Por Paulo de Bessa Antunes*
Recente despacho do Ministro do Meio Ambiente determinando o afastamento da Lei da Mata Atlântica e a aplicação do Código Florestal nas chamadas áreas de preservação permanente [APP] consolidadas, deu margem a protestos de ambientalistas e ao ajuizamento de uma ação civil pública buscando a anulação da decisão[1]. Este artigo tem por objetivo expor o nosso ponto de vista acerca da discussão.
O Contexto histórico da Mata Atlântica
A Mata Atlântica foi o primeiro ecossistema brasileiro a ser contactado pelos europeus. Ao que parece, conforme a ácida observação de Warren DEAN. 1996, p. 59), “[u]m dos primeiros atos dos marinheiros portugueses que, a 22 de abril de 1500, alcançaram a costa sobrecarregada de florestas do continente sul-americano aos 17 graus de atitude sul, foi derrubar uma árvore. Do tronco desse sacrifício ao machado de aço, confeccionaram uma cruz rústica – para eles, o símbolo da salvação da humanidade.”
Ao longo dos 520 anos que se seguiram ao primeiro contato europeu com a Mata Atlântica, a sua situação é crítica. Segundo informações do Ministério do Meio Ambiente[2], o Bioma ocupava mais de 1,3 milhões de km² em 17 estados do território brasileiro, estendendo-se por grande parte da costa do país. Porém, devido à ocupação e atividades humanas na região, hoje restam cerca de 29% de sua cobertura original. Apesar disso, admite-se que a Mata Atlântica abrigue cerca de 20 mil espécies vegetais (35% das espécies existentes no Brasil), incluindo diversas espécies endêmicas e ameaçadas de extinção. Em relação à fauna, o bioma abriga, aproximadamente, 850 espécies de aves, 370 de anfíbios, 200 de répteis, 270 de mamíferos e 350 de peixes.
Os principais “ciclos econômicos” brasileiros acontecerem nos domínios da Mata Atlântica, onde estão localizadas as maiores cidades do país. Aproximadamente 72% da população brasileira vivem em área de incidência de Mata Atlântica, que responde por cerca de 70% do PIB brasileiro[3].
A importância da Mata Atlântica e de sua adequada conservação para o Brasil é indiscutível. Entretanto, recentemente, a Advocacia Geral da União emitiu o Parecer n. 00115/2019/DECOR/CGU/AGU[4] , aprovado pelo Ministro do Meio Ambiente[5] que privilegia a aplicação da Lei nº 12.651/2012 em detrimento da Lei da Mata Atlântica em áreas consideradas como de preservação permanente consolidadas, em regiões de incidência da Mata Atlântica: “ Existência de interpretações diferentes sobre a aplicabilidade dos arts. 61-A e 61-B do Código Florestal ao Bioma Mata Atlântica. II – A instituição do regime de transição previsto no Código Florestal, na linha do que decidiu o Supremo Tribunal Federal, visa a preservar o meio ambiente, nele inserido a Mata Atlântica, para futuras gerações, garantindo ao mesmo tempo o direito à atividade econômica daqueles que atualmente estão inseridos em áreas rurais consolidadas, ainda que localizadas em APP.III – As áreas sobre as quais não incidem as medidas protetivas da Mata Atlântica, ainda que inseridas no espaço geográfico correspondente a esse Bioma, sofrem a incidência do Código Florestal, inclusive dos arts. 61-A e 61-B, eis que o conceito de área consolidada não parece ser compatível com a presença de vegetação nativa primária ou secundária em suas fases de recuperação. Se há mata nativa, não se pode falar em área rural consolidada. IV – Os dispositivos legais constantes da Lei da Mata Atlântica que trataram das Áreas de Preservação Permanente – APP no Bioma Mata Atlântica fizeram remissão antigo Código Florestal ou disciplinaram aspectos com o fito de os diferenciar do regramento geral determinado pelo Código Florestal, o que demonstra que são sistemas jurídicos complementares.”
Em síntese: a discussão é se nas chamadas APPs consolidadas, aplica-se o Código Florestal ou a Lei da Mata Atlântica? O tema é da maior relevância e merece reflexão. A seu respeito, veja-se o excelente artigo de Érika Bechara[6] que me parece ter enfocado a matéria com propriedade.
A Mata Atlântica, como se sabe, possui proteção constitucional, § 4º do artigo 225 da Carta Constitucional, sendo considerada patrimônio nacional. Em tal condição, a sua utilização se “far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.“ O comando Constitucional foi cumprido pela edição da Lei nº 11.428/06 que, em seu artigo 1º estabelece que “[a]conservação, a proteção, a regeneração e a utilização do Bioma Mata Atlântica, patrimônio nacional, observarão o que estabelece esta Lei, bem como a legislação ambiental vigente, em especial a Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965. “ A boa hermenêutica jurídica nos diz que, em relação à Mata Atlântica, a lei a ser primariamente aplicada é a da própria Mata Atlântica e, subsidiariamente, “a legislação ambiental vigente, em especial a Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965.” Isto é, caso a Lei nº 11.428/06, seja omissa em relação a determinado tema, busca-se socorro na legislação geral de proteção ao meio ambiente.
O Regimento do Pau Brasil[7] foi, certamente, a primeira norma voltada para a proteção da Mata Atlântica, punindo com a morte quem cortasse a madeira sem a devida autorização: “Parágrafo 1º. Primeiramente Hei por bem, e Mando, que nenhuma pessoa possa cortar, nem mandar cortar o dito pau brasil, por si, ou seus escravos ou Feitores seus, sem expressa licença, ou escrito do Provedor mór de Minha Fazenda, de cada uma das Capitanias, em cujo distrito estiver a mata, em que se houver de cortar; e o que o contrário fizer incorrerá em pena de morte e confiscação de toda sua fazenda…. “ .
Ainda que não voltada especificamente para a mata Atlântica, a Lei nº 601/1850, em seu artigo 2º dispunha que os “que se apossarem de terras devolutas ou de alheias, e nelas derribarem matos ou lhes puserem fogo, serão obrigados a despejo, com perda de benfeitorias, e de mais sofrerão a pena de dois a seis meses do prisão e multa de 100$, além da satisfação do dano causado.”
O Código Florestal de 1934 foi uma reação ao desmatamento da Mata Atlântica que, em grande parte era promovido pelos estados, dadas as competências previstas na Constituição de 1891 em relação às florestas e matas. Não por acaso, as primeiras “unidades de conservação” brasileiras foram estabelecidas na Mata Atlântica, como uma reação ao desmatamento desenfreado. A título de exemplo, cita-se o Parque Nacional de Itatiaia, estima-se que a Mata Atlântica possua cerca de 2.233 Unidades de Conservação, considerando as três esferas político-administrativas. [8]
Monteiro Lobato, com a argúcia que o caracterizou, sobre a Mata Atlântica no estado de São Paulo, afirmou: “Nada mais soberbo – e nada desculpa tanto orgulho paulista – do que o mar de cafeeiros em linha, postos em substituição da floresta nativa” (2008, p. 20). O “mar de cafeeiros” saiu do Rio de Janeiro, foi para o vale do Paraíba e, daí, para o Oeste de São Paulo. Na cidade do Rio de Janeiro, a devastação da Mata Atlântica foi de tal ordem que o poder público foi obrigado a “construir” a Floresta da Tijuca (HEYNEMANN, 1995) para assegurar o abastecimento de água para o Município neutro da Corte.
Código Florestal e Mata Atlântica
A lei nº 12.651/2012 tem abrangência menor do que a revogada Lei nº 4.771/1965 (antigo Código Florestal), pois ao longo dos anos foram sendo editadas leis especiais voltadas para a proteção da diversidade biológica. A Lei do Sistema Nacional de Unidade de Conservação, artigo 60, revogou o artigo 5º da Lei nº 4.771/1965, estabelecendo um direito especial. Posteriormente, a Lei da Mata Atlântica, pelo princípio da especialização, tomou o lugar do Código Florestal na área de incidência da Mata Atlântica. É certo, todavia, que o artigo 1º da Lei nº 11.428/06 faz expressa menção à Lei nº 4.771/1965 que, como já foi visto acima, teria aplicação subsidiária em casos lacunosos.
As APPs, sem dúvida, não foram tratadas pela Lei da Mata Atlântica e, tipicamente, se configuram em casos de aplicação subsidiária da Lei nº 4.771/1965, não tivesse esta sido revogada pela Lei nº 12.651/2012. Entretanto, a Lei nº 12.651/2012, ao cuidar das APP, fê-lo de duas formas distintas: a (1) primeira foi o estabelecimento do regime geral a elas aplicável [Disposições Gerais -Capítulo I e Áreas de Preservação Permanente – Capítulo II ] a (2) segunda foi o estabelecimento de normas transitórias para as chamadas APPs consolidadas [Capítulo XIII – das Disposições Transitórias]. Cabe uma nota sobre a consolidação da APP, tal como tratada pela Lei nº 12.651/2012. Consolidada, na verdade, não é a área de preservação permanente, mas pelo contrário, atividades que, em tese, nelas não poderiam ser exercidas legalmente. Logo, a norma reconhece uma situação de fato que se consolidou em contravenção à lei. Em sendo assim, é uma afronta ao direito que se busque transformar situações que a própria lei atribui o caráter de transitórias em regras gerais aplicáveis a um bioma que está presente em 17 estados da federação.
Os artigos 61 A e 61 B são inovações em relação à Lei nº 4.771/1965 e, claramente, oferecem menos proteção ambiental do que as normas contempladas pela lei revogada. Não se discute aqui a constitucionalidade de tais comandos legais que, aliás, já foram confirmados em sua constitucionalidade pelo STF. Todavia, é necessário observar que os artigos 61 A e 61 B estão, topologicamente, localizados no Capítulo XIII, das Disposições Transitórias. Em tal condição, são normas com endereço certo, destinadas a regular situações provisórias que são explicitamente definidas e, portanto, de aplicação restrita e não geral, como pretende o Ministério do Meio Ambiente. Nenhum dos dois artigos faz qualquer menção expressa à aplicação no Bioma Mata Atlântica que, como se sabe, é regido por lei própria e, no que tange à aplicação subsidiária de outras leis, no caso a lei nº 12.651/2012, não teria qualquer sentido lógico ou jurídico que se presumisse a aplicação de suas disposições transitórias, até mesmo porque estas são exceções e é elementar que, em direito, as exceções não se presumem. Assim, em nossa opinião, salvo expressa determinação legal, as áreas de APP no bioma Mata Atlântica estão regidas pelas normas gerais da Lei nº 12.651/2012.
Com relação ao despacho ministerial, ainda que se possa entender que a questão, do ponto de vista jurídico é complexa, não se pode esquecer que:
“A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 225, estabelece que o meio ambiente sadio é um direito de todos, incumbindo ao poder público protegê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Cabe ao Ministério do Meio Ambiente a função de tutela de nosso patrimônio ambiental, como um mandato irrenunciável a ser exercido de forma clara e peremptória. Não cabe ao Ministério do Meio Ambiente a defesa de grupos econômicos ou de produtores, haja vista que estes já se encontram adequadamente representados no interior da Administração Federal, em todos os seus escalões.” Como já pude afirmar em companhia de Paulo Affonso Leme Machado e Édis Milaré, em carta Aberta ao Senhor Presidente da República.[9]
Por fim, seria completamente ilógico que a aplicação subsidiária de uma norma resultasse em grau menor de proteção ambiental do que o concedido pela Lei especial de regência da matéria.
Referências
DEAN, Warren. A Ferro e Fogo – A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira (tradução de Cid Knipel Moreira). São Paulo: Companhia das Letras. 1996
HEYNEMANN, Cláudia. Floresta da Tijuca – Natureza e Civilização. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. 1995.
LOBATO, Monteiro. A Onda Verde. São Paulo: Globo. 2008.
[1] Disponível em: < https://www.oeco.org.br/noticias/mpf-entra-na-justica-contra-despacho-de-salles-que-ignora-lei-da-mata-atlantica/ > Acesso em: 12/05/2020
[2] Disponível em: < https://www.mma.gov.br/biomas/mata-atl%C3%A2ntica_emdesenvolvimento > Acesso em: 11/05/2020
[3] Disponível em: < https://www.sosma.org.br/conheca/mata-atlantica/ > Acesso em: 11/05/2020
[4] Disponível em: < https://www.oeco.org.br/wp-content/uploads/2020/04/PARECER-n.-00115-2019-DECOR-CGU-AGU-Mata-Atlantica-1.pdf > Acesso em: 11/05/2020
[5] Dispoonível em: < http://www.in.gov.br/web/dou/-/despacho-n-4.410/2020-251289803 > Acesso em: 11/05/2020
[6] Dispoonível em: < https://www.sosma.org.br/artigos/reflexoes-sobre-a-nao-incidencia-do-regime-de-uso-consolidado-da-area-de-preservacao-permanente-app-no-bioma-mata-atlantica/ > Acesso em: 11/05/2020
[7] Disponível em: < https://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia-brasil/brasil-colonia-documentos-3-regimento-do-pau-brasil-1605.htm > Acesso em: 11/05/2020
[8] Disponível em: < https://www.sosma.org.br/wp-content/uploads/2017/07/SOSMA-UCs_WEB.pdf > Acesso em: 11/05/2020
[9] Disponível em: < http://genjuridico.com.br/2019/05/30/carta-ao-presidente-bolsonaro/ > Acesso em: 11/05/2020
*Paulo Bessa Antunes – Mestre e Doutor em Direito. Líder de Pesquisa Acadêmica cadastrada no CNPq. Visiting Scholar de Lewis and Clark College, Portland, Oregon. Professor adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Procurador regional da República (aposentado). Foi Presidente da Comissão Permanente de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros. Ex-chefe da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado do Meio Ambiente do Estado do Rio de Janeiro. Sócio da prática de Direito Ambiental do Tauil & Chequer Advogados, advogado e parecerista em Direito Ambiental. Autor de diversos livros e artigos sobre Direito Ambiental.
Fonte: GenJuridico
Publicação Ambiente Legal, 08/06/2020
Edição: Ana A. Alencar