Por Vladimir Passos de Freitas*
O sistema de três Poderes de Estado, independentes entre si, foi idealizado por Charles de Secondat, o Barão de Brède e de Montesquieu. Experiente magistrado, prevendo a queda das monarquias absolutas, ele escreveu o Espírito das Leis, alertando: “todo homem que tem poder é levado a abusar dele; vai até encontrar os limites”[1]. E por isso propôs a divisão do Estado em três Poderes, com funções próprias e cada um freando os excessos do outro.
Após a Revolução Francesa de 1789, contra os abusos praticados pelos juízes do Ancien Régime, adotou-se a proposta de Montesquieu, reconhecendo no juiz a bouche de la loi, ou seja, o aplicador da lei. Só isso e nada mais do que isso. Para evitar embates políticos, a França criou uma Justiça Administrativa para julgar, em caráter definitivo, os conflitos do cidadão contra a administração, cabendo à Justiça ordinária decidir as controvérsias entre particulares [2].
A tripartição de Poderes representa um ideal que nem sempre é de fácil aplicação no mundo real. Muitas vezes, o que cabe a cada um, Legislativo, Executivo e Judiciário, permanece em uma linha tênue, indefinida, despertando conflitos entre os Poderes. Ademais, tais conflitos só existirão nos países em que a democracia seja uma realidade e a divisão de Poderes mais do que uma simples referência na Constituição.
Disso se conclui que nenhum conflito publicamente declarado existirá em um país que viva sob regime ditatorial. No passado isso ocorreu, no Brasil, na era Vargas (1930-1946) e durante o regime militar (1964-1984). Atualmente existe em vários países, ora de forma explícita (v.g. Coreia do Norte) ou implícita (v.g., Nicarágua). Em tal situação, nenhum juiz terá poderes ou coragem para desafiar o Poder Executivo. Afinal, de ninguém se pode exigir heroísmo, principalmente dos que têm família a sustentar.
Assim sendo, partindo-se da premissa que um país viva em plena democracia, os juízes receberão pedidos das mais diversas espécies nas ações que lhe são submetidas. E, como afirmou Earle, “a interpretação da lei é, em todos os lugares, a função do Poder Judiciário; e, como a Constituição é a lei fundamental, os juízes não têm escolha, senão declarar inconstitucional qualquer ato que infrinja as cláusulas da Constituição” [3]. Nessa missão, por vezes espinhosa, o divisor de águas ocorreu nos Estados Unidos da América, no famoso caso Marbury x Madison.
No ano de 1800, o presidente John Adams, representante dos federalistas, perdeu a tentativa de reeleição para presidente da República para o republicano Thomas Jefferson. Visando manter o poder junto ao Judiciário Federal, no fim de seu governo Adams altera o Judiciary Act, dobrando o número de juízes federais. Entre os nomeados estava William Marbury. Jefferson assume a presidência em 1801 e nomeia James Madison Secretário de Estado. Madison examinou as nomeações e, concluindo que os atos administrativos estavam incompletos, por falta da entrega da carta de nomeação aos nomeados, anulou os atos [4].
Marbury entrou com ação perante a Suprema Corte, sustentando seu direito de nomeação. Em 1803, sob a condução e relatoria do seu presidente John Marshal, entendeu a corte que o artigo 13 do Judiciary Act era posterior à Constituição, com ela incompatível e, por isso, nulo. A decisão era erga omnes, ou seja, deveria ser seguida por todos os tribunais obrigatoriamente. Marshal, competente e habilidoso, não disse que um ou outro errou, apenas reconheceu nulidade do diploma legal e, com isso, todas as nomeações foram anuladas, alcançando-se o real objetivo. Ou seja, “se por um lado emitia decisão que seus inimigos no governo não poderiam descumprir, já que não lhes ordenava nada, por outro lado afirmava para a Suprema Corte um poder que nunca antes experimentara, um poder que nos séculos que se seguiram revelou-se capaz de erigir a Suprema Corte a papel de suma importância jurídica e política” [5].
Esta decisão representa o nascimento da possibilidade de o Judiciário rever os atos dos Poderes Legislativo e Executivo, o chamado judicial review. De lá para cá, ora mais, ora menos, a tensão entre os Poderes de Estado sucede-se no tempo e no espaço. Vejamos.
A Argentina passa atualmente por crise entre instituições. A ex-presidente da República,Cristina Kirchner, da ala política de esquerda, foi condenada a seis anos de prisão pelo Tribunal Federal 2 de Buenos Aires, que é o equivalente aos nossos TRFs. Inconformada, ingressou perante a Corte Suprema de Justiça da Nação com um pedido de remoción (leia-se demissão) dos desembargadores (lá chamados de camaristas) que, ao seu ver, seriam suspeitos e não poderiam ter participado do julgamento. Sua preocupação vai além desse julgamento, porque responde a outras ações penais. A corte, julgando o recurso de Kirchner, sem entrar no mérito da condenação, por unanimidade, decidiu manter os juízes no cargo, impondo uma derrota à ex-presidente [6].
O fato levou o atual presidente da República, Alberto Fernández, junto com mais 11 governadores de províncias (estados no Brasil), a pedir o início de um processo de juicio político, ou seja, o impeachment dos ministros Carlos Rosenkrantz, Juan Carlos Maqueda y Ricardo Lorenzetti, por mau desempenho das funções [7]. O presidente da corte, Horacio Rossati, respondeu que o tribunal não inventa um caso, as ações chegam, que é normal em uma democracia uma tensão quase permanente entre os Poderes e que é preciso acostumar-se a isso [8].
O juízo político terá início no Conselho da Magistratura, conforme artigo 114, IV, mas eventual demissão de ministros da corte só pode ser feita pela Câmara dos Deputados, nos termos do artigo 53 da Constituição da Argentina [9]. Será preciso maioria de votos de deputados vinculados ao grupo peronista, ao qual pertence Fernández.
Do Oriente Médio vem-nos outro caso de conflito com o Judiciário. Israel, país de regime parlamentarista, tem como primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, um político de direita, que tenta neste momento promover uma reforma do Poder Judiciário. Israel não tem Constituição, mas sim as chamadas leis básicas, que regulam as instituições e as relações delas dentro do Estado. Netanyahu deseja, basicamente, impedir a Suprema Corte de revisar leis do Parlamento, permitir ao Legislativo rejeitar decisões da Suprema Corte por maioria de votos e alterar a forma de provimento de cargos do Judiciário, inclusive da corte [10].
Muito embora Israel viva uma realidade muito diversa da brasileira, com permanente risco de ataques externos, tais reformas, evidentemente, enfraqueceriam a tripartição de Poderes, retirando das mãos do Judiciário praticamente a força das suas decisões. A população vem protestando contra a reforma do Judiciário de forma crescente, sendo que no dia 9 deste mês milhares de pessoas bloquearam os trilhos de trem e a estrada que leva ao aeroporto, dificultando viagem aérea de Netanyahu à Itália [11].
De forma menos intensa, porém não menos grave, no México o presidente Lopes Obrador, líder da esquerda, vem atacando permanentemente o Instituto Nacional Eleitoral (INE), que organiza as eleições no país, com graves e contínuas acusações na mídia. Ocorre que “o INE é reconhecido mundialmente como um modelo a seguir por países cuja democracia é real e não simplesmente mais uma peça da cenografia que os autocratas usam para parecer democratas” [12]. O último golpe de Obrador foi reduzir o orçamento do INE, de modo a diminuí-lo em suas possibilidades de ação.
Como se vê, entre o Judiciário e os demais Poderes de Estado, principalmente o Executivo, há uma tensão permanente.
Voltando ao Brasil, se é impossível evitar tal tensão, o que se tem a fazer é os juízes respeitarem regras não escritas de boa convivência, não pessoalizar as controvérsias, não humilhar a autoridade administrativa quando anular a sua decisão, não dar opinião sobre suas decisões nos meios de comunicação, jamais manifestar-se sobre caso que virá a julgar, evitar confraternizar com políticos fora de representação institucional em solenidades, não cair na tentação de ser um influencer digital, pois não é esse o seu papel, não assumir posições políticas nas redes sociais e outras tantas medidas semelhantes.
Eis, em síntese, a controvertida separação de Poderes. Mais de 230 anos depois da morte de Montesquieu, é preciso que os líderes percebam sua lição e a necessidade da convivência pacífica.
P.S. Comentários sobre os conflitos no Brasil foram propositadamente omitidos, aguardando-se que passe o atual momento de paixão 10, racionalidade 0.
[1] MONTESQUIEU, Barão de Brède e. O Espírito das Leis. São Paulo: Ed. Saraiva, 1987, p. 24.
[2] BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Breves reflexões sobre a jurisdição administrativa: uma perspectiva de direito comparado. Rio de Janeiro: . Revista de Direito Administrativo nº 211, jan./mar. 1998, p. 65..
[3] EARLE, Edward Mead. Apresentação do livro O Federalista, Alexander Hamilton, James Madison e John Jay. Campinas: Russel, 2003, p. 26
[4] Disponível em: https://thiagobo.jusbrasil.com.br/artigos/451428453/conheca-o-caso-marbury-vs-madison. Acesso em 8 mar. 2023.
[5] STERN, Ana Luiza Saramago. O CASO MARBURY V. MADISON: O NASCIMENTO DO JUDICIAL REVIEW COMO ARTIFÍCIO POLÍTICO. In: Revista Direito e Liberdade – RDL – ESMARN – v. 18, n. 3, p. 193-212, set./dez. 2016, p. 196.
[6] El Pays. Enric González.Supremo argentino impede transferência de três juízes que participam de processos contra Cristina Kirchner. Disponível em: https://brasil.elpais.com/internacional/2020-09-30/supremo-argentino-impede-transferencia-de-tres-juizes-que-participam-de-processos-contra-cristina-kirchner.html. Acesso em 9 mar. 2023.
[7] El Cronista. Martin Dinatale. Pelea con la Corte: Alberto Fernández presentó el pedido de juicio político con apoyo de 11 gobernadores propios. Disponível em: https://www.cronista.com/economia-politica/pelea-con-la-corte-alberto-fernandez-presenta-el-pedido-de-juicio-politico-sin-apoyo-de-algunos-gobernadores-propios/. Acesso em 9 mar. 2023.
[8] El Cronista. Horacio Rosatti respondió a las críticas de Alberto Fernández: “Sabíamos que…”. Disponível em: https://www.cronista.com/economia-politica/horacio-rosatti-respondio-a-las-criticas-de-alberto-fernandez-sabiamos-que/. Acesso em 9 mar. 2023.
[9] ARGENTINA. Constitución de la Nación Argentina. Disponível em: https://www.oas.org/dil/esp/constitucion_de_la_nacion_argentina.pdf. Acesso em 9 mar. 2023.
[10] BBC News Brasil. Julia Braun. A polêmica reforma judicial proposta por Netanyahu vista como ameaça à democracia em Israel. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c6pnd2jz13jo. Acesso em 9 mar. 2023.
[11] BAND.com.br. Edgar Maciel. Manifestantes protestam contra reforma do judiciário em Israel. Disponível em: https://www.band.uol.com.br/noticias/jornal-da-band/ultimas/manifestantes-protestam-contra-reforma-do-judiciario-em-israel-16588091. Acesso em 9 mar. 2023.
[12] O Estado de S. Paulo, Internacional. Moisés Naim, Antidemocracia em Israel e México. São Paulo: 6 mar. 2023, A12.
*Vladimir Passos de Freitas é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR, desembargador federal aposentado, ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça, promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 17/03/2023
Edição: Ana Alves Alencar
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