Por Marcos Paulo de Souza Miranda*
Está prestes a completar seu aniversário de 60 anos a lei federal que instituiu proteção para o patrimônio arqueológico brasileiro.
As origens do diploma do qual nos ocupamos neste artigo remontam à década de 1950, época em que centenas de sítios arqueológicos existentes na região litorânea do país (os sambaquis, constituídos pelo acúmulo de conchas associadas a outros vestígios arqueológicos) estavam sendo totalmente destruídos para produzir cal, farinha de concha para ração animal, calcário para calagem do solo ou até mesmo para a pavimentação de estradas.
A situação de aniquilamento do patrimônio arqueológico datado de milhares de anos fez surgir forte reação por parte da academia de nosso país, que passou a cobrar insistentemente a edição de um ato normativo de abrangência nacional capaz de estabelecer regras sobre o assunto e compatibilizar interesses econômicos privados com a preservação dos antigos vestígios deixados por nossos ancestrais.
Em agosto de 1954 foi realizado na cidade de São Paulo o XXXI Congresso Internacional de Americanistas, onde cientistas de várias partes do mundo manifestaram sua preocupação com a dilapidação do patrimônio arqueológico brasileiro, colocando as autoridades nacionais em uma situação delicada, sobretudo pelo renome e credibilidade dos pesquisadores envolvidos no assunto, a exemplo de Paul Rivet, do Museu do Homem, de Paris.
Não bastasse, em dezembro de 1956 uma Conferência da Unesco realizada na Índia resultou na publicação da chamada Carta de Nova Delli, trazendo diversas recomendações sobre a gestão do patrimônio arqueológico em âmbito mundial, destacando-se a necessidade de cada Estado definir o regime jurídico do “subsolo arqueológico e, quando esse subsolo for de propriedade do Estado, indicá-lo expressamente na legislação”.
Por isso, em 1957, o governo federal, pelo Ministério da Agricultura, então titularizado por Mario Meneghetti, “diante dos reiterados protestos pela destruição das nossas mais inestimáveis fontes de cultura e investigações científicas, viu-se na contingência de, em comum acordo com a Secretaria de Educação e Cultura”, designar uma comissão integrada por Benjamin de Campos (consultor jurídico do Ministério da Agricultura), Avelino Inácio de Oliveira (diretor-geral do Departamento Nacional de Produção Mineral), Rodrigo Melo Franco de Andrade (diretor do Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), José Cândido de Melo Carvalho (diretor do Museu Nacional), Paulo Duarte (presidente da Comissão de Pré-História de São Paulo) e José Loureiro Fernandes (Faculdade de Filosofia do Paraná) para elaboração de anteprojeto de lei consubstanciando as medidas tendentes a assegurar proteção para o patrimônio pré-histórico nacional[1].
A comissão de especialistas chegou às seguintes conclusões[2]:
a) Que os sambaquis constituem jazidas arqueológicas ou pré-históricas de inestimável valor, não se justificando, conseguintemente, a impassibilidade do Poder Público diante dos atos de verdadeiro vandalismo a que estão expostos em todo o território nacional, com graves e irreparáveis prejuízos para o seu patrimônio científico e cultural;
b) Que, em que pesem os apelos de alguns estados e outras entidades públicas e particulares, justamente interessados na preservação desse patrimônio, as jazidas arqueológicas e pré-históricas continuam a ser destruídas de maneira sistemática, com graves e irreparáveis danos para o patrimônio nacional;
c) Que louvável e patriótica iniciativa dos estados de São Paulo e Paraná, no sentido de preservar esses patrimônio, foi praticamente anulada com as sucessivas autorizações de lavra outorgadas para a exploração econômicas dessas jazidas;
d) Que a legislação federal existente sobre o assunto e para as quais se tem tentado inutilmente apelar (Decretos-leis 25/1937 e 4.146/1942, o primeiro dispondo sobre o Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e o segundo sobre a proteção dos depósitos fossilíferos), não podem, de forma alguma, satisfazer os reclamos de uma ação ampla, coordenada e eficaz e que deve versar, simultaneamente, sobre dois termos capitais do problema: a proteção das jazidas e a regulamentação das escavações arqueológicas e pré-históricas;
Com base em tais premissas e fortemente influenciado pela legislação francesa[3] e na Carta de Nova Delli, foi elaborado o anteprojeto de lei, que depois de passar pelo crivo do Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp), onde foi analisado por João Guilherme de Aragão[4], e do Ministério da Educação e Cultura, titularizado por Clóvis Salgado, foi transformado no Projeto de Lei 3.537, remetido ao Congresso Nacional pelo presidente da República Juscelino Kubitscheck em 26 de novembro de 1957.
Iniciada a tramitação, o projeto foi analisado pelas Comissões de Constituição e Justiça, Educação, Finanças e Economia, sendo aprovada na Câmara dos Deputados em 22 de junho de 1960, com subsequente encaminhamento ao Senado, onde, sob o número 61/1960, tramitou por um ano, sendo aprovado e encaminhado, na sequência, para a sanção presidencial.
Durante o tramitar do projeto de lei a causa da defesa do patrimônio arqueológico ganhou reforço no cenário nacional com a fundação, na cidade de São Paulo, em 19 de março de 1959, do Instituto de Pré-História e Etnologia, presidido pelo professor Paulo Duarte, que passou a bradar fortemente nos jornais da época contra a destruição “vandálica” dos monumentos pré-históricos brasileiros, em razão da “exploração cega e gananciosa”.[5]
Finalmente, em 26 de julho de 1961, o então presidente da República Jânio Quadros sancionou a Lei 3.924/1961, que dispôs sobre os monumentos arqueológicos e pré-históricos existentes em nosso território, estabelecendo, em síntese, normas de proteção ao patrimônio arqueológico, de compatibilização com atividades econômicas e de regramento sobre o achado, pesquisas (escavações), circulação, cadastro e gestão dos vestígios de valor cultural.
Com o advento da Lei 3.924/61 foi estabelecido um regime jurídico próprio para os bens de valor arqueológico cuja proteção passou a decorrer ex vi legis, não havendo mais necessidade de tombamento da jazida, medida complexa e pouco adequada à tutela do patrimônio arqueológico tendo em vista que em muitos casos a pesquisa científica necessária para o estudo dos sítios acaba por desmonta-los integralmente, o que a rigor contraria a norma de proteção integral inserta no artigo 17 da Lei de Tombamento.
De acordo com a Lei 3.924/1961, todos os monumentos arqueológicos ou pré-históricos de qualquer natureza existentes no território nacional e todos os elementos que neles se encontram ficam sob a guarda e proteção do poder público (artigo 1º.).
A expressão “monumento arqueológico”, de uso corrente naquela quadra da história, hoje corresponde a “bem arqueológico” e compreende tanto os sítios (locais que reúnem vestígios arqueológicos, a exemplo de antigos aldeamentos em subsuperfície), quanto os vestígios considerados de forma isolada (uma urna funerária pré-histórica, por exemplo).
Os bens arqueológicos são constituídos por vestígios decorrentes das atividades humanas pretéritas que podem ser encontrados na superfície, no subsolo ou sob as águas.
Os vestígios objeto do estudo da arqueologia são divididos em: a) diretos, compreendendo os testemunhos materiais presentes nos níveis arqueológicos tais como instrumentos de pedra, cerâmica, carvões de fogueiras, ossos, pinturas rupestres; b) indiretos, compreendendo objetos ou estruturas ausentes no lugar onde se poderia esperar que existissem (vestígios negativos) ou que sugerem a existência de outros objetos ou atividades cujas marcas diretas não são encontradas no sítio (vestígios sugestivos)[6].
O artigo 2º da Lei 3.924/61 enumera, de forma exemplificativa, alguns bens considerados como monumentos arqueológicos ou pré-históricos tais como os sambaquis, montes artificiais, poços sepulcrais, jazigos, aterrados, estearias, inscrições rupestres, locais utilizados como sulcos de polimentos de utensílios e outros vestígios de atividades de paleoameríndios (primeiros povos que entraram e, posteriormente, habitaram, o continente americano).
Ressalte-se que bens arqueológicos e bens pré-históricos não são sinônimos. Estes últimos dizem respeito ao período em que o homem viveu antes da descoberta da escrita, enquanto os bens arqueológicos podem ser posteriores, como no caso de vestígios de aldeamentos indígenas pós-cabralinos.
Já o artigo 3º. da Lei proíbe o aproveitamento econômico, a destruição ou mutilação, para qualquer fim, das jazidas arqueológicas ou pré-históricas conhecidas como sambaquis, casqueiros, concheiros, birbigueiras ou sernambis, e bem assim dos sítios, inscrições e objetos enumerados, antes de serem devidamente pesquisados.
Nos termos do artigo 5º da Lei do Patrimônio Arqueológico, qualquer ato que importe a destruição ou mutilação dos monumentos por ela protegidos é considerado crime contra o patrimônio nacional que deve ser punido nos termos da legislação penal. Atualmente, os artigos 62 e 63 da Lei 9.605/98 preveem sanções criminais para os casos de destruição, deterioração, mutilação e alteração indevida do patrimônio arqueológico nacional, não mais se aplicando os artigos do Código Penal que tratavam do tema (artigo 29).
A lei dispõe sobre o direito de particulares realizarem escavações para fins arqueológicos, em terras de domínio público ou particular, sujeitando-o à permissão do órgão nacional de proteção ao patrimônio cultural (artigos 8º a 12).
Ela também estabelece o regramento para as escavações arqueológicas realizadas por instituições científicas especializadas da União, dos estados e dos municípios, que ficam subordinadas à autorização federal e comunicação ao órgão de proteção do patrimônio nacional (artigos 13 e 16). Prevê a incidência dos institutos da ocupação temporária e da desapropriação de imóveis em que ocorram jazidas arqueológicas (artigos 14 e 15).
Prevê, ainda, que a posse e a salvaguarda dos bens de natureza arqueológica ou pré-histórica constituem, em princípio, direito imanente ao Estado (artigo 17).
Em dispositivo que deixa evidente a sua incidência sobre o patrimônio arqueológico histórico (artigo 18), a norma em comento estabelece que a descoberta fortuita de quaisquer elementos de interesse arqueológico ou pré-histórico, histórico, artístico ou numismático, deverá ser imediatamente comunicada ao órgão do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (atual Iphan), ou aos órgãos oficiais autorizados, pelo autor do achado ou pelo proprietário do local onde tiver ocorrido. O proprietário ou ocupante do imóvel onde se tiver verificado o achado, é responsável pela conservação provisória da coisa descoberta, até pronunciamento e deliberação do órgão do patrimônio histórico e artístico nacional.
Objetivando evitar a evasão do patrimônio cultural brasileiro, a Lei 3.924/61 dispõe que, sob pena de apreensão imediata, nenhum objeto que apresente interesse arqueológico ou pré-histórico, numismático ou artístico poderá ser transferido para o exterior, sem licença expressa do órgão do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, constante de uma “guia” de liberação na qual serão devidamente especificados os objetos a serem transferidos (artigoa 20 e 21).
Estabelece que o aproveitamento econômico das jazidas arqueológicas poderá ser realizado nas condições prescritas pelo Código de Minas, uma vez concluída a sua exploração científica, mediante parecer favorável do órgão de proteção do patrimônio cultural. De todas as jazidas será preservada sempre que possível ou conveniente, uma parte significativa, a ser protegida pelos meios convenientes, como blocos testemunhos (artigo 22).
Dispõe que nenhuma autorização de pesquisa ou de lavra para jazidas, de calcáreo de concha, que possua as características de monumentos arqueológicos ou pré-históricos, poderá ser concedida sem audiência prévia do órgão de proteção do patrimônio cultural nacional (artigo 24)
Em sede de sanções administrativas, a lei prevê que a realização de escavações arqueológicas ou pré-históricas, com infringência de qualquer dos dispositivos desta lei, dará lugar a multa, sem prejuízo de sumária apreensão e consequente perda, para o patrimônio nacional, de todo o material e equipamentos existentes no local.
Em seu artigo 27 a norma estabelece que o órgão de defesa do patrimônio histórico e artístico nacional (atual Iphan) manterá um cadastro dos monumentos arqueológicos do Brasil, no qual serão registradas todas as jazidas manifestadas, bem como das que se tornarem conhecidas por qualquer via. Atualmente o Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA) registra 27.582 sítios em todo o Brasil, destacando-se pela quantidade os estados do Rio Grande do Sul (3.732), Minas Gerais (2.141), Piauí (1.928), Santa Catarina (1.754) e São Paulo (1.429).[7]
Prevê no artigo 28 que as atribuições federais para o cumprimento de seus dispositivos poderão ser delegadas a qualquer unidade da Federação que disponha de serviços técnico-administrativos especialmente organizados para a guarda, preservação e estudo das jazidas arqueológicas e pré-históricas, bem como de recursos suficientes para o custeio e bom andamento dos trabalhos.
Enfim, prestes a completar seis décadas de vigência, a Lei 3.924/1961 constitui instrumento de extremo relevo para a proteção do patrimônio cultural brasileiro e vem contribuindo decisivamente, ao longo de sua existência, para o necessário equilíbrio entre o desenvolvimento de atividades econômicas e a preservação dos bens arqueológicos existentes em nosso país.
[1] Mensagem do Poder Executivo 512/57. Diário do Congresso Nacional. Rio de Janeiro. Seção I. 29 de novembro de 1957. p. 10168.
[2] Mensagem do Poder Executivo 512/57. Diário do Congresso Nacional. Rio de Janeiro. Seção I. 29 de novembro de 1957. p. 10168.
[3] Loi du 31 décembre 1913 sur les monuments historiques e Loi du 27 septembre 1941, portant réglementation des fouilles archéologiques.
[4] Professor de Direito Administrativo, com doutorado pela Sorbonne.
[5] Proteção ao patrimônio do Brasil. Criado o Instituto de Pré-História e Etnologia. São Paulo: Correio Paulistano. 22 de março de 1959, p. 10.
[6] PROUS, André. Arqueologia Brasileira, Brasília: UNB. 1992. p. 26.
[7] Consulta à base de dados do CNSA em 31/03/2021. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/1699
*Marcos Paulo de Souza Miranda é promotor de Justiça, especialista em Direito Ambiental e professor de Direito do Patrimônio Cultural da Fundação Escola Superior do Ministério Público de Minas Gerais.
Fonte: Conjur
Publicação Dazibao, 12/04/2021
Edição: Ana A. Alencar
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