Desde a compra até o descarte de dispositivos eletrônicos, consumidores enfrentam desafios relacionados à obsolescência programada e psicológica
Por Priscila Fagundes*
Em cidades como Mumbai e Nova Délhi, as filas começaram ainda de madrugada. Em Dubai, vídeos compartilhados nas redes sociais mostraram cenas de brigas, empurrões e correria. Em Nova York, Londres, Paris e Pequim, formaram-se filas gigantescas. O motivo? O lançamento do novo iPhone. No Brasil, as pré-vendas do tão aguardado dispositivo da Apple começaram há poucos dias, com preços a partir de R$ 7.299.
Enquanto alguns aguardam ansiosamente os tão esperados lançamentos das gigantes da tecnologia, como o iPhone 15 da Apple, somos confrontados diariamente com o problema do descarte inadequado de dispositivos antigos, obsoletos, danificados ou simplesmente esquecidos em gavetas. Esses aparelhos se somam a toneladas de outros resíduos eletrônicos que se acumulam em todo o mundo.
No Brasil, o cenário é preocupante. Segundo pesquisa da ONU, o país gera anualmente mais de dois milhões de toneladas de lixo eletrônico, ocupando o 5° lugar no ranking de maior produtor desses resíduos no mundo, sendo superado apenas por China, EUA, Índia e Japão. Estima-se que atualmente apenas cerca de 3% desse material descartado no Brasil seja reciclado de forma oficial e passível de rastreamento.
Por que descartamos tanto? O impacto das obsolescências programada e psicológica
Em debate na Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara, em agosto, o diretor de relações institucionais do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Igor Rodrigues Britto, destacou que “o consumidor leva, em média, 2 anos e 9 meses para trocar de aparelho de telefone celular”.
A especialista do programa de consumo sustentável do Idec, Julia Dias, em entrevista ao #Colabora, afirmou que essa troca frequente é motivada por diversos fatores, como obsolescência programada; problemas de software; inovação tecnológica; ofertas e promoções. Julia explica que “os consumidores sentem que seus aparelhos celulares mais antigos se tornaram deliberadamente mais lentos ou menos funcionais devido a estratégias de obsolescência programada, sendo forçadas a adquirir um novo dispositivo”. A obsolescência programada – ou planejada -, ao limitar a vida útil de um dispositivo, dificultar ou impossibilitar seu conserto e impedir novas atualizações, estimula o descarte prematuro.
‘Desejo do consumidor’
Os consumidores sofrem ainda um outro tipo de “pressão” para a compra de novos dispositivos eletrônicos. É a obsolescência psicológica, que mexe com o aspecto emocional do consumo e leva muitas pessoas a trocarem seus dispositivos mesmo que eles ainda funcionem perfeitamente. Elas são convencidas por campanhas de marketing, pressão social ou pelo ritmo acelerado de introdução de novos produtos no mercado. Naquele debate na Câmara, por exemplo, o presidente executivo da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee), Humberto Barbato, ao negar a existência de obsolescência programada, ressaltou “o desejo do consumidor de acompanhar as novidades”.
O Idec, segundo Julia Dias, “entende que o desejo das pessoas de ‘acompanhar as novidades’ é muitas vezes influenciado pelas estratégias das empresas para promover a obsolescência psicológica, fazendo com que os consumidores acreditem que precisam adquirir novos produtos, mesmo quando os antigos ainda funcionam”.
Acusações frequentes
“O Idec – diz ainda Julia – vê com grande preocupação os diferentes impactos da obsolescência programada na vida das pessoas consumidoras, entre eles o impacto financeiro”.
Em vários países, surgem com frequência alegações de obsolescência programada direcionadas às gigantes da tecnologia. De um lado, consumidores reclamam de dispositivos que parecem mais lentos e de uma aparente redução deliberada da vida útil de seus aparelhos. Por outro lado, empresas seguem lançando regularmente novas gerações de produtos.
Em 2020, em um caso que ganhou grande repercussão, a Apple concordou em pagar uma multa milionária como parte de um acordo com consumidores norte-americanos que acusaram a empresa de reduzir deliberadamente o desempenho de iPhones mais antigos. Outro caso recente que ganhou bastante destaque foi a denúncia da ONG HOP (sigla em francês para ‘Chega de Obsolescência Programada’) também contra a Apple, por supostas práticas comerciais enganosas e obsolescência programada. O Ministério Público da França abriu uma investigação.
Transparência e ética
No Brasil, ainda não há uma regulamentação específica que aborda a obsolescência programada. Apesar disso, o Idec adota algumas estratégias para combater a cultura do consumo em excesso, como a defesa de “mudanças na legislação para promover produtos mais duráveis, incentivar a disponibilidade de peças de reposição e regulamentar práticas que contribuam para a obsolescência programada, como é o caso da incidência no PL n° 2871, de 2022”; a elaboração de pesquisas, publicações e campanhas de comunicação, inclusive incentivando consumidores a denunciarem práticas abusivas e casos de obsolescência programada e buscando responsabilizar “empresas que adotam práticas prejudiciais aos consumidores e à natureza, chamando a atenção pública para essas questões”.
O PL 2871/2022, de autoria do senador Rogério Carvalho (PT/SE), prevê prazo de 3 anos de garantia quando houver defeitos ocultos, vindos de fábrica, mas que aparecem somente após o prazo de garantia dado pelo fabricante.
Julia Dias ressalta que “o Idec acredita que os consumidores têm o direito de tomar decisões informadas e conscientes sobre suas compras, e que a promoção da obsolescência psicológica é prejudicial a essa liberdade de escolha. Portanto, a organização se esforça para garantir que as empresas sejam transparentes e éticas em suas práticas de marketing e que os consumidores sejam empoderados para fazer escolhas que sejam benéficas para eles e para a sociedade como um todo”.
Direitos do consumidor
Além de acesso à garantia legal prevista pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), o Idec chama atenção para que os consumidores também tenham acesso a informações claras e precisas sobre a vida útil esperada de um produto, suas atualizações e suporte técnico.
“O CDC prevê proteção para os consumidores em casos de práticas abusivas, como a obsolescência programada. Com base no CDC, os consumidores podem buscar amparo legal caso se sintam lesados”, afirmou ainda Julia Dias.
A solução para o descarte desenfreado e inadequado de dispositivos eletrônicos vai muito além de mudanças de hábitos e da conscientização da população. É necessário um esforço conjunto envolvendo também instituições públicas e privadas.
Henrique Mendes, coordenador de relações institucionais da GM&C, empresa brasileira de logística reversa e reciclagem de produtos eletrônicos, destaca a importância da logística reversa, “um sistema que busca viabilizar o descarte correto dos equipamentos usados, sejam estes quebrados, defeituosos ou obsoletos”.
A ideia é que, ao invés de serem enviados a aterros sanitários, esses dispositivos sejam encaminhados para empresas especializadas, que, por sua vez, devem direcionar os resíduos para a reciclagem, transformando-os em matéria-prima novamente.
Comunicação e educação ambiental
Em fevereiro de 2020, foi assinado o Decreto 10.240, que regulamenta a implementação da logística reversa de eletroeletrônicos no Brasil.
A meta prevista no decreto para 2021 era reciclar 1%, em peso, dos produtos comercializados no mercado doméstico em 2018, definido como ano base. Para 2022, a meta era de 3%, e subiu para 6% neste ano. Para 2024, a meta é de 12%, e de 17% em 2025.
No entanto, como há pouca fiscalização em relação a estas metas, Mendes destaca que é difícil afirmar qual o real percentual de resíduos dos eletroeletrônicos que estão sendo reciclados atualmente no país.
Henrique Mendes destaca a importância da colaboração de fabricantes, importadores, comerciantes e distribuidores na criação de locais de coleta, com o intuito de incentivar o descarte adequado por parte da população. Ele também enfatiza a necessidade de investir em comunicação e educação ambiental para garantir que as pessoas saibam que têm essa opção disponível quando precisarem descartar equipamentos eletrônicos antigos.
“O governo também precisa fazer sua parte, investindo também em educação ambiental e fiscalizando a implementação da logística reversa no país, para que todas as empresas façam parte do sistema, e não apenas um pequeno grupo de empresas mais responsáveis e pioneiras, que são as que estão pagando a conta sozinhas hoje no Brasil”.
Recursos valiosos: ‘mineração urbana’
A maior parte dos componentes encontrados nos dispositivos eletrônicos descartados pode ser reciclada e transformada em matéria-prima. A reciclagem possibilita a recuperação de metais estratégicos para a indústria.
Se por um lado o setor de mineração tradicional causa um impacto ambiental significativo, há, por outro, o potencial positivo da chamada mineração urbana, que tem por finalidade a reciclagem de resíduos por meio da logística reversa.
“Por meio da mineração urbana, conseguimos recuperar os mesmos metais, com a mesma qualidade, porém, com um impacto ambiental significativamente menor. Por exemplo, o consumo de energia é significativamente menor, o que reduz consequentemente as emissões de gases de efeito estufa na atmosfera. Além disso, a mineração urbana não demanda a remoção de enormes quantidades de solo para extração do minério bruto, auxiliando assim na regeneração do meio ambiente”, diz Mendes.
‘Não existe mágica’
O descarte inadequado de resíduos eletroeletrônicos representa um problema de grandes proporções. De acordo com uma pesquisa da ONU para o Desenvolvimento Industrial, apenas 3% do lixo eletrônico na América Latina é descartado de forma correta. No Brasil, que é o maior produtor de lixo eletrônico na América Latina, a implementação e o avanço da logística reversa de eletroeletrônicos enfrentam desafios significativos. Mendes aponta como principais obstáculos a falta de conhecimento em relação à complexidade da cadeia de reciclagem dos eletroeletrônicos e o elevado índice de informalidade do setor.
Cada produto descartado é composto por dezenas de componentes diferentes, que precisam ser separados e tratados, em contraste, por exemplo, com uma embalagem de papelão, que consiste em um único material. Após o desmonte dos aparelhos e a separação dos componentes, em um processo conhecido como “manufatura reversa”, os resíduos devem ser encaminhados para empresas especializadas na reciclagem de materiais específicos correspondentes a cada tipo de resíduo.
A falta de controle sobre o destino real dos resíduos resulta em diversos riscos e inseguranças, conforme destacado por Mendes. Isso inclui a contaminação do meio ambiente por descarte irregular; a contaminação de pessoas que operam em atividades informais; a ocorrência de fraudes no registro das metas de reciclagem estabelecidas no decreto 10.240/2020; uma baixa eficácia na recuperação de recursos; o estímulo a atividades criminosas, como receptação de fios e cabos de cobre; e até mesmo o risco de vazamento de dados sigilosos, incluindo documentos, senhas e dados bancários.
Os danos ao meio ambiente e à saúde humana decorrentes do descarte inadequado de lixo eletrônico são uma realidade preocupante. Alguns dispositivos eletrônicos contêm substâncias tóxicas como mercúrio, chumbo e cádmio, que podem se infiltrar no solo e na água, além de outras substâncias que podem ser causadoras até de efeito estufa, como o gás de refrigeração.
“A logística reversa – diz Mendes – precisa ser compreendida como um serviço ambiental e que, portanto, tem custo. A maioria absoluta dos resíduos que são descartados na logística reversa não possuem valor da forma como estão, pelo contrário, representam riscos. Tanto ao meio ambiente quanto à saúde humana nos casos em que são manuseados de modo inadequado. Não existe mágica! Para que a logística reversa aconteça de modo real, rastreável e seguro, será necessário um grande investimento e, por isso, deveria também haver incentivos por parte do governo para que haja um equilíbrio nesta conta”.
Construção de uma ‘economia mais circular’
“Temos visto uma mudança grande de posicionamento de alguns líderes de mercado, na direção de promover uma economia mais circular, estimulando o prolongamento da vida útil de seus produtos, inclusive criando novos modelos de negócio nesta linha. Com isso, comunicação, educação, conscientização e novos modelos de negócios, caminharíamos também para a redução na geração de rejeitos no longo prazo”, afirma ainda Henrique Mendes.
O coordenador pedagógico do Movimento Circular, professor Edson Grandisoli, mestre em Ecologia, Doutor em Educação e Sustentabilidade pela Universidade de São Paulo (USP) e Pós-Doutor pelo Programa Cidades Globais (IEA-USP), ressalta que o consumidor tem papel central nos processos que envolvem a construção de uma economia mais circular.
O consumidor – diz Grandisoli – “tem a capacidade de privilegiar ou não, do ponto de vista de mercado, determinados produtos e marcas. Mas para isso, é preciso transparência nas informações por parte de toda a cadeia de produção. Só assim, é possível fazer escolhas mais acertadas do ponto de vista da circularidade. Os eletrônicos não são exceção a essa regra. Pesquisar e consumir produtos que tenham sido pensados para a reciclagem é um passo fundamental e que colabora com toda uma cadeia de pessoas e instituições que se dedicam à coleta e reciclagem desses produtos. Ponto fundamental desse processo é também destinar corretamente seus eletrônicos, para que tenham destino adequado, e tenham seus componentes reaproveitados ou reciclados. Tirar aquele celular que está na gaveta há vários anos é um movimento importante para colaborar com a circularidade dos processos”.
Consumidor: ‘ator-chave na mudança’
Para Grandisoli, o consumidor tem um papel como ator-chave na mudança: “Optar por produtos reconhecidamente mais duráveis pode ainda ser uma realidade para poucos, mas é um movimento importante na direção da circularidade da economia, e que pode levar a garantir o acesso a esses produtos para um público cada vez maior”.
O coordenador pedagógico do Movimento Circular destaca ainda que fabricar eletrônicos mais duráveis e com alta possibilidade de reciclagem colabora diretamente com o meio ambiente, explorando menos recursos e gerando menos resíduos e poluição: “a transição da linearidade para a circularidade cria uma nova rede de oportunidades para diferentes atores sociais, colaborando para o desenvolvimento econômico e humano”.
Grandisoli ressalta que “muito vem sendo discutido no âmbito das políticas públicas, inclusive, bem antes do lançamento da Política Nacional de Resíduos Sólidos em 2010. Vale destacar, por exemplo, a Lei da Reciclagem 14.260, de 8 de dezembro de 2021, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, que estabelece incentivos à indústria da reciclagem, cria o Fundo de Apoio para ações voltadas à reciclagem (Favorecicle) e Fundos de Investimentos para projetos de reciclagem (ProRecicle). Essas são ações públicas importantes para promover a Economia Circular no Brasil”.
Porém, segundo ele, “há muito ainda a ser feito no que diz respeito a políticas públicas. Acelerar esses processos nas diferentes esferas é imperativo, dado o aumento rápido da quantidade de resíduos produzidos a cada ano. Nesse processo de normativas, a participação das empresas, ONGs, sociedade civil e governos é fundamental”.
Responsabilidade Estendida do Produtor
O Idec defende a implementação de regras que responsabilizem as empresas pelo descarte adequado dos produtos eletrônicos que comercializam. Isso inclui a adoção da Responsabilidade Estendida do Produtor (REP), um conceito que torna as empresas responsáveis pelo ciclo de vida completo de seus produtos, abrangendo a gestão de resíduos de forma ambientalmente segura.
Além disso, o Idec propõe medidas como o design para sustentabilidade; programas de recolhimento e reciclagem; transparência e informação em relação à gestão de resíduos eletrônicos; a educação do consumidor sobre programas de recolhimento de resíduos, doação ou reutilização de produtos em bom estado; e a possibilidade de devolução de produtos obsoletos aos fabricantes.
Responsabilidade urgente
Em um país onde 464 milhões de dispositivos digitais (computador, notebook, tablet e smartphone) estão em uso, o compromisso com o descarte regular e a reciclagem desses materiais é mais do que urgente.
Com mais de dois dispositivos digitais por habitante, segundo pesquisa anual do FGVcia, é imperativo abraçar a responsabilidade de cuidar do nosso ambiente, garantindo que no Brasil todo o lixo eletrônico seja descartado corretamente e reciclado para se tornar matéria-prima valiosa. Tais práticas visam não apenas a sustentabilidade, mas uma importante contribuição para um futuro mais limpo e verdadeiramente avançado.
*Priscila Fagundes – Jornalista formada em 2005 pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); com domínio adicional em Empreendedorismo (PUC-Rio), formação em Jornalismo Digital pelo Cenjor, em Lisboa (Portugal), e MBA em Marketing Digital pela Estácio. 12 anos de experiência em jornalismo online e há 6 anos especialista em marketing digital.
Fonte: Projeto Colabora
Publicação Ambiente Legal, 08/07/2024
Edição: Ana Alves Alencar
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