Por Alfredo Attié
Como o inconsciente, que não tem história, a amizade desconhece as regras do tempo. O amor, enfim, em todas as suas formas, eros, philia, agape, storge, que, diziam os antigos, tudo vence, não precisa de experiência, nem de meditação, ele é ou não é, et nos cedamus amori.
Indaga-me querido amigo quais seriam os livros importantes, aqueles que, lidos, conformariam a sabedoria, talvez menos a erudição, comporiam o patrimônio do que chamamos, desde o século XVIII, de civilização.
Há, é claro, os róis preparados por homens efetivamente eruditos, de cultura reconhecida porque haurida dos clássicos, que acabam por ser exatamente aqueles que devemos ler.
Mas o clássico depende de regra, de consenso dos doutos. Nem sempre queremos ser doutos. O mais das vezes queremos ser apenas nós mesmos, simples, iguais, no exercício da originalidade, que define o hominídeo, capaz de se adaptar e mudar sua conformação, ao ponto de romper as leis naturais e destruir-se a si mesmo. A criança nasce, assemelha-se a um ser vivo qualquer, que pede cuidado e alimentação. Passado um ano, mais ou menos, começa a agir como ser humano, recusando o que é saudável, buscando o prazer e fugindo da dor. Mas não sabe, senão depois de longa preparação, o que lhe traz prazer duradouro. Por isso, passamos boa parte de nossa vida procurando o prazer mais fácil, que nos cobra a dor mais duradoura.
Tem remédio a condição humana? O próprio termo pharmakos significa remédio e veneno, assim como o bem e o mal separam-se por tênue linha, amor e ódio, mentira, verdade, saber, ignorância, vingar, perdoar.
Pois então: os livros são, de alguma forma, como os remédios, que fazem bem e mal, dependendo do momento em que os lemos, do espírito que anima a leitura, do modo como dialogamos com os autores, a partir do que queremos dizer, ao ouvir deles o que gostariam de ter dito.
Os livros podem ser máscaras, por onde soa a voz… do leitor. É assim, aliás, que os religiosos bradam os livros que consideram sagrados, instrumentos para a exposição de seu próprio dogmatismo, de sua própria concepção de mundo. Se os autores dos livros sagrados, divinos e humanos, soubessem que não seriam lidos, mas apenas citados, desistiriam de seu intento de escritura. Ou, quem sabe, tenham mesmo sido sábios ao ponto de permanecerem anônimos, escondidos sob o véu do nome de outros, pouco reais, pouco imaginados. O próprio Deus dos monoteístas, Alá, Iavé/Jeová, talvez tenha deixado publicar apenas uma versão mais popularizável de suas ideias, escondendo, com medo da vulgarização, boa parte do que concebeu. Talvez tenha escondido também a melhor parte de nós mesmos, tornando-nos parciais e incapazes de realizar a grandeza da concepção que temos de nós mesmos – que nunca se encaixa na realidade e gera tanta exclusão, intolerância, dominação, exploração, opressão. Sendo apenas parte do que poderíamos ser, queremos sempre transformar os outros à nossa imagem, presumindo que a perfeição nos pode ser dada pelo meio de esconder, pela desigualdade, a imperfeição da simples diferença.
Mas vamos aos livros. Sem eles, para o bem e para o mal, sabendo ou não disso, tendo-os lido ou ignorado, não seríamos o que somos, nem o que presumimos ser, nem o que pretendemos ser e pretendemos que os outros sejam.
Eles estão aí – na maior parte desconhecidos – como risonhos construtores de nosso modo de ser, quem sabe inventores de nossa identidade, ou do que achamos que possa ser.
Mas foram escritos por outros de nós. O que significa que somos os artífices de nosso próprio engodo, que, tanta vez, chamamos destino.
Presos na malha da ficção, somos porém livres. Não como pássaros, somente, despossuídos dos instrumentos que usamos para trabalhar o mundo. Mas sobretudo livres para a morte, nosso destino mais igual e igualitário. Não nos conformamos com isso, é claro, e construímos uma hierarquia para ser vivida após a morte. Algumas dessas concepções de nova vida já foram refutadas pelos fatos: os pobres seres embalsamados, no antigo Egito, não despertaram em nenhum Paraíso, mas dentro das vitrines dos museus, vivendo o pesadelo da observação descuidada, impiedosa, constante e vulgar de turistas.
Sendo, pois, a nossa vida assim muito semelhante, nos sonhos que sonhamos e nos pesadelos que vivemos, parece evidente que a originalidade humana nasceu cedo, mas se tornou preguiçosa, aderindo logo à arte da imitação.
Por isso estava certo o poeta que disse que foram poucos os livros escritos, porque as poucas histórias que contaram vieram a ser recontadas constantemente, mesmo que com outros nomes, outros títulos, outros autores.
Segundo tal concepção, as poucas histórias realmente originais estariam nos primeiros livros, escritos por gente realmente industriosa e inteligente na arte de contar histórias e perpetuar na memória de leitores um enredo, cuja nostalgia fez com que fossem infinitas vezes compiladas e recompiladas.
Para o mundo que se convencionou chamar de ocidental (um grave equívoco, baseado em embustes e ficções medievais), tais histórias primeiras seriam evidentemente o antigo e o novo testamentos, além da Ilíada e da Odisséia.
Seu poder de preservar-se esteve na genialidade da concepção e do uso da arte de contar histórias. Essa arte é oral. Por óbvio, as fontes de todas as histórias, malgrado escritas, preservaram a sua melhor qualidade por guardarem o estilo e o sabor da oralidade. No que perde a afirmação que antes aqui fiz. Nem os primeiros livros são primeiros, pois suas histórias são compilações… de livros não escritos.
Ponto, pois, para um terceiro livro sagrado, que se acredita mesmo mera parte da revelação divina, que continua a se fazer e não é plenamente apreensível pela forma do livro, pela escrita. Assim se concebe o Corão.
Mais um livro importante, porque seminal. Já são cinco.
Haverá tempo, vita brevis, para a leitura e meditação de outros livros? Haverá necessidade disso, já que as demais histórias seriam as mesmas histórias?
Paradoxalmente, respondo que sim e sim.
A primeira resposta afirmativa apenas é decorrente do que já disse: não lemos os livros, mas a nós mesmos por meio deles. Lemos os livros para viver a vida fora (aparentemente) deles. Nossa leitura é rápida, breve, não se detém. Podermos ler todos os livros, não sejamos mais preguiçosos da leitura o quanto fomos da inventividade.
Cinco livros pra começar…. mas, é uma pena, não podemos lê-los com liberdade. Estão escondidos por séculos e séculos de outras leituras. Não conseguimos escavar o bastante para encontrá-los, nem temos essa capacidade.
Se for só pelo prazer lúdico de buscar um substrato arqueológico, do que são hoje tais livros na superfície, ainda vá lá. Mas há o problema adicional da guarda de tais substratos – selados, ensegredados (é um neologismo, para dizer o contrário de segredar) – pelos sabidos oficiais. Não se pode sair por aí desvendando substratos e cometendo erros de leitura e interpretação: um dos sabidos sempre vai corrigi-los e dar nota. Mais um ponto a menos para a nossa inventividade.
Por causa disso, outros livros foram escritos: quebram o segredo, sem dizê-lo. Recontam, ou melhor, refazem a história, rearranjam o enredo. Veja esse exemplo breve: um arqueólogo que chamou sua ciência de psicologia profunda, deu o nome de Édipo a um complexo de relações do início da existência. Referia Oedipus, um mito, depois uma peça teatral, depois, segundo a interpretação freudiana, uma outra peça teatral, cujo nome seria Hamlet. Ou seja, várias vezes a mesma história, mas contada de várias formas, cada uma delas obra da arte de seu contador. E depois ainda veio a história recontada por outro arqueólogo-filósofo, que assimilou o enredo ao curso de um julgamento. Vale a pena ler todos esses livros, todas essas versões? Claro que sim. São mais quatro livros, fora, é claro, as compilações de mitos propriamente ditas, que são inúmeras.
Até aqui, como já percebeu, não estou diretamente respondendo a sua pergunta, mas contando uma outra história, que começa, mais ou menos assim (como comecei pelo meio da história, agora preciso dizer como começa o começo): “No princípio, não era o verbo…” Por quê?
São várias as razões, mas a mais lógica é a seguinte: se o livro é um remédio… vem depois do mal que deseja curar, ou do bem que deseja recriar.
É por isso que, em boa parte dos primeiros livros, o autor é autêntico e começa a falar de alguém sem explicar muito quem seja. Ele pressupõe que todos já saibam de quem se trata.
Noutras vezes, o autor é falso, pretensiosamente original: ele explica quem é a personagem, diz porque se chama assim, quem eram seus ascendentes, quem serão seus descendentes, como formou seu caráter e por aí vai: no mínimo, dupla mentira: não foi o autor quem inventou a personagem; ele conta sua filiação só para agradar alguém do momento, ou adular seu povo, ou justificar os caprichos de um tirano, que se quer fazer povo… Exemplos inúmeros. Estão nos autores dos textos sagrados, abundantes, estão em Homero, em Virgílio, em Camões, e a lista não acaba mais. Vale a pena ler esses dois último aí? A descida ao inferno de Aeneas é uma das mais belas cenas já desenhadas. O dilema civilizador lusitano e sua dependência, muito cedo, da cultura dos mundos que ocupou, ajudam a entender muita coisa de nossa forma hesitante de ser. E Dante? Incipit Vita Nova!
O remédio da literatura, enfim, intoxica. Não conseguimos nos livrar dele. Seria uma boa coisa desvendar a razão disso. Para tanto, seria necessário recomeçar nossa história, agora do fim (já vimos o meio e o início).
Tenho mais um pouco de sua paciência de leitor?
Pois lhe digo: o mais belo de todos os livros é um livro que não existe. Não existe porque não foi escrito. É o livro que todos podemos e devemos escrever, mas que não esgotará a vontade e o desejo de ler o que não está escrito, pois outras gerações virão, dotadas do mesmo desejo, da mesma vontade.
Hoje em dia, em geral, os livros escritos são muito pobres de idéias, de imaginação. São pobres de história e na arte de contá-las.
Mas são pobres sobretudo de ética: meros plágios, sem muita arte, sequer reconhecem isso. Pior, gabam-se de originalidade… claro. Mas não é isso que chamo de falta de ética. Sabemos, desde os Antigos, que o que chamamos de criação é o entrelaçamento do que lembramos e esquecemos, conhecimento e desconhecimento, consciência e inconsciência.
Isto lança minha breve reflexão a uma obra que dá conta exata do poder da linguagem escrita, ao se apoiar na oralidade, mas acrescentar a capacidade de fazer o mundo abandonar a circularidade do tempo e começar a se perceber como fluxo em direção a um caminho impensado. Em algum lugar de La Mancha, de cujo nome não consigo recordar, vivia um fidalgo… Quem é que não se lembra dessas palavras, que são como o início do texto sagrado dos romances, da abertura à modernidade da experiência. Quantos jogos não construiu Cervantes, quantas ironias, escrever cartas para quem não vai ler, assistir ao sucesso do livro que está sendo escrito, embustes, ilusões a, até mesmo, realidade. O Dom Quixote é talvez o melhor momento de reflexão sobre a condição humana, que são múltiplas condições, mas também sobre o que pode realizar e seus limites. Mas uma obra sem vaidade.
Ética é caráter e destino comum. O que todas as obras que referi tinham de construção e reflexão sobre caráter e destino comum… perdeu-se nas obras de hoje, que são destituídas de caráter e de preocupação com o destino comum. Muito óbvias, pretensamente imparciais e universais, sem opinião, mal escritas para agradar o gosto mais vulgar, apenas frustram.
Há, em decorrência disso, uma condescendência com a mentira. Querendo parecer boazinhas, as pessoas andam mentindo muito. Escrevem o que não pensam, curvam-se a uma ideia de comunidade que não existe. Intimamente, são capazes das piores ações, dos piores pensamentos, mas mentem. Como são tolas as pessoas, hoje em dia, querendo parecer boas aos olhos de todos. E como são tolas as apologias constantes, cotidianas. Que perda de tempo e de material… Quanta homenagem à vaidade…
Os livros que todos gostaríamos de ler ainda estão à espera de ser escritos. Será que retrabalharemos os livros antigos, novamente com qualidade? Será que criaremos novas histórias, teceremos novas tramas? Espero que sim.
Antes de concluir, gostaria de citar o nome de alguns livros, que me agradaram e cuja leitura recomendo. São poucos de uma lista imensa, que sequer tenho paciência de passar para o papel. Mas acho que a lista vai agradar muita gente, que também citaria os mesmos livros, ou que venha a também os ler.
Muita gente pode ter lido, mas cada um leu de modo diferente, o que é muito bom. Como a biblioteca pessoal de cada um.
Tenho orgulho de possuir uma, com aproximadamente dezoito mil livros impressos – fora os que guardo, hoje, em meu computador. Essa biblioteca pessoal tem obras que foram de meu pai, Alfredo Attié (as que mais gosto são seus cadernos de estudo de latim, no antigo ginásio, os livros de estudo de grego), de meu tio Hélio Marzagão Barbuto e de sua amiga Mafalda, além de um livro de cada um de meus tios Francisco e Antonio Barbuto, Luís Attié, outro de meu tio avô Paulo Marzagão, outras de queridos amigos, Horst Bardua e Jean Abdo, cada um a seu modo, segundos pais para mim, e Renato Janine. Ainda guardo os livros que ganhei na infância e juventude de minha mãe, Maria Lucy, clássicos que líamos juntos, às vezes competindo pelo menor tempo, pela melhor resenha.
Mas para os livros há dois prazeres: para muitos o de apenas ter, para outros, o de ler.
E minha indicação se dá de poucos livros, apenas referindo o prazer da leitura, sem afetação, aquele que nos faz rir e chorar, eruditos e mundanos.
Todo autor, assim penso, ao escrever, está referindo, às vezes sem dizer, o que leu. Portanto toda boa obra está a indicar os seus clássicos.
Entre tais leitores-escritores, sugiro, na língua espanhola, Jorge Luis Borges e, italiana, Italo Calvino. Seus estilos são tão marcantes, que qualquer uma de suas obras abrirá as portas para todas as demais. Mas que tal, respectivamente, Pierre Menard Autor do Quixote, e As Cidades Invisíveis?
Para citar brasileiros, faço-o do quatuor que, criticamente, abre a reflexão do que somos e podemos ser, desvinculando-se das amarras da literatura anterior, apologética, reprimida: Sergio Buarque de Hollanda e Raízes do Brasil, Gilberto Freyre e Casa Grande e Senzala, Caio Prado Junior e Formação do Brasil Contemporâneo, e Mario de Andrade e Macunaíma. Ainda acrescentaria Guimarães Rosa e Grande Sertão Veredas e Clarice Lispector e a Paixão Segundo G.H..
Para citar dois autores de língua inglesa, cujos textos estão aptos a derrubar muitos preconceitos e dogmas estabelecidos, Henry David Thoreau e Walden, e Joseph Konrad e Heart of Darkness. Mas não esqueço o divertimento de outro texto inaugural, O Tom Jones de Henry Fielding.
Pensando na língua alemã, porque não endossar a dúvida sobre nossa pretensa capacidade de fazer e de criar: Homo Faber, de Max Frisch.
Ou, na língua holandesa, de nos definirmos pelo saber ou pela seriedade de nossos propósitos: Homo Ludens, de Johan Huizinga.
Da língua francesa, cito dois viajantes contemporâneos, Lévi-Strauss e Tristes Trópicos, e Pierre Clastres e a Crônica dos índios Guayaki. Os livros de viagem que nos ensinam a sermos outros e a respeitarmos e integrarmos a alteridade, como os antigos Heródoto e Tucídides, refletindo sobre o que somos. E cito também os viajantes persas e suas Cartas Persas, de Montesquieu.
Muita mais há de ser dito, mas encerro aqui, dizendo que, afinal, todos os livros que são realmente livros, ensinam-nos a liberdade de sermos nós mesmos e a igualdade de respeitarmos seus autores e os autores por trás deles.
Enfim, o que nos define é a alteridade e não a identidade.
Alfredo Attié, bacharel e mestre em direito, doutor em filosofia (USP), é magistrado do Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP.
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