Crise envolvendo Ricardo Salles lembra o Filme do Zé Colmeia
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
Não surpreende
O Ministério Público paulista anunciou abertura de inquérito de improbidade administrativa arrolando o Secretário do Meio Ambiente do Estado, Ricardo Salles e duas outras funcionárias da Secretaria. A suspeita é de interferência indevida no processo de elaboração do plano de manejo da APA da Várzea do Tietê. O imbróglio, no entanto, pode ser a ponta de um iceberg de celeumas na gestão escalafobética de um secretário sem ambiente no local que administra, e sem qualquer compromisso ideológico com a secretaria que dirige.
Uma má indicação trilha por caminhos piores. Essa lição já deveria ter sido aprendida por Geraldo Alckmin.
Já havíamos alertado para a possibilidade de problemas meses atrás*. Assim, o que agora noticiam os jornais não surpreende politicamente o governador.
A questão investigada pelo MP inclui organismos privados, como a FIESP – Federação das Indústrias do Estado de São Paulo e envolve a adulteração dos mapas e minutas do zoneamento da área de proteção ambiental da várzea do Rio Tietê, que corta a Região Metropolitana de São Paulo.
Ao que noticia o órgão do Ministério Público paulista, o gabinete da secretaria teria tratado de “compatibilizar” o zoneamento proposto para a Várzea, com atividades minerárias e industriais – contrariamente às justificativas técnicas já constantes do procedimento. Para tanto teria ocorrido adulteração de mapas e minutas após terem sido os documentos originais aprovados pelo Conselho Gestor da APA (Área de Proteção Ambiental) do Tietê. Executadas as mudanças, o gabinete teria encaminhado os documentos à aprovação do Conselho Estadual do Meio Ambiente – CONSEMA, consolidando administrativamente a fautoria.
A manobra, ao que apurou o MP, envolveria assédio à funcionários e pressão para que as alterações não fossem reveladas antes de aprovadas no CONSEMA.
A pressão motivou pedido de demissão do coordenador do Setor de Geoprocessamento e Cartografia da Fundação Florestal, Victor Godoy da Costa.
O MP apresentou emails trocados e relatos de reuniões dos agentes públicos com representantes da FIESP, indicando que as alterações foram esboçadas atendendo a demandas de associados da federação. Os esboços foram entregues aos técnicos da Fundação Florestal – mapas anotados a caneta e post-it indicando o que deveria ser alterado.
O relato dos fatos no inquérito parecem ter sido extraídos do roteiro do filme “Zé Colmeia”, tamanha a sucessão de traquinagens executadas em cima de áreas de preservação, visando favorecer o capital privado.
O fato revela impressionante divórcio do secretário com o organismo que deveria dirigir.
Um Secretário sem ambiente
Os atritos do indicado político do PP com a área técnica da Secretaria de Meio Ambiente não são gratuitos. Decorrem do que parece ser o cumprimento de uma operação de desmonte do sistema de gestão ambiental paulista. Não é pouco, pois a estrutura de gestão ambiental paulista é considerada a quinta maior do mundo em abrangência e eficiência.
Essa batalha do governo paulista contra suas instituições de gerenciamento ecológico só é comparável ao pretendido pelo governo de Donald Trump, em relação à Agência de Proteção Ambiental norte americana.
A questão não parece ser de improbidade – como querem os que reagem às mudanças pretendidas, mas, sim, um choque de posturas ideológicas. Salles é um privatista convicto. Não tolera (talvez com alguma razão) uma máquina burocrática retro-alimentada por ciclos repetitivos de medidas administrativas que não levam a lugar algum. Talvez por essa razão, Salles já havia tentado interferir na cereja do bolo ambiental paulista, a CETESB. Deslocou gabinetes e misturou departamentos da agência pelos andares do prédio que a ela pertence, do qual a secretaria é mera inquilina.
A rede de intrigas levou o presidente da companhia a pedir demissão. Porém, o governador não permitiu ao secretário que se envolvesse na indicação do sucessor, preservando a a autonomia da agência.
Com o Instituto Florestal e Fundação Florestal, no entanto, o caso foi diferente. Salles, após vistoriar as sedes das entidades e constatar “a total falta de controle sobre as atividades ali realizadas”, dizimou a estrutura dessas organizações – transferiu funcionários e sedes, de forma a deixá-los literalmente sob suas vistas. Visando conter gastos, baixou normas de restrição orçamentária e designou seu secretário adjunto como “guarda de trânsito”, monitorando o tráfego de serviços por meio da aprovação de pequenas verbas.
O conflito começa, agora, a produzir seus efeitos.
Mais uma improbidade?
Em socorro das instituições, os ex-diretores do Instituto Florestal encaminharam ao Governador Geraldo Alckmin uma dura manifestação contra o Secretário, requerendo fossem anulados os atos de Ricardo Salles e nomeada uma comissão de notáveis para praticamente intervir na Secretaria de Estado do Meio Ambiente.
Ante a gravidade e seriedade do fato, o Secretário agiu com agressividade. Declarou na sua rede social predileta que “quando a gente abre a tampa do bueiro e joga inseticida, sai barata correndo para todo lado”. A manifestação anexava uma foto do manifesto dos ex-diretores do Instituto Florestal.
A reação despótica, entretanto, não parou no Instagram. A Secretaria encaminhou e tratou de articular abertura de inquérito policial contra os ex-diretores do IF, acusando-os de “falsificação de selo ou sinal público”, relacionado ao uso de um carimbo em uma carta nitidamente particular, endereçada à mais alta autoridade do Estado.
A ação da secretaria, no fragor do conflito, foi precipitada – pois o “selo” em questão, contido no manifesto, se resume a um carimbo histórico do IF, que não representa mais o selo oficial da autarquia há décadas. Ou seja, além de arbitrária, a atitude oficial ignorou os símbolos em uso no sistema de gestão ambiental paulista.
O esforço para abrir inquérito policial, por si só, fez a festa dos que reagiam às mudanças pretendidas e já poderia justificar, segundo estes, nova investigação do Ministério Público por improbidade administrativa contra a atual gestão na secretaria.
Porém, o pior não está nos atritos funcionais. Está no choque de visões ideológicas.
“Jellystone” é aqui?
No final de 2016, a Secretaria de Meio Ambiente baixou o CHAMAMENTO PÚBLICO Nº 01/2017/GS – PROCESSO 10.108/2016, contendo Termo de referência visando a prospecção de interessados emn concessão de uso ou aquisição de áreas, no todo ou em parte de unidades administradas pelo Instituto Florestal.
O edital afirmava que as áreas de proteção ambiental poderiam “ser melhor manejadas por meio de sua concessão de uso ou alienação ao setor privado”.
Informava ainda o Termo:
“Com bases nas autorizações legislativas, a Secretaria do Meio Ambiente busca parcerias para concessão de uso destas unidades, visando a exploração comercial madeireira ou de subprodutos florestais associada a melhoria de gestão, manejo florestal e conservação ambiental, ou ainda, interessados para sua aquisição, no todo ou em parte. “
O Termo, para os técnicos herdeiros de um histórico burocrático de dezenas de anos, soou algo como rifar as áreas e eliminar o IF.
Segundo uma importante autoridade que não quis se identificar, “o que deveria ser a base para um sistema sólido de proteção da biodiversidade paulista vai, inconstitucionalmente, ser destruído”.
De fato, a “autorização legislativa” para o “Termo” em referência, não possui o alcance pretendido no documento emitido pela secretaria. Tanto assim é que ditas “autorizações legislativas” sequer constam enumeradas e nominadas – fato obrigatório, tratando-se de um termo de referência para chamada pública de interessados.
A “rifa” de áreas florestais do Estado de São Paulo, levando em consideração o choque ideológico provocado pelo gestor da Secretaria, segue uma parábola cinematográfica similar á do filme do “Zé Colmeia”.
O filme, aliás, parece ter se alimentado da base doutrinária do governo privatista de Donald Trump – igualmente em choque profundo com o sistema de proteção ambiental norte-americano.
A comédia cinematográfica, pelo visto, e por isso mesmo, resume de forma farsesca a crise de gestão do governo do estado – ou pelo menos serve para demonizar a visão privatista de seu secretário, como se ele fosse daqueles que assistem o filme e, no entanto, vibram com a performance do vilão…
A sinopse do filme Zé Colmeia é reveladora:
O parque Jellystone, casa de Zé Colmeia e Catatau, há dez anos não trazia “lucros”. Devido a isto, o prefeito Brown resolve fechar o parque e vender suas terras para especuladores e madeireiras, de forma a incentivar sua campanha para governador. Ao saber disto, Zé Colmeia e Catatau unem forças com o guarda Smith e Rachel – uma cineasta que está rodando um documentário no parque, na tentativa de encontrar uma saída para salvar Jellystone.
O filme é hilário. Já a versão paulista… não é comédia e, sim, drama.
Para os técnicos do sistema, atingidos diretamente pelas medidas pretensamente saneadoras e claramente privatizantes de Salles, é hora de acabar com o “show” e remover o secretário “Brown”, antes que o conflito ganhe proporções a ponto de atingir o próprio Governador Geraldo Alckmin.
São Paulo, de toda forma, não é “Jellystone”.
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, das Comissões de Política Criminal e de Infraestrutura e Sustentabilidade da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB/SP. É membro do Conselho Consultivo da União Brasileira de Advocacia Ambiental, Vice-Presidente Jurídico da Associação Paulista de Imprensa – API, Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.