Breve introdução a dois comentários divergentes sobre as decisões polêmicas do STF nos Habeas Corpus de Lula
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*
A Operação Lava Jato foi a maior ação de combate judicial à corrupção de que se tem notícia no mundo. Desbaratou um monumental conluio para a apropriação do Estado Brasileiro por uma coalização de quadros partidários ligados ao governo do PT, impactando outros governos populistas de esquerda no continente americano e na África.
A investigação expôs uma rede suportada por um enorme esquema de corrupção e lavagem de dinheiro, levado a cabo por agentes políticos ideologicamente orientados, agentes públicos subornados, a estatal Petrobrás e subsidiárias, empreiteiras de obras, frigoríficos e instituições financeiras – o estado da arte do crime organizado.
A ação repressiva foi agilizada por uma ampla reforma no quadro legal de combate ao crime organizado e à corrupção – corolário de um longo processo de amadurecimento da consciência crítica no cidadão brasileiro, das manifestações impressionantes de 2013, da transparência proporcionada pela liberdade de imprensa, do aperfeiçoamento das instituições e capacitação dos agentes implementadores da lei penal.
Porém, paripassu a toda essa meritória conquista, a Operação viu-se envolvida por imputações de carregar certa carga de ativismo judicial. Essas imputações formam o pano de fundo de dois recentes Habeas Corpus¹ impetrados pelo ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, junto ao Supremo Tribunal Federal, alegando respectivamente a suspeição do Juiz Sérgio Moro e a incompetência do juízo da 13ª Vara da Justiça Federal de Curitiba para julgar os processos que resultaram em sua condenação – havidos originalmente pela Operação Lava Jato por conexos com os fatos da investigação.
Após um trâmite lento do primeiro e outro rápido do segundo… em decisões carregadas de polêmica o STF resolveu acolher a suspeição do magistrado-símbolo da Operação Lava Jato e a incompetência do juízo de Curitiba para julgar Lula – anulando o processado e remetendo os autos para o Juízo Federal do Distrito Federal.
A polêmica sobre a decisão do Supremo Pretório da República foi muito bem delimitada e retratada em duas breves manifestações lapidares, subscritas pelos professores Joaquim Falcão e Lenio Streck, em franca, democrática e profícua divergência. As análises foram publicadas originalmente no Jornal O Estado de São Paulo – a de Falcão no dia 23 de abril e a de Streck, em resposta ao primeiro, no dia 26 de abril.
Pela clareza das posições postas, tratei de reproduzi-las abaixo, uma em seguida à outra, para melhor compreensão.
Antes, porém, tomei a liberdade de contextualizá-las em relação ao pano de fundo da questão: o ativismo judicial e seu impacto para a efetividade e eficácia do Direito.
O ativismo é um comportamento reativo disparado fisiologicamente por agentes implementadores descompromissados com o Estado de Direito.
Esopo alertava que todo tirano faz uso de um pretexto justo para exercer sua tirania. Com o ativismo não é diferente: seu pretexto é corrigir injustiças sociais, disfunções econômicas e fenômenos criminológicos altamente corrosivos ao tecido institucional do Estado. Por óbvio que se trata de uma ilusão populista entronizada no ambiente jurídico – com as mesmas catarses e tragédias que essa disfunção costuma causar na política dos estados democráticos e de civilizações inteiras.
Essa reação ativista recebe cores ideológicas variadas e engaja parcela significativa da magistratura brasileira, também aparelhando grande parte da jusburocracia, em especial o organismo persecutório: o Ministério Público.
A disfunção foi facilitada pelas inacreditáveis autonomias sem controle conferidas ao Poder Judiciário e aos organismos de persecução da jusburocracia, pela Carta de 1988.
O fenômeno foi agravado pela prática do chamado pan principiologismo², uma disfunção comportamental que busca relativizar a literalidade da norma jurídica em prol de princípios não positivados, quando e não raro literalmente não expressos, extraídos por meio de uma interpretação teleológica do texto da Constituição Federal. A partir dessa perspectiva, a tutela de direitos difusos e garantias fundamentais vulnerados por “um estado de coisas inconstitucional”², passa a merecer tutela prevalente da interpretação teleológica dos princípios norteadores da Ordem Social, “corrigindo” a “fragilidade” do arcabouço legal aplicável.
Por óbvio que esse fenômeno – repleto de subjetivismos, salvacionismos e ecologismos, induziu uma cultura solipsista na jusburocracia nacional, agravada pelo utilitarismo que contaminou gravemente o processo de implementação da doutrina de Lei e Ordem no ambiente jurídico prevalentemente garantista da Justiça Brasileira.
O fortalecimento da jurisdição constitucional no Brasil, proporcionado pela Constituição Federal 1988, somado à cultura processualista que já vinha se consolidando nas décadas anteriores, formatou o cenário ideal para que a prestação da tutela jurisdicional – ou seja, o meio – tomasse o centro das preocupações judiciárias, servindo de suporte para qualquer finalidade substantiva – ou seja, o fim.
Dessa forma, o meio passou a ser o direito, o centro do contencioso, e o objeto substantivo – objeto da tutela, passou a ser algo fluído, moldável à finalidade principiológica destinada a “corrigir o estado de coisas inconstitucional”; “construir” liames de casualidade, “criminalizar” condutas e “estender” responsabilidades.
Podendo os fins suplantar limites legais em face de princípios constitucionais teleologicamente construídos, a deontologia passou a incidir apenas e ocasionalmente no manejo dos meios processuais.
A distorção advinda desse raciocínio – verdadeira adjudicação judiciária do arcabouço legal em nome da “jurisdição constitucional”, permitiu persecutores e magistrados agir “conforme sua consciência”, minorando a importância de quaisquer elementos trazidos pelas partes no bojo do contraditório e comprometendo a integridade do Direito – que deveria motivar os atos judiciais. Destarte, o “decisionismo” passou a ser protagonista do ativismo judicial – não a Justiça.
Essa ação danosa ao processo democrático e ao Estado de Direito interferiu e interfere nocivamente na harmonia e autonomia dos Poderes da República, no sistema federativo, na soberania popular e nas esferas de competência da Administração Pública. Afeta e compromete o tecido jusburocrático brasileiro, do juízo da esquina ao Supremo Tribunal Federal.
No entanto, verifica-se uma reação – tardia mas sempre bem vinda, da comunidade jurídica, acadêmica, da classe política e dos próprios Poderes da República.
Assim, vislumbra-se uma correção de rumos e uma busca pela imposição dos limites necessários à tutela judicial, visando conferir eficácia à lei e não gerar insegurança jurídica.
Essa reação, por óbvio atingirá inequivocamente o próprio Supremo Tribunal Federal, uma instituição postada no centro de toda essa polêmica³ e, muitas vezes, protagonista do ativismo que agora aparenta querer corrigir.
Vamos aos dois artigos:
1- O que o STF não respondeu ao declarar Moro suspeito*
Por Joaquim Falcão**
A imprevisibilidade decisória – onde, quando, quem julga – volta a reinar. A insegurança jurídica é uma punição dada ao Brasil. De Lava a Jato a Lava as Mãos
O futuro do Brasil se faz perguntas muito simples. Mas decisivas. Diante da extensão da corrupção vista, ouvida e comprovada, primeiro exposta pelo mensalão de Joaquim Barbosa, e depois pelo juiz Sérgio Moro: quem cometeu o quê? No caso, Lula cometeu algum crime? Fez algo inadequado? Ou agiu dentro dos limites legais?
O Supremo não responde. Apenas constrói respostas reflexas. Não entra no mérito. Oculta-se em debates processuais sobre competências internas. Adia o Brasil. Nossa economia. Os investimentos. Nossa democracia. A normalização política.
Fere o direito de informação do cidadão. Não por esconder as respostas ilegalmente. Mas por não tê-las, hesitá-las, quando já deveria ter. Uma maneira de esconder é não decidir.
Em vez de responderem ao Brasil, discutiram em autofagia institucional. Quem manda em quem internamente? O relator manda na turma? A turma manda no relator? O plenário tem competência? Para quê? Tem, não tendo? O Supremo parece não saber quem é o Supremo.
Pode um ministro pedir vista por dois anos e três meses? Vital para o País? Pode querer ganhar votação no grito, como Barroso bem apontou?
Se o juiz Moro é suspeito, tudo ou quase tudo tem que recomeçar? Rejulgado em Brasília? A imprevisibilidade decisória – onde, quando, quem julga – volta a reinar. A insegurança jurídica é uma punição dada ao Brasil. De Lava a Jato a Lava as Mãos.
O ministro Barroso descreveu a natureza da corrupção revelada por Curitiba e a tática processual da vingança judicializada. A corrupção era sistêmica, planejada, interligada. Para combatê-la é preciso direito processual sistêmico. E não como instrumento da segmentação e individualização da corrupção.
Não há estado democrático de direito sem um direito processual eficiente. Talleyrand dizia que, às vezes, palavras escondem os pensamentos. O direito processual, às vezes, é usado para esconder o direito substantivo.
Quem melhor definiu ontem o Supremo foi o decano Marco Aurélio. Parecia um caleidoscópio. Aquele tubo, que criança gosta, onde as pedrinhas mudam de figura conforme você gira, em oposição, cada uma de suas partes.
* Publicado no “O Estado de S.Paulo”, 23 de abril de 2021
** Professor de Direito Constitucional e membro da Academia Brasileira de Letras
2- O Supremo Tribunal Federal como Alvo de Muitas Flechas *
Por Lenio Streck **
Aprende-se na faculdade que não existe direito (e Justiça) sem o devido processo legal. Violado o processo, nada resta. É o óbvio. Ululante.
O professor de direito Joaquim Falcão não pens assim. Ele apoiou projeto das Dez Medidas que introduzia prova ilícita de boa-fé e mutilava o habeas corpus. Na verdade, quando Falcão, no Estadão do dia 23 de abril de 2021, crítica a decisão do STF por anular os processos de Lula, comporta-se como um médico que faz passeata contra antibióticos. Um jurista que odeia o Direito.
Ele pergunta: Lula cometeu crime? Bom, ele, como professor e meu colega de academia de Direito Constitucional, deveria saber que crime tem conceito e que alguém só comete crime se existe processo legal. O STF cumpriu a lei. Moro foi parcial e incompetente. Fosse na Alemanha, Moro estaria enquadrado por prevaricação (artigo 339 do Código Penal). Eis a respeosta, Professor. Falcão é reincidente. Em 25 de janeiro de 2018, já dizia, ao elogiar os atropelos da Lava Jato, que “temos direitos demais”. Sim, “direitos demais”. Já então o médico se queixava do avanço da medicina. Um professor de Direito deve saber o que é o devido processo legal. Sem um juiz imparcial, tudo fica nulo. Juiz natural e imparcial são coisas sagradas que só hereges do Direito contestam.
Falcão acusa duramente o STF de “se ocultar em debates processuais”. Mas não é para isso que serve uma Suprema Corte, professor? Ou juiz natural e imparcialidade seriam “filigranas”, como diz Dallagnol? Quando um professor de Direito rebaixa o Direito á “ocultação de debates processuais” é porque, para ele, os fins justificam os meios. E isso não é direito! Isto é: primeiro atira a flecha e depois pinta o alvo. Assim, Falcão nunca erra. O STF é um alvo fácil, certo? Não, Professor: o STF não tem de responder se houve ilícito; tem de zelar para que aquele que deve dizer se houve ilícito não cometa ilícitos. De novo o óbvio. Juristas abominando garantias processuais é indicativo do fracasso do ensino. Talvez por causa de professores que detestam o que ensinam: Direito.
* Publicado no “O Estado de São Paulo”, 26 de Abril de 2021
** Professor de Direito e Membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional
Notas:
1 – STF – Habeas Corpus (HC) 164493 (suspeição do Juiz) – Habeas Corpus HC 193726 (incompetência do juízo); relator: Ministro Edson Fachin.
2- PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro – “Princípios de Direito, Principiologismos e Vedação de Retrocesso Ambiental”, in Blog The Eagle View, 11Outubro2015, in https://www.theeagleview.com.br/2015/10/ativismos-principiologismos-e-vedacao.html
3- PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro – “Um Tribunal contra a República?”, in Blog The Eagle View, 6março2018, in https://www.theeagleview.com.br/2018/03/um-tribunal-contra-republica.html
*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. É Editor-Chefe dos Portais Ambiente Legal, Dazibao e responsável pelo blog The Eagle View. Twitter: @Pinheiro_Pedro. LinkedIn: http://www.linkedin.com/in/pinheiropedro