A tragédia das inundações, enxurradas e alagamentos não é mais um caso de política. É caso de polícia!
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*
Após causar tragédias em várias outras capitais do Brasil, chuvas intensas atingiram a região metropolitana de São Paulo nesta madrugada*.
Trata-se de um fenômeno cíclico, com períodos de maior ou menor precipitação, ocorrentes há milênios na bacia sedimentar do Alto Tietê. Esse fenômeno causa danos aos cidadãos paulistas há séculos. No entanto, as prefeituras da região e o governo do estado, mais uma vez, se afogaram na inundação e afundaram suas precárias administrações no lodaçal dos alagamentos.
A desculpa para a inundação de incompetência na enchente de inoperância foi mesma de sempre: as precipitações surpreenderam…
Sempre surpreenderão, pois há variações ocasionais para as quais não cabe previsão, mas que podem ser minoradas com prevenção.
A importância da Drenagem Urbana
Enchente é um fenômeno hídrico causado pela elevada vazão da água em determinado local. A cheia em decorrência de chuvas é diretamente proporcional ao volume da precipitação. A enchente, portanto, é um fenômeno natural.
Já a inundação é caracterizada pelo transbordamento. O transbordamento ocorre quando o sistema de drenagem existente não dá conta da vazão hídrica – via de regra decorrente da chuva. A inundação, portanto, é um fenômeno gerado por efeito da engenharia humana – geralmente devido à ocupação das áreas de enchente. As enxurradas caminham unidas às enchentes e expressam uma grande vazão da água, que pode ser perigosamente acelerada pela impermeabilização do solo (chamado “efeito run-off”). Por sua vez, o acúmulo de água retido em determinado local, por conta da falta de drenagem ou sua falta de eficácia, é o que chamamos de alagamento.
É função precípua dos governos, na medida em que ocorra urbanização em áreas de enchentes, reduzir e prevenir as inundações, as enxurradas e combater os alagamentos. Não por outro motivo, todo processo regular de ocupação urbana pressupõe um plano de drenagem.
A drenagem urbana implica em medidas de mapeamento, planejamento, ordenamento territorial, engenharia civil, fiscalização, educação e defesa civil.
As ações administrativas envolvem manuais e normas de postura e construção, o controle do descarte do lixo, uso de comportas residenciais ou caixas de retenção de água pluvial, instalação de válvulas de retenção nas saídas de esgoto, drenos e canaletas, construção de galerias, manutenção de bueiros, calçamento permeável, arborização, proteção de várzeas, canalização, correção de curso d’água ou sua restauração, rebaixamento de leito, correção de encostas e monitoramento de áreas de risco. Essas ações se articulam com os programas de saneamento básico, abastecimento, geração de energia, logística e transporte.
Perguntas que não calam
Da mesma forma que se deve cobrar do cidadão fazer a manutenção de seu sistema hidráulico, compete a este cobrar a administração pública quanto ao cumprimento daqueles programas.
Porém, isso não ocorre… e a natureza segue seu rumo, desfazendo e destruindo a (falta de) engenharia humana.
Vale aqui as perguntas de sempre sobre as inoperâncias de sempre:
1- Onde está o relatório do estágio e resultados dos programas de combate às enchentes e drenagem urbana?
2- Onde foram parar os bilhões de dólares e reais investidos na engenharia, como as obras de ampliação da calha do Tietê?
3- Qual é o estado operacional das dezenas de piscinões instalados há décadas nas áreas mapeadas visando controlar a vazão da água e prevenir as enchentes?
4- Onde está o demonstrativo público do estado de conservação dos aparelhos urbanos, das vias, galerias, bueiros, calhas, canalizações e cursos corrigidos das cidades da região metropolitana?
5- Quantos gabinetes de crise foram montados para planejar, prevenir, atuar e operar as emergências decorrentes das inundações e alagamentos, desabamentos de encostas e casualidades externalizadas?
6- Quantos pronunciamentos oficiais foram efetuados à população?
7- Quando o governo tucano paulista e a prefeitura plantonista irão reconhecer seus fracassos no controle da urbanização, enfrentamento das enchentes, prevenção das inundações, combate aos alagamentos e operacionalização da defesa civil?
Respostas conhecidas
Desenhos se repetem nos quadros, telas, slides e transparências das apresentações que se repetem há décadas. No entanto, os governos do estado e dos municípios não atacam – porque politicamente nunca quiseram fazê-lo, as verdadeiras causas dessa tragédia que nos inunda, qual seja: o fato evidente da ocupação desordenada da cidade impermeabilizar o solo, desbastar as áreas de encostas e com isso carrear toda a água das precipitações – independente da sua pluviometria, para um sistema de drenagem obsoleto.
Nunca haverá redução das enchentes se uma Administração Pública digna desse nome não implantar um programa objetivo, desprovido de proselitismo barato e demagogias verbais com ar tecnicista, contendo medidas de curto, médio e longo prazo, factíveis, mensuráveis e aferíveis, de recuperação da permeabilidade do solo urbano, redimensionamento da capacidade de drenagem e imposição de duras ações de repressão e prevenção dos processos erosivos e de assoreamento dos cursos d’água, lançamento irregular de lixo urbano e entulho da construção civil.
As ações necessárias são notórias, óbvias e incrivelmente simples de compreender, ainda que algumas contenham certa complexidade de implementação.
Os programas de arborização urbana se sucedem gestão após gestão… e a inoperância reiterada continua inundando sua incompetência nos escaninhos da burocracia.
Bosques florestados, parques lineares ao longo de rios e córregos, instalação de reservatórios domésticos e empresariais de águas de chuva (chamadas piscininhas), adoção de pisos e pavimentos drenantes em pátios, estacionamentos e calçadas; instalação generalizada de valetas e poços de infiltração; criminalização da erosão e ocupação de áreas de risco – são medidas já previstas em dezenas de ordenamentos legais municipais, estaduais e federais. Falta apenas vontade política de proceder à sua implementação.
Omissão criminosa
Essas ações – vociferadas milhares de vezes por milhares de técnicos em milhares de oportunidades e repetidas mecanicamente por políticos de todas as cores, há dezenas de anos, constituem programas de custo relativamente baixo – ainda que impliquem em desapropriação – além de não exigirem grande esforço de execução. Basta VONTADE POLÍTICA.
O mais trágico é que, tais medidas – repetidas como mantra no período de cheias alagamentos e inundações, se executadas, preveniriam a perda de água no sistema de abastecimento de água , manteriam o nível dos reservatórios e alimentariam os aquíferos existentes nos subsolos – ou seja, os componentes do outro mantra, repetido à exaustão nos períodos de estiagem, seca e desabastecimento.
Ou seja, o festival de inoperância, incompetência, desmazelo, descaso, corrupção e incúria, nos afeta nos extremos, todo o tempo.
A omissão é criminosa. Dela decorrem mortes e ferimentos, transmissão de doenças, perda de propriedades, lucros cessantes e despesas públicas estratosféricas.
Três fatos que revelam a incúria
No que tange à defesa civil, a Lei Federal 12.608, editada há menos de dez anos, determinada a integração das medidas de proteção, prevenção e socorro da população às políticas de ordenamento territorial, desenvolvimento urbano, saúde, meio ambiente, mudanças climáticas, gestão de recursos hídricos, geologia, infraestrutura, educação, ciência e tecnologia e as demais políticas setoriais, visando promover o desenvolvimento sustentável do país a partir dos centros urbanos.
O Município de São Paulo, por (triste) exemplo, aderiu à Campanha Global “Construindo Cidades Resilientes”, em parceria com a ONU, pela qual o gestor municipal se compromete a desenvolver políticas cujo foco é capacitar a cidade a absorver um desastre e resistir a ele, retornando a normalidade da forma mais rápida e eficiente possível.
Antes mesmo da Capital assumir esse compromisso internacional, o governo do estado, em 2004, implementou um vigoroso programa de rebaixamento da calha do Rio Tietê – que parece estar hoje, de novo, completamente assoreado.
Esses três fatos – um de ordem legal, outro de compromisso internacional e o terceiro traduzido em pesados investimentos na engenharia – expõem aos olhos do cidadão uma sucessão de indesculpáveis improbidades administrativas – despejadas por sucessivas gestões incompetentes sobre a Região Metropolitana de São Paulo.
A responsabilidade não está no clima, na chuva, nas enchentes e na ocupação irregular. A responsabilidade… e também a culpa, pertencem à Administração Pública.
O inferno são os outros
A frase lapidar de Sartre serve como uma luva na novela existencialista da incúria administrativa com relação às enchentes.
O cipoal de exculpações revela o “Rolando Lero” que habita no administrador de plantão e sua inevitável entourage.
Sempre haverá quem diga que o assunto é complexo e diz respeito à geografia política e social do país, ao histórico de ocupações, etc. Ou seja, a verdade servindo de apanágio para suportar uma grande mentira.
Na verdade (e posso dizê-lo como partícipe desses debates há décadas) essa é uma velha análise sobre uma velha realidade milhares de vezes já analisada, com soluções apontadas, meios avaliados, medidas sugeridas e várias vezes adotadas como norma, quando não programa de governo. Não fazem e não implementam porque não querem.
Pior ainda é a cara de pau se isentar atribuindo a responsabilidade à inação ocorrida nas gestões passadas. Mais uma vez é a verdade posta a serviço de uma grande mentira – para justificar uma grave omissão.
O caso, portanto, não é mais de política e, sim, de polícia.
Isso vale, no entanto, não apenas para São Paulo e, sim, para todo o Brasil.
Nota:
* chuvas precipitaram-se na madrugada do dia 10 de fevereiro de 2020 – mas poderia ter sido em datas passadas, com o mesmo efeito – ou quem sabe para a frente, se nada de novo for feito na administração da cidade e do estado.
*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa – API. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View”. Foi integrante da equipe que elaborou o plano de transição da gestão ambiental para o governo Bolsonaro.
Fonte: The Eagle View
Publicação Ambiente Legal, 10/02/2020