Por Paulo de Bessa Antunes*
A Lei nº 14.285/2021 acrescentou o inciso XXVI ao artigo 3º e o §10 ao artigo 4º da Lei nº 12.651/2012 (Novo Código Florestal — NCF) que definiram o conceito de área urbana consolidada e, a partir de tal definição, passou a admitir que, em áreas urbanas consolidadas, lei municipal ou distrital, mediante o cumprimento de certos requisitos, possa “definir faixas marginais distintas daquelas estabelecidas no inciso I do caput do artigo 4º”.
Esta modificação fez com que diversos setores passassem a entender que foi outorgada aos municípios a possibilidade de redução das faixas marginais de proteção dos recursos hídricos.
Como será demonstrado neste artigo, tal interpretação é inconstitucional. Preliminarmente, não se deve perder de vista que as disposições gerais do NCF (artigo 1º, III e IV) estabelecem que, dente os objetivos da norma, estão os de “preservação da água, do solo e da vegetação” e a “criação de políticas para a preservação e restauração da vegetação nativa e de suas funções ecológicas e sociais nas áreas urbanas e rurais”.
Estes são comandos interpretativos que nortearão a elaboração e a aplicação das normas relativas à proteção da vegetação nativa brasileira. A Lei nº 14.285/2011 vai na direção oposta, sendo objeto de impugnação perante o STF pela ADI 7146, pendente de julgamento.
A competência legislativa dos municípios é limitada aos assuntos de seu interesse local, critério dentro do qual não se incluem as faixas marginais de rios, dado que os rios fazem 1) parte de uma bacia hidrográfica e 2) raramente cruzam um único município. Muito embora a discussão do tema seja jurídica, fato é que ela ultrapassa os limites do jurídico.
O Brasil é conhecido pela abundância de recursos hídricos, entretanto, pesquisas demonstram que aproximadamente 15,7% de superfície de água foi perdida nos últimos 30 anos, o equivalente a 3,1 milhões de hectares de superfície hídrica. Em 1991, ela era de cerca de 19 milhões de hectares. Em 2020, a área foi reduzida para 16,6 milhões de hectares, equivalente a mais de uma vez e meia a superfície de água de toda região Nordeste em 2020.
Ainda segundo os levantamentos, as maiores reduções da superfície hídrica ocorreram nas proximidades das fronteiras agrícolas, o que sugere que o aumento do consumo, construção de pequenas represas em fazendas, provocando assoreamento e fragmentação da rede de drenagem, isso junto com o desmatamento e aumento de temperatura e são fatores que podem explicar a diminuição da superfície da água no Brasil.
Estima-se que o rio Negro tenha perdido 22% de sua superfície desde a década de 1990 do século passado. O rio São Francisco perdeu, aproximadamente, 50% da superfície de água natural entre 1985 e 2020 [1]. Logo, do ponto de vista dos recursos hídricos, a atribuição aos municípios para dispor sobre as faixas marginais de áreas que cruzam os seus territórios (mas não apenas), não faz sentido.
O Brasil é o sexto país do mundo que mais sofre com enchentes [2]. Nos cinco primeiros meses de 2022, 457 pessoas morreram em desastres causados pelo excesso de chuva, segundo levantamento da Confederação Nacional de Municípios (CNM) com base nos dados das defesas civis municipais. O número indica um aumento de 57% em relação a 2021 [3].
A CNM estima que, entre 01/10/2017 e 01/01/2022, os prejuízos econômicos causados pelas chuvas seja da ordem de R$ 55,5 bilhões, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Regional [4].
Do ponto de vista jurídico, inicialmente, cumpre observar que a Lei nº 12.651/2012 diminuiu as faixas de proteção das margens de cursos d’água naturais [5] se comparadas com a Lei nº 4.771/1965.
“Lei 4.771/1965: Artigo 2° Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta Lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas: a) ao longo dos rios ou de qualquer curso d’água desde o seu nível mais alto em faixa marginal cuja largura mínima será:
Lei 12651/2012: Artigo 4º Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos desta Lei: I – as faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente, excluídos os efêmeros, desde a borda da calha do leito regular, em largura mínima de: (…)“.
A diferença entre as normas é que no regime revogado se considerava a área máxima de alagamento para o início da contagem da faixa de proteção; agora o início da medição da faixa é no leito regular, na média do rio. Houve uma diminuição real da área protegida, o que foi julgado constitucional pelo STF.
A análise da jurisprudência do STF demonstra que a Corte entende que o padrão fixado pelo NCF é o mínimo nacional a ser observado. Haja vista a sequência de julgamentos pela inconstitucionalidade de normas que estabeleceram a possibilidade de criação de faixas marginais menores do que as fixadas no NCF [6].
As decisões, do ponto de vista da aplicação de uma lei geral nacional (CF artigo 24 §1º), fazem sentido na medida em que é desarrazoado que um mesmo rio possa ter critérios mínimos de proteção diferentes em cada município que cruze, ou até mesmo dentro de um único município.
A Lei nº 14.285/2021 atribuiu diretamente aos municípios a competência para dispor sobre as faixas marginais de cursos d’água, buscando com isso superar os limites fixados no NCF. Ora, será que, à luz da Lei Fundamental, os municípios são dotados de tais poderes? Com efeito, o artigo 30, I da Constituição Federal atribui aos municípios a competência para legislar sobre assuntos de interesse local. Os rios, claramente não são matéria de interesse local, salvo quando nascem e morrem no mesmo município, o que não é comum. Os rios não respeitam limites políticos e a sua gestão ultrapassa fronteiras, devendo ser integrada.
A modificação da extensão da faixa marginal em um determinado município, certamente, impacta o rio como um todo, o que supera o interesse local [7]. Também é importante consignar que a jurisprudência do STF nos leva a crer que o disposto no inciso I do artigo 4º da Lei nº 12.651/2012 é o padrão mínimo nacional aplicável à proteção das margens de rios, tendo em vista que o §10 ao falar da fixação de novos limites não disse que os limites poderiam ser inferiores ao descrito no inciso I do artigo 4º.
Ora, não é lícito presumir que os limites municipais possam ser mais frágeis do que os nacionais. Logo, admite-se que, sem dúvida, a legislação municipal possa estabelecer parâmetros mais protetivos para as faixas marginais que cruzam os seus territórios. Aliás, o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro já dispõe nesse sentido [8], o que reforça o argumento aqui exposto.
A Lei nº 9433/1997, em seu artigo 31 estabelece que a integração das políticas de uso e ocupação do solo deve ser buscada pelas políticas locais (municipais), assim, não há como se falar em política integrada de uso e ocupação do solo se cada município pudesse estabelecer seus critérios próprios para faixas de proteção das margens de rios, pois, como se sabe, a degradação dos recursos hídricos começa pela inadequada ocupação do solo.
Por outro lado, o inciso III do §10 do artigo 4º é mera reprodução de previsão contida no artigo 8º que sempre admitiu a supressão de APP para empreendimentos de utilidade pública ou interesse social. Os incisos I e II do §10 são obviedades, pois a não ocupação de áreas de risco é um dever elementar, bem como a observância dos planos de recursos hídricos. Logo, a lei não traz novidade nenhuma. As ocupações realizadas por comunidades informais, estão tratadas no artigo 65 da Lei nº 12.651/2012, conforme redação dada pela Lei nº 13.465/2017 [Reurb], estabelecendo os mecanismos legais e técnicos aplicáveis a tais casos.
É importante observar que as áreas de preservação permanente, inicialmente sob o nome de florestas protetoras, estão presentes no direito brasileiro desde o Decreto nº 4.421/1921, ou seja, há mais de 100 anos! Desde então, as condições ambientais e climáticas se degradaram e, parece sem sentido, diminuir as faixas de proteção aos rios em momento em que o número de enchentes e desastres é crescente.
Diante do que foi acima exposto, a ADI 7146, aparentemente, tem duas soluções possíveis: a 1) declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 14285/2011 como inconstitucional, ou 2) a interpretação conforme de seus dispositivos de forma que os municípios, no uso das competências outorgadas pelo artigo 30 da Constituição Federal possam ampliar a proteção das faixas marginais dos rios que cruzam os seus territórios.
[1] Disponível em < https://epbr.com.br/rio-sao-francisco-perdeu-50-da-superficie-de-agua-em-35-anos/ > acesso em 18/07/2022
[2] Disponível em < https://www.camara.leg.br/radio/programas/396885-enchentes-o-brasil-e-6o-pais-do-mundo-que-mais-sofre-com-catastrofes-climaticas/ > acesso em 18/07/2022
[3] Disponível em < https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61651974 > acesso em 18/07/2022
[4] Disponível em < https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/01/20/chuvas-no-brasil-causaram-prejuizo-de-r-555-bilhoes-em-5-anos-diz-cnm.htm?cmpid=copiaecola > acesso em 18/07/2022
[5] Disponível em < https://revistas.ufpr.br/made/article/download/32381/22438 > acesso em 23/07/2022
[6] STF – ADI: 5675 MG 0054670-06.2017.1.00.0000, relator: RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 18/12/2021, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 25/01/2022)
[7] O município é competente para legislar sobre meio ambiente com União e Estado, no limite de seu interesse local e desde que tal regramento seja e harmônico com a disciplina estabelecida pelos demais entes federados (artigo 24, VI, c/c 30, I e II, da CRFB). [RE 586.224], relator ministro Luiz Fux, j. 5-3-2015, P, DJE de 8-5-2015, Tema 145.]
Ação direta de inconstitucionalidade estadual. Lei municipal que altera regime de ocupação do solo de zona de proteção ambiental. Lei municipal é a via própria para alteração do regime de ocupação do solo. [RE 519.778 AgR, relator ministro Roberto Barroso, j. 24-6-2014, 1ª T, DJE de 1º-8-2014.]
[8] Lei nº 7.661/1988. Artigo 5º ……. §2º Normas e diretrizes sobre o uso do solo, do subsolo e das águas, bem como limitações à utilização de imóveis, poderão ser estabelecidas nos Planos de Gerenciamento Costeiro, Nacional, Estadual e Municipal, prevalecendo sempre as disposições de natureza mais restritiva.
*Paulo de Bessa Antunes é professor associado da Universidade Federa do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), presidente da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), membro da Comissão Mundial de Direito Ambiental da IUCN e presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental (Ubaa).
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 03/08/2022
Edição: Ana Alves Alencar
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