Burocracia surreal do órgão “à procura de absolutamente nada”, lembra o quadro de Salvador Dali…
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
O instituto que foi construído sob inspiração de Mario de Andrade e que responde pela memória da nação, está aos poucos deixando de lado sua verve gloriosa para servir à voracidade burocrática destruidora.
A voracidade normativa e burocrática do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o IPHAN, ao que tudo indica, não conhece limites.
Enquanto o Brasil inteiro luta para não soçobrar no mar enlameado da sua megaburocracia, o institutoparece querer “preservá-la para as atuais e futuras gerações”.
São inúmeros os testemunhos da pouca eficácia da atuação do órgão em relação ao cumprimento de sua finalidade, inversamente proporcional à incrível eficiência quando o caso é de manutenção e desenvolvimento de procedimentos burocráticos.
Por óbvio que esse comportamento em nada contribui com a preservação do patrimônio histórico, paisagístico e arqueológico nacional.
O governo federal mudou. Tem buscado destravar uma série de gargalos institucionais, visando fazer a economia de novo respirar. No entanto, o IPHAN continua agindo como se estivesse no auge do governo estalinista de Dilma – absolutamente envolto em pura metaburocracia totalizante.
O órgão desenvolveu um quadro de exigências visando buscar provas negativas – de inexistência – de bens de interesse arqueológico nas áreas de empreendimentos econômicos que sequer constam listadas em seus registros. Para piorar, “colou” as exigências nos procedimentos dos órgãos do Sisnama.
O absurdo normativo só tem similar no quadro surrealista pintado magistralmente por Salvador Dali – “O farmacêutico de Ampurdan á procura de absolutamente nada…”.
“À procura de absolutamente nada”, o IPHAN parece querer, na verdade, tombar o Brasil.
Tomada de assalto ao licenciamento ambiental
Nos últimos anos, tratou de se assenhorar do licenciamento ambiental, embora seja um órgão periférico do sistema.
Primeiro havia uma portaria 230 de dezembro de 2002, baixada no apagar das luzes do governo FHC, que já “empoderava” o organismo como interveniente no procedimento de licença ambiental, transferindo aos arqueólogos a função de “farmacêuticos de Ampurdan”. Depois, recentemente, no conturbado segundo mandato do governo Dilma, a portaria foi revogada para inserir-se uma Instrução Normativa mais detalhada, número 1 de Março de 2015, gerando verdadeiro procedimento paralelo de licenciamento ambiental…
Limitado em suas especialíssimas atribuições, o IPHAN ousou desobedecer (e parece que isso foi moda nos últimos anos do lulopetismo) a Lei Complementar 140/2012 – que disciplinou o licenciamento ambiental dentro do SISNAMA. O orgão de patrimônio histérico criou o seu próprio sistema paralelo de licenciamento, prevendo avaliação negativa – ou seja, obrigação de empreendedores desenvolverem amplos estudos para provar que a área que pretendem empreender NÃO tem valor arqueológico – um absurdo sem tamanho.
Em função desse “sistema de avaliação do nada para provar que ali não há nada mesmo”, foi instituída no IPHAN a “Coordenação Nacional de Licenciamento”, com a atribuição principal de “coordenar as atividades pertinentes; promover articulações entre o Iphan e os demais órgãos e entidades envolvidos em processo de licenciamento ambiental; atuar de forma articulada com os Departamentos, Centro Nacional de Arqueologia e Superintendências; e consolidar as manifestações conclusivas do Iphan nos processos de licenciamento ambiental. A coordenação está sediada em Brasília e atuará subordinada à Presidência do Iphan” (texto extraído do próprio site da autarquia).
Vale dizer, por meio de atos normativos sem qualquer autorização constitucional, nenhuma base legal e sem autorização da chefia do executivo (decreto), o IPHAN “se inseriu no contexto” do SISNAMA, autoatribuindo-se capacidade de coordenar “manifestações conclusivas” junto a um procedimento cuja lei complementar direciona á autoridade ambiental competente expressamente, essas mesmas atribuições, com exclusividade.
“Está faltando autoridade no Ministério da Cultura para conter o organismo burocrático dentro de sua própria esfera de atribuições, confessou em conversa reservada importante autoridade ministerial no governo Temer.
A frase foi dita por ocasião do recado presidencial dado ao Ministro Sarney para conter seus arroubos burocratizantes e “tirar o pé” de sua iniciativa de dificultar ainda mais o licenciamento ambiental em território brasileiro.
No entanto, os arroubos burocráticos do IPHAN estão fazendo maior estrago que as estripulias do Ministro inimigo do agronegócio brasileiro, Sarney Filho.
Até mesmo renovações de licença de projetos agropecuários consolidados, estão se vendo na “obrigação” de contratar arqueólogos para atuarem como o “Farmacêutico de Ampurdan, à procura de absolutamente nada”, como titulava Salvador Dali seu famoso quadro surrealista.
Criou-se, de fato, um nicho de mercado paraestatal para poucos privilegiados da arqueologia às custas da livre-iniciativa, rasgando-se todas as garantias que regem os limites da Administração Pública.
Judiciário começa a conter os arroubos burocráticos
O arroubos burocráticos do IPHAN, é um fato, têm contado com a cumplicidade dos “loucos por burocracia” inoculados no SISNAMA – tanto que vários estados e o próprio IBAMA seguem as diretivas alienígenas ás suas atribuições, como se elas lhes dissessem respeito…
No entanto, um forte aliado no passado recente, o Ministério Público, já começa a dar sinais de saturação.
Um exemplo recente dessa perda de prestígio foi a decisão judicial ocorrida no processo de tombamento do Hotel Reis Magos, em Natal – RN.
Justiça acatou parecer do MPF e derrubou liminar que impedia demolição do Hotel.
De fato, o TRF5 havia concedido, em fevereiro de 2016, prazo de um ano para conclusão do tombamento do prédio ao IPHAN e, por óbvio, o órgão, eficiente no ato de tombar a burocracia, não demonstrou ser eficaz no tombamento do patrimônio… Na verdade, até a decisão de se derrubar a liminar e permitir a demolição do hotel, o processo de tombamento não estava nem perto de ser concluído.
Consciente do fiasco burocrático, o judiciário negou o pedido do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional para que o município de Natal fosse impedido de conceder licença ao grupo Hotéis Pernambuco S/A – para a demolição do Hotel Reis Magos, localizado na Praia do Meio.
Fechado desde meados de 1995 e, atualmente em ruínas, o grupo proprietário do hotel anunciara sua derrubada para dar lugar a um novo empreendimento. Foi o suficiente para os atentos burocratas do Iphan a buscarem a Justiça. Contudo, em parecer de autoria do procurador da República Kleber Martins, o MPF se posicionou a favor da demolição, destacando que a permanência da atual estrutura vinha contribuindo até mesmo para alastrar problemas sociais e de saúde pública, já que o prédio estava sendo utilizado como dormitório de desabrigados e usuários de drogas, acumulando lixo e contribuindo com a proliferação de ratos e insetos.
“Não há nem nunca houve qualquer interesse coletivo em tornar perene uma estrutura que não tem, para Natal e para o Rio Grande do Norte, apelo histórico, turístico, paisagístico, arquitetônico ou de outra ordem”, registrou o procurador, em seu parecer, alertando que “preservar a inútil e sem serventia estrutura do Hotel Reis Magos não acrescentaria em nada – como nunca acrescentou – ao patrimônio cultural, histórico e arquitetônico de Natal, senão perenizaria um cartão postal decrépito e representativo da decadência da atividade turística nas Praias dos Artistas, do Meio e do Forte, que tanto depõe contra a cidade”.
O MPF entendeu, inclusive, que a demolição do prédio poderia abrir espaço para algum empreendimento que sirva, sobretudo, à atração de turistas para a orla da Praia do Meio, com a consequente geração de empregos e receitas para a cidade.
Nas palavras do procurador, a medida ainda ajudaria a concretizar os princípios constitucionais da livre iniciativa e do desenvolvimento sustentável, porque estimularia outros empresários a instalar estabelecimentos congêneres na mesma região, hoje desprezada pela iniciativa privada justamente pela consciência de que não vale a pena correr o risco de investir recursos em setores e locais degradados, “cuja intervenção causa terror em algumas poucas pessoas e instituições desta cidade, que, sem qualquer razão plausível, enxergam os empresários como ‘inimigos natos da cultura e do meio ambiente’”.
O Ministério Público ainda argumentou que caso subsistisse, ainda que temporariamente, o entrave jurídico, haveria “o fundado receio de que a empresa proprietária do imóvel, sediada em Pernambuco, desista de fazer o referido investimento no Município de Natal para fazê-lo em outra localidade”.
Caso emblemático
A ação cível de autoria do Iphan tramita na Justiça Federal sob o número 0804514-79.2015.4.05.8400 e foi precedida pela Ação Cautelar 0800490-42.2014.4.05.8400, na qual o instituto obteve uma liminar proibindo o Município de Natal de conceder a licença de demolição, alegando inclusive que um processo administrativo de tombamento do edifício havia sido instaurado.
Porém, passados três anos, não havia sequer previsão de conclusão dos estudos necessários ao tombamento.
Em fevereiro de 2016, ao julgar os recursos referentes à liminar, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5) percebendo o entrave burocrático sem causa, estipulou um prazo de um ano para que o tombamento fosse concluído, após o qual a liminar perderia seus efeitos.
O prazo expirou sem que o processo fosse encerrado.
O judiciário convenceu-se, então, da desproporcionalidade da causa. “(…) Convém que se indague se é razoável que se aguarde a conclusão daquele processo, ainda mais quando ele dá mostras de que não tem prazo para acabar”, ressaltou a juíza federal Moniky Fonseca, autora da nova decisão.
A justiça apontou que “não há nos autos da presente ação qualquer notícia da conclusão dos trabalhos referentes ao tombamento, mesmo ante a proximidade da conclusão do referido prazo”.
A magistrada oficiante explicou que não havia elementos que comprovassem que o prédio atendia a todos critérios necessários ao tombamento: “o que se tem são estudos inconclusivos e isolados de caráter opinativo acerca do caráter histórico e cultural de um bem que se encontra desativado há mais de 20 anos sem que o Poder Público tenha certificado tais qualidades em relação ao indigitado bem”.
Ao mesmo tempo, a juíza considerou indevido que réus fossem obrigados a aguardar “ad infinitum” pela conclusão do processo de tombamento, “ainda mais quando há potencial ameaça à saúde pública e à segurança no entorno do imóvel, já proclamada inclusive pelo crivo da análise ministerial”.
Com efeito, o caso é emblemático. Revela todo o espectro de sandice burocrática sem qualquer eficácia, que hoje domina o importante órgão encarregado de salvar o combalido patrimônio histórico nacional
Conclusão
Este articulista já se manifestou, juntamente com o professor Martinus Filet, sobre problemas do órgão com relação à legalidade, finalidade e eficácia de normas relacionadas ao licenciamento ambiental de atividades alheias, em princípio ao IPHAN*. Com essa decisão judicial, o quadro surreal do instituto se escancara.
É hora do Ministro da Cultura, Roberto Freyre, se debruçar sobre a estrutura e funcionalidade do órgão, em prol do Estado de Direito e da segurança jurídica essencial à economia e ao próprio equilíbrio ambiental.
De toda forma, o judiciário já está sinalizando que a tendência é que a sanha burocrática do IPHAN perca aliados na jusburocracia e… com o tempo, reduza sua absurda interferência nas atividades exógenas á sua tutela.
Hora de sair do quadro de Salvador Dali e parar de querer tombar o Brasil…
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP) e jornalist. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Membro do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, das Comissões de Política Criminal e de Infraestrutura da OAB/SP. É membro do Conselho da União Brasileira de Advocacia Ambiental, Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa – API, Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.
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Mesmo assim,é preferível o excesso de burocratismo para evitar qualquer derrame irrecuperável.