiental estratégica. Fora essas duas obras, não se tem mais notícias de uma avaliação ambiental estratégica hoje em uso no Brasil. E isso é péssimo, porque acaba levando para o âmbito do licenciamento ambiental questões relacionadas à decisão política pela obra, que compete exclusivamente ao administrador e ao Executivo — não é objeto de discussão técnica ambiental. Isso acaba ideologizando o licenciamento ambiental. Aliás, a razão do grande volume de judicialização na área do licenciamento ambiental no Brasil é justamente a ausência de uma avaliação ambiental estratégica inserida na decisão de introdução de obras de infraestrutura no país.
ConJur — Quais são os aspectos mais positivos da nossa legislação ambiental?
Pinheiro Pedro — Primeiro, a sistematização, que existe desde quando foi estruturada a política nacional de meio ambiente. Toda política pública deve conter princípios, objetivos, instrumentos — geralmente um sistema de gestão — e normas gerais. O que salva a nossa gestão ambiental é justamente nós termos essa sistematização, que é hoje o Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama). Se bem aplicado, temos um caminho longo pela frente. Nos últimos 40 anos o que temos observado é a tentativa da Administração Pública compreender um sistema de implementação de políticas públicas.
Vimos isso bem aplicado no SUS. Graças ao Sistema Único de Saúde, que é uma política pública, estamos conseguindo nos administrar no meio do caos da pandemia. E graças ao Sisnama, por pior que seja o governo de plantão, ainda conseguimos ter algum sistema de fiscalização e de gestão ambiental.
ConJur — A legislação brasileira precisa ser endurecida?
Pinheiro Pedro — Não. Acho que nós temos leis demais. Se nós tratarmos de cumprir o que já existe já seria muito bom.
Outra coisa é acabar com o envolvimento ideológico dos operadores do Direito, em especial o Ministério Público. Acredito que agora, com esta nova legislação que está sendo discutida no Parlamento, alterando a Lei de Improbidade, tenhamos uma redução dessa interferência junto aos administradores ambientais.
A verdade é que há hoje no Brasil uma influência nefasta do que eu chamo de biocentrismo, que é uma visão extremamente radical do que seja a preocupação ecológica e que acaba fazendo uso da Lei de Improbidade Administrativa para tentar direcionar a atuação dos gestores ambientais. Isso acaba levando a inibições, a indefinições e à procrastinação do licenciamento ambiental de atividades importantes para o Brasil.
ConJur — A legislação ambiental acompanha o desenvolvimento científico?
Pinheiro Pedro — Acompanha, e não é de hoje. Nossa política nacional de mudanças climáticas, por exemplo, é de 2009. De lá para cá, temos, tanto no âmbito nacional como, por exemplo, no âmbito do município de São Paulo, uma série de avanços na área de implementação da questão ambiental no que tange ao enfrentamento das mudanças climáticas.
Da década de 1980 para cá, temos um caminho muito grande de alteração, inclusive da postura do administrador público em relação às questões ambientais, à preocupação com o planejamento. O que falta agora é a melhoria disso. Acho que o que está faltando é um melhor preparo dos operadores políticos em relação à gestão da Administração Pública. Falta um pouco mais de capacitação e técnica.
ConJur — Isso tem a ver com uma falta de diálogo ou até de conhecimento sobre lei ambiental?
Pinheiro Pedro — Isso tem a ver com uma paralisia institucionalizada a partir da Constituição de 1988, que judicializou a Administração Pública no Brasil. Tivemos de lá para cá o que eu costumo chamar de ditadura da caneta, com um aumento exponencial de poderio dos órgãos de controle e das carreiras jurídicas sobre as carreiras técnicas em toda a Administração Pública.
Hoje, para cada executor, há quatro controladores. Para cada um que executa, há uma controladoria e uma ouvidoria, um Tribunal de Contas, Ministério Público e Judiciário. Ou seja, é uma aventura conseguir executar. Principalmente se for um profissional técnico. Está sempre sob risco de, por uma indefinição técnica ou uma divergência de ordem técnica, ser juridicamente responsabilizado. Hoje você não consegue administrar sem que o promotor da esquina opine a respeito. Isso é que trava absolutamente o país. Nós estamos com excesso de juridiquês e perdemos a técnica na Administração Pública.
ConJur — Esse é o principal obstáculo na aplicação da legislação ambiental hoje?
Pinheiro Pedro — Sim. Estamos com excesso de bacharelismo na área da aplicação do Direito Ambiental e na gestão pública como um todo. Precisamos resgatar a técnica, a tecnologia e a engenharia. Eu sou defensor de uma matéria chamada engenharia legal na área da Administração Pública. Precisa voltar a ganhar lógica e reduzir os interesses ideológicos na aplicação da lei.
ConJur — O que o senhor acha da ideia de tipificar o crime de ecocídio?
Pinheiro Pedro — Todo princípio tem que ser criado a partir da experiência, da vivência, da confrontação da filosofia do Direito em relação à realidade. Não se cria princípios a partir de interesses ideológicos momentâneos, não se pode adaptar a realidade ao papel para atender ao interesse de ocasião. Ecocídio é uma figura tipicamente biocentrista.
O biocentrista tem origem fascista. O primeiro indivíduo que falou que o Direito Ambiental desloca o ser humano do centro das preocupações da norma foi Hermann Göring, na década de 1930, ao criar o Código Ecológico do Terceiro Reich. Isso desumaniza as preocupações da norma legal. O Direito tem que admitir que o ser humano é falho. É uma razão de humildade. Nós somos predadores por natureza.
É o problema do discurso ideológico influenciando áreas que na verdade são técnicas. Deixar de ouvir o biólogo, deixar de ouvir o sociólogo, deixar de ouvir o engenheiro, o arquiteto, o médico, para ficar ouvindo o ideólogo de plantão.
ConJur — O que o senhor acha da ideia de um Código Global para tratar de temas ambientais?
Pinheiro Pedro — A mesma coisa. É necessário a gente observar que estamos vivendo um processo de relativização de soberanias desde o final da década de 1970. E isso é muito grave, porque a ideia de um governo global nos preocupa. E devia preocupar muito países como o Brasil, que detêm um volume de riquezas naturais enormes, e que, de repente, pode correr o risco de ter o seu território simplesmente esgarçado por interesses internacionais. Me preocupa bastante essa globalização exagerada de normas legais.
ConJur — Em 2017, o rio Ganges foi constituído como pessoa jurídica na Índia. Isso funcionaria no Brasil? Por exemplo, com a Amazônia, para tentar brecar o desmatamento?
Pinheiro Pedro — Não. Acho que a Amazônia na verdade precisa de uma boa gestão. É um absurdo, mas temos desde 2012 o Marco de Zoneamento Ecológico Econômico da Amazônia Legal, que inclui, inclusive, o Pantanal. Demorou 35 anos para ser construído. Depois que esse instrumento foi finalmente formatado, ele sequer hoje é conhecido pelos gestores do governo federal. É muito difícil querer tomar atitudes reativas quando se despreza o próprio instrumento de planejamento que demora 30 anos para ser construído.
*José Higídio é repórter da revista Consultor Jurídico.
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 01/11/2021
Edição: Ana Alves Alencar
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