Ministério Público de Minas recorre lei de Dom Pedro I para expropriar obras sacras comercializadas desde os tempos coloniais
Por Pedro Mastrobuono
MP assume o monopólio do sacrossanto
Salta aos olhos a tese apresentada pelo Ministério Público de Minas Gerais para justificar pedido de apreensão de obras de arte sacra.
Com fulcro em lei do Regime Imperial Brasileiro, de 09 de Dezembro de 1830, busca o MP mineiro criar uma espécie de “pecado original”, um vício de origem que macularia toda a tradição (venda, troca ou doação) de incontáveis peças de arte sacra, atingindo suas cadeias sucessórias da era colonial até os dias de hoje.
Difícil acreditar, mas está lá, preto no branco, na petição inicial da “Ação Civil Pública em Defesa do Patrimônio Cultural de Minas Gerais” em curso na Vara Cível de Ouro Preto, cujo objeto central é uma obra de Aleijadinho (um busto relicário representando São Boaventura) da coleção João Marino, mais precisamente
A tese está situada na primeira metade do século 19, Primeiro Império, onde o artigo único de uma lei de Dom Pedro I estabelece que “são nullos (SIC) e de nenhum effeito (SIC) em Juízo, ou fora delle (SIC), todas as alienações e contractos (SIC) onerosos, feitos pelas Ordens Regulares, sobre bens móveis, immóveis (SIC) e semoventes, de seu patrimônio: uma vez que não haja precedido expressa licença do Governo, para celebrarem taes (SIC) contractos (SIC).”
O contexto histórico era marcado pela vigência do chamado regime do “padroado”, onde a Santa Sé, valendo-se de Bulas Papais, delegava às coroas ibéricas a nomeação de sacerdotes e indicação de bispos, que depois eram por ela homologados. Assim, como uma franquia dos dias atuais, o Rei de Portugal nomeava sacerdotes e pagava-lhes os salários, como se fossem “funcionários públicos”.
Desconhecimento profano de causa
Ocorre que a Igreja Católica, do ponto de vista administrativo, divide-se em clero “secular” e “ordens regulares”. Os sacerdotes seculares (ou diocesanos) são aqueles subordinados aos bispos, organizados em Dioceses, Arquidioceses etc. E existem os sacerdotes que levam vida monástica, que juram obediência a certas regras próprias, daí o termo em latim “regula”, dando origem a ordens regulares, como aqueles que vivem em conventos, mosteiros, etc.
A diferença é mais visível, quando se está diante de um sacerdote secular, usando batinas ou clergymam. De outra parte, o hábito monástico utilizado varia bastante entre as ordens religiosas regulares, como os da ordem de São Bento (beneditinos), ordem do Carmo (carmelitas), ordem de São Francisco (franciscanos). Quem não conhece o famoso hábito com capuz, dos Frades Capuchinhos, que, por sua cor de café com leite, deu nome ao “cappuccino” italiano?
O fato é que o texto legal citado visava, à época, estender o poder imperial para além da Igreja Secular, que já estava sob sua administração durante a vigência do “padroado”, tentando assim alcançar também os sacerdotes conventuais, as ordens regulares.
Não é dificil circunscrever aqui o contexto histórico e a busca pela extensão do poder do monarca.
A simples leitura da lei de 1830, agora invocada pelo Ministério Público mineiro, deixa claro que sua abrangência estava restrita aos bens de propriedade das ordens regulares. A lei é explícita, referindo-se aos bens de ordens regulares.
Para efeito de mero raciocínio, admitindo-se a hipótese que este dispositivo legal pudesse ser invocado em pleno período republicano, seria preciso enorme grau de miopia para não enxergar que sua abrangência estaria limitada aos bens de propriedade das ordens regulares.
Eis o ponto central. Desnecessário, pois, discussões outras, como se haveria ou não legitimidade por parte do MP para atuar em nome de interesses monárquicos, por exemplo.
Estratégia expropriatória, desvio de finalidade e musealização
Atenção: a ordem dos Franciscanos é uma ordem mendicante, desde São Francisco de Assis. Seus integrantes não são, nem nunca foram donos de nada!
E no período do padroado, a quem pertenciam os bens de culto? Às ordens terceiras, confrarias e irmandades, entidades totalmente laicas e, acima de tudo, privadas. Não integravam o clero. Não eram administradas, seja pelas cúrias diocesanas, seja pelas ordens regulares. Funcionavam, à época, tais como as ONGs atuais.
Aliás, é importante esclarecer que a Coroa portuguesa já havia proibido a instalação de ordens regulares na região da exploração das lavras e mineração de ouro ou diamantíferas.
Causa estranheza que esta tese, juridicamente questionável em diversos aspectos, tenha sido apresentada justamente em uma ação que reivindica propriedade de obras de arte sacra que supostamente integrariam, no passado, a Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto.
Utilizar uma lei do período imperial para afirmar que uma ordem mendicante vendeu, há mais de século, bens sem autorização do imperador? Isso faz algum sentido?
Esta não é, historicamente, a única ação civil pública movida para “repatriar” arte sacra mineira. A fórmula empregada é ingressar com busca e apreensão, ainda que baseada em fatos controvertidos e prescritos, para conseguir retirar do atual proprietário a posse da obra.Em seguida, uma Ação Civil Pública, esvaziando a primeira medida de difícil sustentação.
Vale lembrar a polêmica sobre uma Imagem de Nossa Senhora das Mercês, do Aleijadinho.
Adquirida mais de trinta anos antes, diretamente de sacerdote de outro município, com recibos firmados, a imagem era formalmente declarada no imposto de renda do colecionador, que regularmente a emprestava para exposições culturais. Tudo às claras. A obra foi apreendida quando o proprietário estava viajando, através do arrombamento de sua residência, com forte repercussão.
Discussões à parte, fato é que a peça não retornou a qualquer das Igrejas tombadas de Nossa Senhora das Mercês de Ouro Preto, que seriam, em tese, as vítimas do alegado furto. Está no Museu de Arte Sacra daquele município, recebida na cidade por políticos.
Queira-se ou não, foi “musealizada”.
É preciso muito cuidado, especialmente nos dias de hoje, em que a “musealização” de bens está causando tanta celeuma. Faz-se necessária uma ampla discussão sobre todas essas questões.
E rápido, antes que arbitrariedades acabem sendo cometidas.
É de deixar pasmo qualquer cidadão republicano, em especial quem efetivamente crê viver em um Estado de Direito.
Pedro Mastrobuono é advogado, membro da Comissão de Infraestrutura, Logística e Desenvolvimento Sustentável da OAB/SP e diretor jurídico do Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna.
Notável abordagem ! Caro dr. Pedro, a se considerar que seja pertinente e válida a invocação de decreto do tempo do outro Pedro, precisamos rever todo o ordenameto jurídico brasileiro. Difícil acreditar que membro(s) do MP possa(m) assim raciocinar. Dá a nítida impressão que professam o empirismo-experimental ( ‘sicola’).
Li o artigo e fiquei perplexo. Não entendo muito bem de leis, mas acho que no meu “senso republicano” temos uma constituição que não inclui as leis imperiais, ou inclui? Isso abriria precedente para um mundo de coisas absurdas. Que tal o governo republicano começar a devolver as coisas que tomou da noite para o dia (15 de novembro está aí) para os herdeiros de D. Pedro II, então. Assim, aproveita e devolve o próprio regime de governo, já que as leis antigas e imperiais são necessárias. Não seria o mais óbvio? Esse país é um absurdo, mesmo. E o que mais me espanta é o silêncio da “classe cultural”.
Falta no Brasil uma cultura que realmente alimente o espírito democrático, no sentido de termos confiança em um estado de direito que faça surgir um espírito de compartilhamento público do patrimônio privado, sem medo de ser expropriado. Caso contrário, temos as alternativas das coleções ocultas, da migração dos interesses de se colecionar para outras atividades, da desintegração de coleções longe dos olhos do estado (incluindo tanto a venda local para outros particulares, quanto a exportação inteira de coleções para o exterior, como sabemos que ocorre). Em um mundo “globalizado” e de circulação de informações, é totalmente atrasado o conceito de se forçar criar “identidades” locais pela coerção e imposição de valores definidos por classes dominantes e partidos políticos. A tal “preservação do patrimônio” móvel pode ser feita em quaisquer locais e gostaria muito de ver no The Metropolitan Museum of Art, New York uma obra do Aleijadinho ou uma Tarsila do Amaral no MoMA The Museum of Modern Art, assim como tenho orgulho de ver Renoir, Cézanne, Van Gogh e Rafael no MASP, em São Paulo.
Caro GEDLEY BELCHIOR BRAGA,
Concordo com suas palavras. Gostaria de aduzir, em acréscimo, que o grande mal vai muito além do colecionismo.
Concordo que coleções estejam migrando para a clandestinidade e que obras estejam deixando o país.
Concordo também que a ideia de que bens culturais mineiros devam ser “repatriados” seja retrógrada.
E o Aleijadinho do Museu da Arte Sacra de São Paulo, também seria alcançável por essa tese? Já não está devidamente “musealizado”? Ou o frequentador de museus de São Paulo não tem os mesmos direitos do público mineiro? Aliás, se a moda pegasse, devolver-se-ia para a Grécia e Egito tudo aquilo que hoje é visitado por milhões no British Museum ou no Metropolitan? Nosso MASP devolveria o Renoir de seu acervo? O MAC-USP devolveria seu Modigliani?
Mas nada se compara ao mal causado a um de nossos direitos individuais e coletivos, principio consagrado constitucionalmente, denominado Segurança Jurídica. Como cidadãos republicados temos sim direito a viver em uma sociedade com regras claras, onde a lei respeite o ato jurídico perfeito, direitos adquiridos e a coisa julgada (CF, artigo 5º, XXXVI).
Seja na área da cultura ou outra qualquer, como esperar investimentos, nacionais ou do exterior, quando a imagem que se veicula é essa?
As regras do jogo são sempre torcidas, conforme a conveniência do agente de plantão.
Não entro no mérito da questão em si, mas quero parabenizar o senhor Advogado pelo brilhante aula de história. Muito obrigado e que deus o abençoe.