Agricultores do Sul e do Sudeste do Brasil estão sofrendo com os ataques da lebre europeia, vulgo “lebrão”. Os prejuízos chegam a 100% da produção em regiões de cultivo de brócolis e couve-flor, por exemplo. Plantações de citrus também amargam prejuízo alto, na casa dos 20%, segundo cálculos dos próprios agricultores.
A lebre rói o caule de pés de laranja, limão e tangerina, que morrem poucos dias depois, por falta de seiva. Produtores rurais reclamam ainda da presença do animal em cultivos de soja, maracujá, feijão, hortaliças, melancia, abóbora, melão, pupunha, mandioca, mandioquinha, batata-doce, café, quiabo e seringueira.
“Os Estados que mais sofrem com a invasão são Rio Grande do Sul, São Paulo e Paraná”, afirma a ecóloga Clarissa Alves da Rosa, pesquisadora da Universidade Federal de Lavras (MG). Ela lembra que a presença do lebrão é tão marcante nas terras paranaenses que, ao sobrevoar o Aeroporto Internacional Afonso Pena, na Grande Curitiba, é possível ver lebres europeias invadindo a pista.
O animal, no entanto, vem subindo o mapa do Brasil pelas próprias pernas, e numa velocidade alta de dispersão – cerca de 45,35 quilômetros por ano, de acordo com artigo assinado por Rosa e mais dez cientistas e publicado em 2015. Há registros da espécie em Minas Gerais, Goiás e no Mato Grosso do Sul.
A Lepus europaeus, como denuncia o nome científico, é nativa da Europa. Trazida para Argentina e Chile visando à caça esportiva, teria se proliferado pelos países vizinhos e chegado ao Brasil nos anos 1950, por meio da fronteira com o Uruguai.
Sua primeira pegada no país, publicada em literatura, foi em Santa Vitória do Palmar (RS), no ano de 1982. Mais de três décadas depois, ela estaria presente em 135 localidades brasileiras, de acordo com o artigo coassinado por Rosa. De dois anos para cá, porém, os agricultores têm sentido uma disparada na frequência do animal.
Tomando lebre por gato
O lebrão recebe esse nome aumentativo pelo porte “atlético”. Sentado com as patas encolhidas, e desconsiderando as orelhas de pontas negras, ostenta cerca de 25 centímetros de altura. Pesa de dois a cinco quilos.
E, em pleno salto, chega a uns 70 centímetros de comprimento, o que faz lembrar um gato. Tem uma plasticidade ecológica alta, isto é, adapta-se a diferentes ambientes, embora prefira campos abertos. Latifúndios de monocultura, portanto, são caros ao seu apetite voraz.
São perfeitos também para as suas já elevadas taxas de reprodução. “Mamíferos tendem a ajustar a reprodução em períodos de maior oferta de alimento”, explica Rosa. A lebre europeia apresenta de quatro a sete gestações anuais, concebendo até quatro filhotes por ninhada. Ou seja, uma lebre pode ter 28 crias por ano – sendo que as fêmeas dessa ninhada, aos 5 meses de idade, já estão maduras sexualmente para se reproduzirem.
A espécie não se deixa pegar com facilidade. De hábito predominantemente noturno, é bastante rápida e arisca, dificultando a ação do predador. Enquanto na Europa linces, lobos e aves de rapina teriam saído ao seu encalço, na América do Sul caçadores naturais não a incorporaram à dieta.
“Quando a lebre começou a invadir o Rio Grande do Sul, um dos Estados mais ‘desfaunados’ do Brasil, criou-se a esperança de que poderia ser uma presa para os poucos predadores que ainda existiam, já que as presas nativas estavam em declínio populacional”, diz Clarissa Rosa.
Mas estudos de dez, 15 anos mostraram que os carnívoros dessa área não se alimentam da lebre europeia, mesmo em áreas infestadas.
A dedução é que ela tem uma capacidade de fuga muito maior que as espécies nativas.
Que o digam os produtores. Cães da roça, por exemplo, normalmente não dão conta de alcançá-la.
“Um agricultor me disse que, no começo, atiçava os cachorros para saírem correndo atrás dos lebrões”, conta o engenheiro agrônomo Joaquim Adelino de Azevedo Filho. “Com o tempo, os cachorros olhavam para ele e para a lebre e nem se mexiam, tipo assim: ‘quer mesmo que a gente perca o nosso tempo?'”
Azevedo Filho é pesquisador científico da APTA (Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios) Regional Leste Paulista, em Monte Alegre do Sul. Há cerca de 20 anos, testemunhou o efeito do ataque de lebrões a uma plantação de melancia em Capela do Alto, região metropolitana de Sorocaba, interior de São Paulo.
“Tiveram de parar porque a lebre raspava a melancia novinha, que dali para frente crescia deformada”, diz. Cinco anos depois, relembra ele, na região de Indaiatuba (SP), um produtor de maracujá viu sua colheita perdida porque o bicho roía o pé e a planta morria.
Em Monte Alegre do Sul, o estrago foi nas plantações de soja e crotolária, leguminosa usada para adubo verde. “O ataque à crotolária não foi tão sério porque não é uma cultura comercial, mas para a soja foi prejudicial”, avalia.
Espantalhos derrotados
Culturas de consumo familiar não escapam à ação desse animal da ordem dos lagomorfos.
Pedro Luís Gazola, morador de Torrinha (SP), relata, em um vídeo caseiro, a devastação nos pés de feijão carioquinha: “Até o fim da rua, não tem nada, ela come tudo”, narra desanimado, referindo-se a um corredor já árido da plantação.
Espantalhos se mostraram inúteis. Tufos de cabelo, que alguns produtores estão pedindo a salões de cabeleireiro, tampouco surtiram efeito contínuo. “Ela parece não gostar do cheiro do cabelo, mas depois chove, o cheiro desaparece e elas voltam a atacar as mudas”, afirma Gazola.
O produtor de soja Agnaldo Fernandes do Amaral, de Bragança Paulista (SP), percebeu um afastamento do bicho por causa do cheiro – no caso, vindo da pulverização de inseticida na sua lavoura, às margens da rodovia Fernão Dias. Mas teme que seja insuficiente: “Elas estão procriando demais”.
Para quem sugere cercar a terra, o advogado e instrutor de tiro Mardqueu França Filho responde com uma interrogação: “A lebre é pequena, como você tela uma lavoura inteira?”.
Na perspectiva dele, a lebre europeia é diminuta de tamanho porque sua referência vem dos javalis, espécie invasiva que ele caça com autorização do Ibama desde 2013 nas bandas de Monte Azul Paulista – onde o lebrão também já chegou. “Em cada caçada de javali que faço, vejo de 20 a 30 lebres saltando na plantação”, afirma. “Daria para encher a caçamba da caminhonete só com elas.”
Para ilustrar o problema, o instrutor acrescenta outro cálculo: em uma noite, num pomar de laranjas com cerca de 5 mil mudas recém-plantadas, de 10 a 15 delas são consumidas pelas lebres. Cada muda custaria em torno de R$ 30. “Faz a conta do quanto que o lebrão estraga.”
Ele cobra que o animal seja classificado pelo Ibama como espécie invasora nociva, à semelhança do que aconteceu com os javalis, que se proliferaram pelo país nos últimos anos com consequências graves para a agricultura e o meio ambiente.
França Filho afirma ter encaminhado ao Ibama e à Secretaria Municipal do Meio Ambiente e Urbanismo de São José do Rio Preto uma autorização para o manejo da Lepus europaus com arma de fogo. “Enquanto não se declara que é nociva, não pode matar”, explica. “Fica meio no limbo; está autorizado, mas não regulamentado.”
Espécie nociva?
O engenheiro agrônomo Rafael Salerno, também controlador de javalis registrado pelo Ibama e caçador credenciado pelo Exército, traçou caminho semelhante em pedido enviado ao Ibama em março de 2017.
Ali escreve estar ciente de que as lebres europeias já foram declaradas como espécie exótica invasora segundo deliberação do Consema (Conselho Estadual do Meio Ambiente) 30/2011 e reconhecidas como praga pelo boletim IAC (Instituto Agronômico de Campinas) 110. Além disso, lembra que está facultado ao Estado sua declaração como espécie nociva, conforme Instrução Normativa 141/2006 do Ibama.
Recebeu como resposta do Instituto a informação de que “não há uma norma que declare a espécie nociva em todo o território nacional, mas, considerando que alguns Estados já declararam sua nocividade, pessoas físicas ou jurídicas interessadas no controle da lebre devem solicitar autorização junto ao órgão ambiental competente nos respectivos Estados conforme as normas estaduais e, em casos excepcionais, solicitar essa autorização para a unidade do Ibama no respectivo Estado”.
Ocorre que nenhum Estado brasileiro declarou a espécie nociva.
“A lebre europeia vem ganhando território pelo Brasil claramente pela inépcia e prevaricação dos órgãos estaduais de meio ambiente e do Ibama”, afirma Salerno, que mora em Sete Lagoas, Minas Gerais. Ele ressalta que, talvez por predação direta, talvez por transmissão de doenças, ou por causa dos dois motivos conjugados, o lebrão ainda estaria colaborando para a extinção do tapiti, coelho nativo brasileiro.
De acordo com a bióloga Graziele Batista, analista ambiental da Coordenação de Gestão, Destinação e Manejo da Biodiversidade, do Ibama, paralelamente à elaboração de planos nacionais para prevenção, controle e monitoramento de espécies exóticas invasoras e à revisão da estratégia nacional para essas espécies, estão sendo reavaliados os critérios de priorização daquelas que devem ser alvo de prevenção e controle para aprimorar normas, mecanismos e ações.
A previsão para a estratégia nacional é abril de 2018. A revisão dos critérios? “Também para o ano que vem”, diz, sem especificar o mês.
O Ibama garante não ter dados oficiais de estimativas de prejuízos na agricultura do país causados pela lebre europeia nem de seu impacto ambiental. “Mas é uma espécie que certamente vai ser considerada de alguma forma para controle, porque a distribuição dela tem aumentado muito na última década”, diz Batista.
A analista não soube informar se seria liberada a caça ou se o controle seria por armadilha – ou por ambos. A priori, o veneno estaria descartado. “Ele é muito usado em outros países, mas no Brasil seria praticamente inviável, ainda mais em áreas de mata, porque dificilmente haverá um veneno específico para a lebre europeia, o que poderia afetar espécies nativas.”
‘Para mim é omissão’
A ecóloga Clarissa Rosa questiona a afirmação de que o Ibama não teria dados oficiais sobre a questão.
“Eles receberam das minhas mãos o artigo sobre a lebre europeia que publicamos, momento em que discutimos o problema”, afirma. Lembra também que, em todas as reuniões que tratam da invasão dos javalis, nas quais estão presentes pesquisadores, órgãos públicos, produtores e caçadores, a lebre sempre é levantada como uma questão que merece plano nacional. “Isso para mim é omissão”, diz.
Ela concorda, porém, que há que se pensar em formas de controle conjugadas: “Discutir qual o melhor método de todos é bater cabeça e discurso ideológico”.
Rosa retoma uma iniciativa muito comum na Europa, a dos stakeholders, que envolvem lideranças da comunidade local, grupos apoiados por pesquisadores e órgãos ambientais, todos treinados para identificar espécies e criar sistemas de detecção precoce. “A gente sabe que o controle e a erradicação de uma espécie invasora só é efetivo quando identificado nos primeiros momentos da invasão”, conclui.
Para Emanuel Alexandre Coutinho, que dá consultoria a agricultores de Senador Amaral, no sul de Minas – município que mais produz brócolis no Brasil -, a coisa avançou a tal ponto que o plantio já é feito considerando as perdas por ataques, que são certas e líquidas.
“O preço final do produto não aumentou, por enquanto, mas isso afeta a lucratividade e a competitividade do agricultor”, diz.
O cenário fatídico não impede que produtores soltem rojões na plantação – para tentar espantar os lebrões, claro. Há pouco a comemorar.
Fonte: BBC Brasil