Qual o volume mínimo de água necessário para manter em operação o Hospital das Clínicas de São Paulo? E no Zoológico ou Instituto Butantã? Quantos são os asilos da macrorregião? E quantas são as pessoas acamadas? Quanta água ainda existe, por quanto tempo e para qual uso? Itu deve servir de exemplo para um rigoroso planejamento do recurso.
Por Sandra Porto
Visitamos Itu no final de outubro (2014) para conhecer a cidade distante apenas 101 quilômetros da capital do estado. O nome da localidade é uma corruptela de Utu-Guaçu, cujo significado é ‘grande queda d’água’. Porém, os quase 164 mil moradores não dispõem de informações confiáveis para montar uma rede de proteção contra os efeitos da crise hídrica sem precedentes na história da estância turística.
A Prefeitura e a empresa responsável pela água e esgoto, a Águas de Itu, não apresentaram para a população um plano de distribuição com regras claras quanto a dia, hora, quantidade por pessoa e quais cuidados observar ao consumir água de procedência desconhecida. Os depoimentos contradizem o planejamento municipal. Aqueles com necessidades especiais (doentes, idosos e crianças) colecionam protocolos sem resposta para seus pedidos. A cidade segue funcionando.
No Centro, restaurantes, lojas, escolas, igrejas, hospitais, tudo com cara de normalidade. Até os lava a jato não pararam suas atividades, embora empresários do setor tenham registrado quedas de 35% na procura pelo serviço. O comércio reclama a ausência de turistas. Na igreja Matriz o banheiro está interditado. E os evangélicos diminuíram um dia de culto na semana.
Há um clima que pendula entre a solidariedade e o pé atrás. O conflito se estabelece na base do ‘diz que me disse’ sobre a equidade na distribuição da água. Os relatos já têm o germe da desconfiança de que uns saem melhores do que outros na divisão do escasso recurso. Na avaliação geral faltou obra se infraestrutura, como de represamento e aproveitamento de chuvas.
Num mundo em que se fala tanto de higiene, como é que vai ficar essa situação? Daqui a uns dias vai estar tudo empesteado!’, desabafa dona Gonçala, Jardim São Marcos. Cada um armazena como dá, reaproveita todo o possível e se sente feliz por encontrar meios para poupar.
Logística feita a lápis
Pela manhã, Luiz, o motorista do caminhão pipa da empresa terceirizada de São Bernardo do Campo se apresenta no pátio da Águas de Itu Exploração de Serviços de Água e Esgoto S.A. e recebe um papel com os dizeres manuscritos – ‘Rua Adelino Xavier da Silveira. Vila Santa Rosa.Abastecer toda a rua’.
‘Na ordem de serviço estava escrito Bairro Santa Rosa, fui lá do outro lado da cidade e não encontrei essa rua. Voltei na firma e eles falaram que não era bairro. Era Vila. Eu não vinha aqui. Abasteci a rua de baixo na terça-feira, só que tinha um caminhão abastecendo esta rua também. Até estranhei que me mandaram voltar dois dias depois’, explica.
Esse ‘planejamento’ é confirmado por Daniel, há seis meses na cidade e morador da rua, ‘Estou tendo muita sorte. Tem caminhão nessa rua sempre. Acho que é porque aqui tem um posto de saúde. Os que abastecem o posto, não atendem a gente. Aí, depois de duas horas, um dia no máximo, aparece um. Tem vezes que vem dois no mesmo dia’.
Apesar da declarada abundância, a também moradora, dona Sérvula, que nasceu e vive na cidade há 45 anos, estava aflita por pelo menos mil litros para aquele dia. ‘O caminhão não quer abastecer e estou com pouco.
Frente ao perigo iminente da paralização do fornecimento de água, desde agosto, por força do decreto n ̊ 2124, parte dos poços artesianos da empresa Rizzi Transporte de Água, em operação desde 1968, foi requisitada pela Prefeitura. Além de abastecer as Estações de Tratamento de Itu, a empresa mantém uma torneira no sítio Nossa Senhora do Socorro, área rural . Lá a regra é: cada um tem direito a 200 litros/dia, das 7 às 17 horas. Segundo a funcionária, Cristina, ‘tem uma pessoa no local para informar sobre o uso racional do recurso’.
Distribuição sem critério
O motorista Luiz explica que o caminhão tem 18 mil litros e que consegue abastecer até 10 casas. ‘Depende de quantas caixas a pessoa tem. Acontece de o cliente ter quatro, cinco caixas de mil litros, já são cinco mil. Quando vejo que é uma caixa grande, encho a metade. Agora, se são três caixinhas de 500 ou de mil, eu ponho, senão eles ficam bravos dizendo que a gente está negando água.’
‘O pessoal da Águas de Itu não me falou nada sobre a quantidade por pessoa’ esclarece e conta que já foi acusado de vender o que é gratuito. ‘O caminhão que estava fazendo uma rua, pulou uma casa. A mulher me parou, pediu se eu enchia a caixa dela. Enchi. A vizinha disse que era venda. Deu o maior rolo. Tirou foto. Ia colocar no jornal. A dona da casa fez boletim de ocorrência por difamação’.
Dona Maria Francisca tem a mãe acamada. Fez protocolo para pedir abastecimento prioritário e depois de 48 horas, nada de caminhão pipa. ‘Eu peguei água até de Sorocaba. Paguei R$ 100 por 1.500 litros. Aqui estão enfiando a faca – mil litros é R$120’.
Dona Gonçala propõe uma questão interessante: ‘A região tem água. Como os caminhões particulares acham para vender para o povo a preço de ouro e eles não conseguem trazer para ninguém?
Matéria pulicada originalmente em Ambiente Legal, versão impressa: http://goo.gl/LZpr9i
Fotografias de Cláudio Arouca