Sem peixes para pescar, sem agricultura, sem renda, sem governo e com fome, somalis encontram na pirataria alternativa de sobrevivência
Por Fernanda Médici e Antonio Fernando Pinheiro Pedro
PIRATARIA DA FOME
A última década foi testemunha do renascimento de um fenômeno tão antigo quanto hediondo. Aqui e ali, nos portos do mundo, sempre houve registros de ladrões e saqueadores, que, pelo mar, invadiam barcos em busca de um bom butim. Mas, recentemente, a pirataria e, em especial, na costa do chamado Chifre africano, no nordeste do continente, assumiu proporções antes impensadas, com a necessidade de envolvimento até de frotas navais de superpotências mundiais.
Diferentemente do passado, a pirataria hoje é um problema com fortes raízes ambientais, onde os casos mais emblemáticos se concentram na costa da Somália, com registros de tripulações inteiras de barcos mercantes ou de lazer sendo feitas reféns por bandidos que chegam com lanchas.
Resultado da colonização predatória de Inglaterra e Itália, a Somália conseguiu sua independência somente em 1960. Desde então, o país viveu sob regimes ditatoriais, até que em 1991 grupos locais derrubaram o último ditador, Siad Barre, e desencadearam uma guerra civil envolvendo milícias, células terroristas e clãs, que atualmente controlam regiões do país.
O enfraquecimento contínuo do Estado somali fez com que as milícias assumissem o atendimento básico à população, papel que em países estruturados é normalmente reservado ao governo.
Com agricultura insuficiente para atender a demanda da população, os somalis dependem de ajuda humanitária para se alimentar, e parte dessa ajuda vem da ONU (Organização das Nações Unidas) e de grupos terroristas como o Al-Shabab, ligado à Al-Qaeda.
Só no ano passado, quando houve a maior seca dos últimos 60 anos, de acordo com a ONU, 16 milhões de pessoas passaram fome na Somália.
O controle do país no atual estágio de desagregação é impossível, e a falta de um governo estável revela, para piorar ainda mais o cenário, problemas de soberania nacional.
A LIXEIRA DO MUNDO
Países desenvolvidos, diante desse quadro de total falta de fiscalização no território somali, se aproveitaram para praticar pesca ilegal, não declarada e não regulada, e descartar lixo tóxico, sem tratamento, em suas praias.
A União Europeia lidera esse grupo de aproveitadores. Apenas Espanha e França, por exemplo, retiram de forma predatória cerca de 500 mil toneladas de atum por ano da Costa da Somália, dizimando cardumes e sufocando a já trôpega economia pesqueira local.
Sem governo, sem proteína, sem agricultura e com 10% do comércio do mundo passando todos os anos por seu mar territorial, em forma de 20 mil navios de carga que cruzam o Golfo de Áden, próximo ao Oriente Médio, fica fácil entender porque a pirataria virou um negócio auspicioso na região.
Não bastasse a ação de barcos pesqueiros ilegais, em 1997, a ONG ambientalista Greenpeace fez a primeira denúncia acusando a Itália e Suíça de jogar lixo tóxico no mar somali. A comunidade internacional ignorou o caso, mas, em 2004 as fortes ondas causadas pelo tsunami que atingiu o Oceano Índico e matou, em números oficiais, 174.542 pessoas, evidenciaram nas praias da Somália tonéis de resíduos radioativos de urânio, substâncias químicas e lixo hospitalar de origem europeia.
Moradores que tiveram contato com os tonéis e seus conteúdos passaram a apresentar problemas respiratórios e hemorragias intestinais, entre outros sintomas.
Como as denúncias não paravam de pipocar, o PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) encaminhou à Somália seu porta-voz Nick Nuttall, que constatou: centenas de tonéis foram enterrados ao redor da costa somali, por mais de dez anos, causando danos irreparáveis ao meio ambiente e morte à população.
Sem nenhuma providência concreta tomada por parte dos países membros da ONU, o relatório realizado pela PNUMA segue disponível no site da entidade.
Para piorar, os piratas somalis, agora, cobram uma “taxa” para depósito de lixo tóxico dos navios europeus que ali fundeiam com a finalidade de descartar resíduos pelos quais geradores deveriam estar pagando fortunas para dispor corretamente nos termos da legislação-modelo européia. Um show de criminosa hipocrisia.
MISÉRIA COMBATIDA COM MÍSSEIS
Os piratas somalis são, na verdade, um grande contingente de miseráveis, que só tem a vida a perder, mais nada. Num país onde a vida vale pouco, não é à toa que os “negócios” envolvendo pirataria se tornaram estilo de vida de uma comunidade, e uma forma de se conseguir renda.
Estima-se que mais de 150 navios foram tomados por piratas na última década (2000/2010). Só no ano de 2011, 32 navios foram sequestrados.
As ações antipirataria na costa africana são coordenadas pela Força Tarefa Combinada 151 (Combined Task Force 151), que reúne grupo de mais de 15 países, entre eles Canadá, Inglaterra, Itália, França, Paquistão, Dinamarca e Coréia do Sul.
Estudos recentes mostram que os piratas somalis custam ao mundo, por ano, algo em torno de US$ 5 bilhões, pouco menos do que um bom programa de ajuda humanitária que poria fim nesse show de horrores.
EXEMPLO VIVO DA (ausência de) SOBERANIA AFIRMATIVA
A Somália é o exemplo vivo da doutrina da soberania afirmativa, pela qual o Estado Nacional deixa de existir no direito internacional por não mais exercer controle sobre o seu próprio território.
O problema integra a questão relacionada à doutrina da Soberania Afirmativa, objeto de artigo que virou referência, publicado na Revista Ambiente Legal (*) na década passada. Nele, apontava-se como foco de preocupação internacional o uso racional e a defesa dos recursos ambientais, tidos como estratégicos. A nação que não mais exercesse controle sobre esses recursos, estaria fadada a desaparecer como entidade soberana.
O terrível é que não é mais apenas um caso de “extração” de recursos ambientais mas, também, de “tráfico internacional de lixo tóxico e tecnológico” um fenômeno criminológico sem precedentes nessa escala.
A Somália, na situação atual, já perdeu condição de País soberano. No entanto, as nações evoluídas preferem mantê-la nesse estagio e envidar esforços para reprimir ainda mais os atos de desespero da população somali. Com certeza, o butim resultante e a espoliação sem precedentes dos recursos ambientais ainda em curso, resultam mais vantajosos que qualquer apoio de ordem humanitária.
O tráfico internacional de lixo tóxico e tecnológico vale, pelo que se vê, muito mais que vidas de cidadãos somalis prestes a perder sua cidadania.
Tristes tempos.
(*) https://www.ambientelegal.com.br/soberania-afirmativa-sobre-nosso-ambiente/
Fernanda Médici é jornalista e empreendedora social, formada em comunicações pela FAAP, coordenadora de redação do Portal Ambiente Legal
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados, integra o Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional. É Vice-Presidente e Diretor Jurídico da API – Associação Paulista de Imprensa. Editor do Portal Ambiente Legal e do blog The Eagle View.
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A Somália é mais um exemplo de como a ONU, a comunidade européia e os EUA vêm atuando no mundo. A África, como um todo, é depositário simbólico de toda ignomínia praticada por seus colonizadores, persistente e inexoravelmente, ao longo dos séculos. Materializada em lixo tóxico, a hediondez mostra-se objetivamente, de forma indissolúvel à prática que a produz e retroalimenta.Não entendo como os cidadãos europeus e todo o resto do mundo ainda cultivam a ilusão de permanecerem impunes a esse vergonhoso fato.
A frança e a Espanha fazem caça predatória no mar da somália e diminuem a expectativa de vida da população. A Itália deposita lixos tóxicos lá.. e quando as pessoas querem viajar, pra onde eles querem ir?
pra Europa miséra..
A Somália só é o que é hoje graças à Europa. ;-;
Oi, amei a forma como escreves.Realmente, os paises desenvolvidos são estáveis explorando os periféricos.Estou pesquisando sobre smudanças climáticas e segurança Nacional e realmente, a Somalia se insere nesse duro contexto.