Por Mário Mantovani
A lama de rejeitos de minério que cobre o rio Doce e o mar no norte do Espírito Santo, com seu rastro de degradação e impactos, reflete as trágicas consequências do desmonte gradativo da legislação ambiental brasileira e da sua não aplicação. Processo esse que teve início com a alteração do Código Florestal e se estende por diversas iniciativas que fragilizam a proteção ambiental, como projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional sobre o licenciamento ambiental e o novo Código da Mineração.
“A tragédia anunciada de Mariana – que teve início com o rompimento da barragem de rejeitos de minério da Samarco, pertencente às gigantes do setor Vale e BHP Billiton – pode ser considerada o estopim de uma bomba relógio instalada no país.”
A Agencia Nacional de Águas (ANA) tem cadastradas 520 barragens de rejeitos em regiões de cabeceira de grandes rios e bacias hidrográficas. Destas, 264 são de rejeitos de minério e 256 de atividades industriais. Ao todo, o Brasil tem cadastrados 13.529 reservatórios, que são licenciados individualmente, de acordo com a demanda de cada empresa e setor. Portanto, não é feito um estudo estratégico do impacto cumulativo desses reservatórios e das atividades, tampouco da capacidade de suporte das bacias hidrográficas, da região ou dos biomas.
Minas Gerais, estado popularmente chamado de caixa d’água do país por reunir as nascentes e rios formadores de grandes bacias hidrográficas que abastecem cerca 70% da população brasileira, tem cadastradas 361 barragens de rejeitos. A concentração de atividades econômicas de alto impacto e potencial risco em uma região tão estratégica para prover o país de água já evidencia a fragilidade e o despreparo dos órgãos públicos em planejar de forma equilibrada e integrada o uso e a conservação dos recursos naturais.
Danos ambientais decorrentes de problemas com atividades minerárias instaladas em Minas Gerais já resultaram em acidentes com impactos em bacias interestaduais, afetando a água e os ecossistemas que servem milhares de pessoas. Em 29 de março de 2003, o rompimento de uma barragem na cabeceira do rio Pombas, afluente do Paraíba do Sul, impactou toda a bacia e chegou ao mar no Rio de Janeiro.
Para evitar novos danos com a mesma empresa, em 2009, em decisão polêmica, mas conjunta com órgãos ambientais dos Estados de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, a ANA permitiu a liberação gradual de rejeitos sem tratamento no rio Pomba, afluente do Paraíba do Sul. Por cinco anos, até agosto do ano passado, os rios Pomba, Muriaé e Paraíba do Sul foram utilizados para diluir os poluentes gradativamente. Com isto, esses rios acabaram recebendo cerca de 1,4 bilhão de litros de lignina, rejeito da celulose com grande concentração de Demanda Bioquímica de Oxigênio (DBO), tornando a água imprópria para consumo.
Para os órgãos ambientais e de controle foi melhor aceitar o rio Pomba como receptor temporário desses rejeitos industriais, de característica orgânica, do que correr o risco de um novo desastre semelhante ao ocorrido em 2003.
Os Estados arcaram com o monitoramento da água ao longo do período de diluição e, assim, essa remediação foi considerada pelas autoridades um caso de sucesso para evitar acidente grave.
Utilizar rios para diluir esgoto, por não termos tratamento adequado, é uma prática recorrente no país, uma vez que o saneamento básico é responsabilidade do poder público e este por sua vez não prioriza o serviço ambiental. Agora, utilizar a água já escassa dos rios para diluir rejeitos porque mineradoras não têm recursos para trata-los já é demais.
Embora as barragens de rejeitos venham sendo monitoradas e as empresas busquem aperfeiçoar técnicas e padrão de gestão, em virtude da pressão social decorrente de acidentes de grandes proporções, aqui no Brasil fica cada vez mais evidente a não aplicação da Lei, o desmonte dos órgãos de fiscalização e controle e as continuadas anistias para devedores de multas por danos ambientais, com custos cada vez maiores para remediação de danos que poderiam ser evitados.
A lama do rio Doce precisa nos ajudar a denunciar e a repudiar a passividade do governo brasileiro e sua incapacidade de reagir, pronta e efetivamente, no sentido de defender a sociedade e zelar pelos patrimônios da nação.
Apesar da gravidade do dano e da incapacidade institucional do poder público para agir de forma preventiva na sua competência de licenciar atividades econômicas que lhe interessam momentaneamente, temos que somar esforços para recuperar o ambiente degradado, a bacia do rio Doce e para agir firmemente para conter a pressão do setor minerário junto ao Congresso Nacional. Atualmente, as mineradoras buscam fragilizar o Código de Mineração e o licenciamento ambiental justamente para agilizar e facilitar essas atividades.
“Chega de impunidade. Precisamos usar o licenciamento ambiental como instrumento ágil e eficiente de planejamento integrado e estratégico, e não tornar o sistema refém da pressão econômica, de lobbys e incapaz de dar segurança à sociedade. É necessário o engajamento de todos para o aprimoramento das políticas ambientais.”
*Mario Mantovani é diretor de Políticas Públicas da Fundação SOS Mata Atlântica e Malu Ribeiro é coordenadora da Rede das Águas da organização. A SOS Mata Atlântica é uma ONG brasileira que desenvolve projetos e campanhas em defesa das Florestas, do Mar e da qualidade de vida nas Cidades.
Fonte: SOS Mata Atlântica