Por Marco Aurélio Arrais*
Conheci Juvenal lá pelos idos de 1980. Fazia eu parte da diretoria da Associação dos Empregados da Caixa Econômica Federal em Goiás, naquele tempo denominada Associação dos Servidores Economiários de Goiás (ASEG).
Naquela época era ele aposentado pelo INPS por invalidez, causada por diversos tiros que havia levado em alguns confrontos, um deles acertando-lhe uma vértebra da coluna, mas nada que o impedisse de trabalhar fazendo um bico de guarda noturno e cobranças esporádicas.
Em dias de bailes, carnaval ou quando o salão de festas da Associação era locado a terceiros ficava na portaria, impedindo o acesso a penetras ou botando ordem em quem tentasse qualquer estripulia.
Meus filhos, então com sete e quatro anos, tinham por parte do amigo uma atenção especial, e por ele devotavam o carinho dispensado a um tio. Quando chegavam ao clube, nos fins de semana, era uma festa! Principalmente para o caçula, que era carregado de um lado para outro, escanchado nos seus ombros.
Juvenal era oriundo de São Borja, no Rio Grande do Sul. Confessou-me que havia saído de lá depois de uns entreveros que resultaram na morte de um graúdo, sujeito safado, que havia destroçado à força, a donzelice de uma moça de família.
Tinha ele, na época, pouco mais de vinte anos, e por ser a moça filha única e órfã de pai não havia, na sua família, quem por ela tomasse as providências necessárias. Ocorre que Juvenal tinha por madrinha de batismo a mãe da menina e, por isso, era irmão dela perante Deus Nosso Senhor, como afirmava.
Daí uns dias o afrontador foi abatido com um tiro certeiro, “no centro da testa”, sem tempo sequer para um “ai”.
Feito o procedimento teve de cair no oco do mundo, vindo parar na Goiânia dos anos cinquenta, cidade nova e com oportunidades para um homem com disposição para serviços que exigissem confiança e competência. Serviu então a vários proprietários de terra e gado como capataz, segurança e jagunço.
Um conto que publiquei nesta revista há algum tempo, denominado “Compaixão”, tem no Juvenal o personagem principal onde, a mando do patrão, justiça o assassino de uma menina.
Como disse, nos dias de festa ele era o porteiro na da Associação, controlando o acesso de veículos e dando apoio ao pessoal da bilheteria. Num carnaval eis que aparece um sujeito bêbado, querendo entrar sem adquirir o ingresso. Cabra impertinente, metido a valente, foi dizendo que ia entrar “pra ver se o carnaval era bom e se a manada de mulheres no salão compensava a despesa”.
A maioria das mulheres eram empregadas ou esposas de empregados da Caixa. Juvenal tinha por elas um apreço, um respeito e um bem-querer do grande. Muitas se preocupavam com sua família, e algumas já tinham ido à casa dele, quando da doença de seu netinho levando alimentos, remédios e prestando assistência à dona Madalena, sua mulher.
Ao ouvir aquele despropósito, deu um soco no debochado. O tal, refeito da pancada, resolveu que ia lhe dar um couro. O povo espalhou em volta, e quando o cabra investiu, encontrou a um palmo de sua cabeça o cano do inseparável l38 do Juvenal. Não deu tempo nem para piscar. A bala passou rente à cabeça do desaforado, cortando a parte superior da sua orelha esquerda.
O sujeito desabou, mais pelo susto que pelo efeito do tiro. Antes que o serviço fosse terminado, uma colega que estava ali pediu pela vida do infeliz. Controlando-se guardou a arma, dizendo que só atendia ao pedido “porque a dona é uma pessoa de muita bondade, a quem respeito e quero muito bem”.
No dia seguinte encontro o Juvenal amuado, numa tristeza de dar dó. Disse-me que queria conversar, pois precisava de uma pessoa de confiança para ser aconselhado sobre uma coisa que o estava consumindo.
Nunca me esqueci de suas palavras, e foi isso que me disse, com os olhos cheios de lágrimas: “Marcão, eu sou um homem acabado. Não presto mais para coisa nenhuma. Ontem fui ofendido por aquele desgraçado. Ninguém, até hoje, disse que eu era filho de puta. Quando deixei minha casa, para cair no mundo, sabia que nunca mais ia ver minha mãezinha. Quando ela morreu eu não estava lá. E agora, quando ela está no céu, perto de Deus, é xingada e desrespeitada. Olha Marcão, ontem eu cometi o maior erro da minha vida. A menos de um metro do sujeito, sentindo o cheiro dele, olhando dentro dos olhos dele, tendo dentro de mim a certeza de que ia matar o desgraçado, e tendo tudo para fazer o que era preciso, eu errei. Como é que eu pude errar esse tiro, Marcão? Apontei no capricho, bem dentro do olho dele. Fiz mira perfeita, sem chance de errar, e só corto um pedaço da orelha? Nunca errei nenhum tiro com destino certo! Nunca desperdicei uma bala com alvo definido! O que será de mim agora? Se eu precisar me defender, vou morrer na mão de qualquer bosta por ter virado um incompetente? Se precisar defender minha casa, minha família, vou faltar com eles? O que vai ser de mim?”
Tentei consolá-lo da melhor maneira possível, e dentro do seu jeito de ver as coisas. Disse que isso acontecia com todos nós, e cometer qualquer tipo de erro faz parte da nossa vida. E que se tivesse matado o cabra, ia ser impossível ajeitar as coisas como foram ajeitadas. Que esquecesse isso, pois tudo estava nos conformes, e ele não ia ter problema com nada. Resignado abanou a cabeça, concordando.
O Juvenal tinha uma filha que era o xodó dele. Não aceitava, como ele dizia, “nenhum vagabundo beirando minha casa”. Como ninguém manda no coração dos outros, a menina namorava, escondido, um rapaz vizinho dela. O problema é que ela acabou engravidando aos dezessete anos, e a coisa só não deu em morte porque segundo o Juvenal, não podia matar o pai do filho de sua filha. Como iria explicar ao neto, depois que crescesse, que havia matado o pai dele?
Os dois casaram-se, e o rapaz foi morar na casa do Juvenal. Como ele era guarda noturno, dormia durante o dia, e a lei do silêncio era ali um imperativo.
Um dia, depois do almoço, o Juvenal foi despertado por uma discussão entre sua filha e o marido. Lá do quarto, pediu para pararem com aquilo pois estava cansado, precisando dormir. A coisa não parou, e lá pela terceira vez gritou com a filha que calasse a boca. Ela obedeceu prontamente, mas o genro resolveu continuar.
Quando menos esperava, o sogro pulou em cima dele. Não deu tempo para correr. Sujigando o rapaz, imobilizou-o num abraço por trás e, numa mordida certeira, arrancou um pedaço de sua orelha. Enquanto o infeliz berrava e pedia por socorro, mastigou e engoliu.
Depois que o moço voltou do hospital, foi bem claro. Se pensasse em deixar a menina dele por causa daquilo, ele não podia impedir, mas filha dele não era mulher para ser largada. Se fosse largada, ia se tornar viúva. O desrespeito seria acertado diretamente com ele. Até onde sei, os dois viviam dentro da normalidade na casa do Juvenal. E com o netinho, que era o orgulho do vovô.
Encontrei-me com ele pela última vez, lá pelos anos 94. Estava com minha mulher no caixa de um supermercado quando ela, me apertando o braço assustada, murmurou baixinho: “Marcão, vem vindo um homem esquisito, e está nos olhando fixamente”. Era o Juvenal que, ao aproximar-se, numa gargalhada deu-me um abraço. Perguntou pelos meus meninos, dizendo que estava com saudades. Seus olhos estavam marejados de lágrimas. Era uma pessoa muito sensível, muito sentimental.
Sentados numa mesa da lanchonete do supermercado conversamos bastante, relembrando fatos passados. Quando nos despedimos, virou para minha mulher e, contraindo os músculos da face, apertando os olhos, cerrando os dentes, endurecendo suas feições disse: “Minha senhora, o amigo Marcão tem meu telefone. Se algum dia, na falta do meu amigo, a dona precisar de um socorro contra qualquer tipo de ameaça, de desrespeito, conte com esse seu criado. Estarei à sua disposição para qualquer serviço que me for ordenado. O Marcão sabe que meu trabalho é limpo e rápido, sem problemas”.
Ela, apavorada, gaguejou um obrigado. Diante do que aceitou como uma concordância à oferta, transmudou aquela máscara de ódio num sorriso largo. Apertou-lhe respeitosamente a mão e, colocando na cabeça seu chapelão, saiu no lombo de sua bicicleta todo feliz, assoviando uma música.
Em 2004 um conhecido contou-me que o Juvenal havia falecido. Morreu dormindo em sua cama, na paz de Deus.
Acredito que Juvenal seria de muita serventia para São Pedro, nos portões do Céu. Espírito desmerecedor de acolhimento que tentasse impor sua graudeza, sua autoridade, sua importância e até seu foro privilegiado, iria encarar o espírito do Juvenal armado com uma espada de fogo. Fornecida pelas autoridades celestiais dentro da regularidade. Seria despachado para os domínios do Satanás debaixo de porrada, para deixar de ser debochado e sem preceito. E tudo dentro da legalidade Divina!
*Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”.