Lei que abunda sem eficácia e Justiça inócua que se precipita, são ejaculativas. Não resultam e não satisfazem….
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
Na fisiologia, ejacular corresponde ao ato masculino de expelir o esperma no momento do orgasmo. Significa também o despejo em profusão ou em jato de qualquer líquido. Em sentido figurado, representa o despejar abundante de palavras ou verborragia, apostos em qualquer arrazoado.
Assim, tal qual ocorre fisiologicamente, a precipitação e a demagogia, ainda que plenas de boas intenções, tornam-se meras ejaculações, se não atingem objetivos e resultam infrutíeras. Nas funções de Estado, a lei que abunda sem eficácia e a Justiça inócua que se precipita, tornam-se ejaculativas: atos expelidos pelo Estado, que não resultam e não satisfazem.
Justiça Ejaculativa
Um exemplo de Justiça Ejaculativa é o caso da cidadã vítima de um atentado contra sua incolumidade física, conspurcada de forma infamante por um tarado sexual no interior de um transporte público. Em plena tarde, na Avenida mais importante da Cidade de São Paulo, a Avenida Paulista.
Preso o indivíduo e encaminhado à autoridade judiciária, foi posto por esta em liberdade…
Ejacular sobre alguém, em situação não condizente com uma relação sexual consentida, expondo a vítima da ação ao opróbrio e a situação vexaminosa, não é algo que possa passar em branco aos olhos vendados da Justiça, que se é cega em relação às diferenças entre partes, tem por obrigação ver, divisar, prevenir e reparar a injustiça. Afinal, a justiça é cega, mas não deve ser insensível.
No Estado moderno, no entanto, o Poder encarregado de aplicar a justiça aos casos concretos e conflitos da sociedade politicamente organizada, o Poder Judiciário, não pode agir sem que haja norma legal que expressamente o autorize a aplicá-la.
O caso, vexaminoso, não pode ser visto fora do seu contexto. Na última semana de agosto de 2017, foram noticiadas pelo menos três ocorrências de violência sexual no transporte contra mulheres em São Paulo.
A primeira delas foi a denúncia feita nas redes sociais pela escritora Clara Averbuck, que acusa um motorista do Uber de ter cometido um estupro contra ela na madrugada do dia 29 de agosto. Depois, nos dias 29 e 30, houve dois casos de mulheres vítimas de abusos sexuais não consentidos por homens dentro de dois ônibus que passavam pela Avenida Paulista durante o dia.
No caso ocorrido no dia 29, um homem, que viajava em pé em um ônibus lotado, se masturbou e ejaculou no rosto da passageira que seguia sentada no banco, à sua frente, e que estava dormindo. O fluxo atingiu o pescoço da vítima que, assustada com o impacto e a agressão absolutamente injuriosa, gritou, chamando a atenção dos demais passageiros e do motorista, que cerrou as portas do ônibus e chamou a polícia. Levado para a delegacia logo após o episódio, verificou-se que o ejaculador possuia pelo menos cinco ocorrências policiais por suspeita de estupro e termos circunstanciados por assédio, sem nunca ter ido a julgamento.
No dia seguinte à prisão, conduzido o autor para audiência de custódia, a pedido do Ministério Público, o homem foi solto pelo juiz, que justificou a decisão por não estar ao seu ver configurado um estupro e sim contravenção penal de “importunação ofensiva ao pudor”, inocorrendo “constrangimento tampouco violência”.
Desde então, o caso vem repercutindo na opinião pública, gerando debates inflamados nas redes sociais.
O Estupro legal…
O crime de estupro, previsto no artigo 213 do Código Penal, evoluiu teleologicamente nos últimos anos, para além da extração literal do texto da lei (“constranger alguém a manter conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso mediante violência ou grave ameaça”). Tanto é que, em 2009, os crimes de estupro e atentado ao pudor foram agrupados, justamente visando alargar a definição do tipo penal, de forma que hoje, o estupro pode ser considerado qualquer constrangimento violento de alguém.
É certo que há a figura penal da contravenção, que tipifica atos de menor poder ofensivo, atribuindo configurando a conduta de importunação ofensiva ao pudor, que ocorre quando não há violência na importunação perpetrada. Foi nessa figura que buscou o magistrado enquadrar a conduta do ejaculador do ônibus.
Vivemos, porém, a era das suscetibilidades. O avanço do controle social sobre a intimidade das pessoas, a criminalização da consciência, a discriminação de quem supostamente discrimina e o resgate sistemático do rancor como forma de empoderamento entre gêneros, tornou o beijo forçado ou o apalpar do corpo, condutas similares ao estupro. Há de fato uma desproporção entre formas em tese, subjetividade apurada nas condutas em tela e a demanda social em causa.
Por outro lado, o aumento em escala da violência, em todos os níveis, incluso o doméstico, torna urgente uma ação preventiva e corretiva do Estado, em um mundo cujas gerações, sucessivamente, esvaziam-se de conteúdo enquanto permanecem lotadas do mais desprezível egocentrismo e desprezo á dignidade própria e alheia.
Embora haja uma exaltação de ânimos evidente quanto à figura do assédio ou da injúria por preconceito de gênero, o fato é que a justiça vem progressivamente tutelando questões relacionadas à prática de condutas invasivas ou assédios explícitos, incorrendo, muitas vezes, em soluções desproporcionais que não resolvem e, sim, acentuam os conflitos que deveria resolver.
Recentemente, em outro caso polêmico, o judiciário interpretou como estupro o assédio virtual, em casos onde chantagistas obrigavam as vítimas a praticarem atos libidinosos ou se masturbarem para eles, em teleconferência ou por envio de vídeo, pela internet. Os casos eram claramente de constrangimento, porém foram reclassificados visando atender á uma demanda difusa de ajustamento comportamental-cultural.
Se assim é, o que se diria do ato de expelir sêmem sobre uma passageira de ônibus, após se masturbar a centímetros de seu rosto, sem seu consentimento ou possibilidade de defesa quanto á ejaculação conclusiva? E o risco de eventual contaminação? Tamanha invasibilidade, exposição injuriosa e vestígio material resultante no corpo da vítima – ou seja, com contato corporal – pode ser enquadrado como mera importunação ofensiva ao pudor?
O Ministério Público paulista entendeu que a conduta, altamente reprovável, não poderia configurar, entretanto, um constrangimento – no sentido de forçar alguém a fazer alguma coisa. A posição foi ratificada pela decisão do juízo em causa. A opinião pública recebeu o fato da liberação do ejaculador como se houvesse recebido a própria ejaculação, tamanha a impunidade refletida na decisão judicial.
Ejaculação precoce de normas inférteis
De fato, o que vivemos hoje é fruto da “justiça ejaculativa”, buscada por um Estado que a protagoniza precocemente, sem satisfazer a sociedade.
Vejamos o caso do empoderamento feminino e a conquista da criminalização da conduta violenta contra a mulher.
Com toda pompa e circunstância, cercada de militantes feministas e próceres do esquerdismo a toda prova, a presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei do Feminicídio, lei federal 13.104, em 9 de março de 2015. A lei vinha na esteira de outro marco legal, a Lei Maria da Penha – Lei 11340, de 7 de agosto de 2006, editada sob aplausos da mesma militância barulhenta e reativa, no governo de Lula, e da harmonização das normas penais de conotação sexual, em 2009, fundindo o tipo penal de atentado violento ao pudor com o crime de estupro.
Os marcos legais objetivavam adequar o ambiente legal brasileiro aos ditames do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
Na lei Maria da Penha, reza o artigo 3º que “serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária”.
Nesse diapasão, instituíram-se Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; alteraram o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal. No entanto, a ejaculação normativa do Estado, mais uma vez, revelou-se precoce e não satisfez a sociedade… muito menos a condição feminina.
Na busca de atingir picos de glória no patamar das simpatias nacionais, o ego inflado de juristas, políticos, executivos e líderes de movimentos sociais não lhes permitiu ver que, embora a violência contra a mulher siga uma espiral a culminar nos atos que buscaram tipificar… essa violência passa por estágios e atitudes cotidianas injuriosas que, necessariamente, deveriam ter sido abordadas no seu esforço legisferante, pois ao contrário dos picos agudos de violência, aquelas sim, constituem o cotidiano das pessoas comuns, mais uma vez esquecidas pela sanha ejaculativa dos que dizem “amar o povo” mas sequer amam o próximo…
Foi uma frustração. A legislação de empoderamento da mulher e a reforma das leis sexuais em 2009, ficaram pela metade. Não se trabalhou adequadamente. Era preciso construir novos tipos penais para prever diferenças de condutas invasivas e não invasivas, adaptar o delito de injúria para transformá-lo em figura passível de ajuizamento de ação penal incondicionada, quando de natureza sexual, e até evoluir a importunação ofensiva ao pudor para o patamar de conduta criminosa.
Faltam esforços, criatividade e advogados…
Se a massa de doutores, pós-doutores, senadores e senadoras, deputados e deputadas, ministros e ministras, líderes partidários e de movimentos sociais, “todos e todas” Brasil afora, quisessem mesmo implementar uma reforma adequada, deveriam ter o cuidado PRIMÁRIO de analisar delitos invasivos e não invasivos, gradar condutas de relevância menor (como por exemplo o beijo forçado) até os tipos críticos, de maneira que julgadores e autoridades policiais e persecutórias pudessem tornar a tutela penal efetiva, sem preocuparem-se com aplicações desproporcionais ou elasticidades inconvenientes na interpretação de condutas reprováveis. Sem estabelecerem-se categorias, a resposta penal jamais será eficaz.
Além da ejaculação precoce do Estado – em sua sanha legisferante por satisfazer uma demanda reativa da sociedade, sem no entanto conseguir satisfazê-la, do episódio da ejaculação contra a moça no ônibus da Av. Paulista, salta aos olhos a impressionante inabilidade das instituições do judiciário e ministério público defenderem-se em face da opinião pública.
De fato, organismos oficiais e entidades de representação do judiciário e ministério público reagiram atabalhoadamente contra o que entenderam ser “injustas críticas” aos seus representantes envolvidos na complicada decisão – de livrar solto o ejaculador do ônibus da Av. Paulista. Passaram, assim, as lideranças do setor, a despejar na mídia pronunciamentos e moções de apoio que beiraram à pura arrogância, quando não transpiraram a insensibilidade social que as têm estigmatizado.
Com efeito, o magistrado, bem como o promotor em questão, cumpriram seu dever na esfera de suas atribuições, agindo de acordo com suas convicções, no limite da lei. Nada fizeram que necessitasse de defesa institucional, sendo que a opinião pública não é parâmetro de risco ou algo que se deva considerar no exercício da atividade persecutória, judicante, como nunca deve sê-lo na advocacia (aliás, está na lei…).
Literalmente, o corporativismo, nesse campo, “ejaculou” precipitadamente no pescoço da opinião pública, ampliando a confusão e estimulando antipatias, quando na verdade o assunto deveria ficar na esfera do próprio processo em causa e suas instâncias recursais, se eventualmente demandadas…
Percebe-se, assim, que ao contrário do ejaculador da Av. Paulista, que não precisou praticamente de defensor para livrar-se solto, as instituições do Ministério Público e da Magistratura necessitam, urgentemente,quem os defenda…
Faltam, portanto, esforços que resultem, criatividade e, sobretudo, bons advogados…
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e das Comissões de Política Criminal e Infraestrutura da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB/SP. É Vice-Presidente da Associação Paulista de imprensa – API, Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.