Lixo cibernético e outros lixos, logística reversa e acordos setoriais – saídas para o impasse
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
O FENÔMENO DA CIBERNÉTICA
Dentre os impactos ambientais causados pela cibernética, o descarte dos dispositivos eletrônicos constitui enorme desafio.
Cibernética é a essência do nosso moderno ecossistema. Integra toda a compreensão da comunicação entre seres humanos e mesmo destes com outros seres vivos – do armazenamento de informações à sua transmissão, em completa simbiose com as máquinas.
Em 2008, o número de equipamentos interconectados na rede mundial (internet), superou o número de habitantes no planeta. A previsão é que, em 2020, cinquenta (50) bilhões de dispositivos estarão interconectados.
Na década de 90 falávamos em networks – redes de relacionamento privadas, impulsionadas pela vontade humana. Hoje, a dimensão das redes sociais reflete uma capacidade de interconexão em escala mundial – cada uma delas integrada por milhões de usuários e suportada por outros milhões de máquinas de rastreamento, identificação, seleção e pesquisa.
Dispositivos de recepção e transmissão de dados, fixos ou móveis, totalmente interconectados, não mais dependem da “vontade humana” para procurar, identificar, destacar, apresentar e otimizar o diálogo entre pessoas. Dispositivos conversam com dispositivos e interconectam-se automaticamente.
O IMPACTO AMBIENTAL DOS RESÍDUOS CIBERNÉTICOS
A intensidade do fenômeno se traduz na cada vez mais precoce obsolescência dos dispositivos. Modelos recém produzidos tornam-se obsoletos em questão de meses.
A competitividade no setor econômico, por outro lado, provoca no mercado o despejo em larga escala de dispositivos com ciclo de vida útil cada vez menor, resultando numa monstruosa quantidade de resíduos compostos de material inerte, circuitos tecnologicamente ultrapassados, componentes complexos, eletro-condutores, pilhas, baterias, metais pesados, aditivos tóxicos, etc.
Os resíduos sólidos gerados desabam sobre um sistema público de coleta e destinação tradicional, de forma alguma preparado para atender a esse novo desafio. O fato desafia a capacidade dos governos coletarem e disporem tamanho volume a partir da coleta domiciliar. Estamos todos diante de uma externalidade que não pode mais ser “socializada” ou ter seu destino atribuído à Administração Pública exclusivamente, como se fosse um resíduo doméstico qualquer.
Montanhas de resíduos passaram a ser, mundo afora, empilhados em depósitos ou a céu aberto, abandonados em desertos ou distribuídos “filantropicamente” para comunidades e países carentes…
Essa distorção resultou no escoamento de lixo tóxico para países miseráveis da África e Ásia, no contrabando para “reciclagem” em condições desumanas na América Latina, disposição clandestina em águas profundas e em mares territoriais de países em conflito ou desprovidos de defesa de sua soberania, com incomensuráveis danos à saúde.
O descarte difuso, sem ônus para os geradores, onera cidadãos e governos e fere o Princípio do Poluidor-Pagador, estatuído pela ONU na Conferência do Rio, de 1992, o qual recomenda a internalização dos custos ambientais pelo gerador primário da contaminação – a atividade produtiva.
Todos os países têm se debruçado sobre a questão, firmando marcos legais significativos, com mudanças econômicas e culturais importantes, em especial na Europa.
A POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS
O Brasil deu um passo importantíssimo ao editar a Lei Federal 12.305/2010 – Política Nacional dos Resíduos Sólidos, na qual estatuiu o princípio da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos, definida no marco legal como o
“Conjunto de atribuições individualizadas e encadeadas dos fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, dos consumidores e dos titulares dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos, para minimizar o volume de resíduos sólidos e rejeitos gerados, bem como para reduzir os impactos causados à saúde humana e à qualidade ambiental decorrentes do ciclo de vida dos produtos, nos termos desta Lei”.
Fiel ao Princípio do Poluidor-Pagador, o marco legal brasileiro conceitua e determina a internalização dos custos ambientais para com a geração dos resíduos, instituindo a Logística Reversa dentre as principais ferramentas da Política Nacional de Resíduos Sólidos. A Lei define logística reversa como
“Instrumento de desenvolvimento econômico e social caracterizado por um conjunto de ações, procedimentos e meios destinados a viabilizar a coleta e a restituição dos resíduos sólidos ao setor empresarial, para reaproveitamento, em seu ciclo ou em outros ciclos produtivos, ou outra destinação final ambientalmente adequada”.
Para consolidar essa cadeia logística reversa, o marco legal estabeleceu como ferramenta de composição público-privada para repartição de atribuições na gestão dos resíduos, uma convenção coletiva de natureza pública denominada acordo setorial, definido como
“Ato de natureza contratual firmado entre o poder público e fabricantes, importadores, distribuidores ou comerciantes, tendo em vista a implantação da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida do produto”.
Embora o Brasil tenha se inspirado claramente na estrutura europeia de gestão dos resíduos sólidos, governo brasileiro e gestores privados ainda não absorveram com inteireza essa Convenção Coletiva envolvendo Administração Pública e iniciativa privada.
O ACORDO SETORIAL DO SEGMENTO ELETRO-ELETRÔNICO
A dimensão da articulação necessária para um acordo setorial digno desse nome, no caso do lixo cibernético, está sendo perigosamente ignorada. De fato, não há um comprometimento do sistema federativo com o esforço de reversão logística do fluxo de materiais.
Não há, também, compreensão da importância de se adotar uma entidade gestora dedicada à administração do fluxo de materiais – essencial para firmar política de preços e contrapartidas que estabilizem o mercado da reciclagem e formem um processo compartilhado de fiscalização do acordo.
Ao par desse grave vício, há outro mais imediato e preocupante: a adoção de metas puramente cosméticas, de eficácia duvidosa para a efetividade da Política Nacional de Resíduos Sólidos.
De acordo com o edital de chamamento para Propostas de Acordo Setorial para Implantação do Sistema de Logística Reversa de Resíduos de Equipamentos Eletroeletrônicos no Brasil, lançado no início de 2013 pelo Ministério do Meio Ambiente, os fabricantes nacionais seriam responsáveis, nos primeiros cinco anos do projeto, pela reciclagem de 17% do volume comercializado por eles, praticamente não envolvendo empresas no processo de tratamento dos produtos considerados órfãos.
O edital já incorre em equívoco grave, ao não esclarecer esse ponto, sendo a omissão introduzida na minuta de acordo setorial entregue ás autoridades ambientais.
Com efeito, os produtos importados sem controle específico ou de empresas fabricantes que não tem representação no país, e que os assuma como seus – chamados de “órfãos” – na verdade, não o são para efeito da Lei.
As empresas brasileiras são responsáveis pela reciclagem dos resíduos órfãos, pois a obrigação é SETORIAL. O setor não abrange apenas fabricantes mas toda a cadeia comercial de importadores, distribuidores e varejistas. A responsabilização pela recuperação desses itens há de considerar a afinidade dos produtos nacionais com os produzidos por empresas estrangeiras sem sede no Brasil.
A chamada linha verde (celulares, impressoras, notebooks, etc.), coração da cibernética, é a mais afetada pelo fenômeno da alegada “orfandade”, devido à escala de entrada desses itens no mercado informal brasileiro. Os dados retirados do Relatório elaborado pela Global Intelligence Alliance (GIA), apontam uma penetração de 2% desses produtos no segmento de impressoras, 20% em celular, 25% em notebook e 33% em desktop.
Ocorre, entretanto, que as peças importadas ou pirateadas deixam de ser órfãs a partir do momento que entram no varejo nacional, ainda que irregularmente, pois, após ser consumido, o produto já não é indigente: passou por uma cadeia de consumo e precisa ser absorvido pelo setor.
A própria economia afeta à logística reversa dos resíduos cibernéticos forma a razão de ser do compartilhamento ativo de responsabilidades. O material recolhido após descarte pelo usuário irá movimentar um novo ciclo industrial formado por coletores e segregadores (públicos ou privados), reprocessadores (incluindo o desmonte, reutilização de componentes e remanufatura), reciclagem de material não perigoso, reciclagem de material perigoso (lotado de componentes nobres) e o descarte de rejeitos em aterros.
Posto isso, patente que o resgate de material a partir de PEVs (pontos de entrega voluntária), é atividade cosmética frente ao enorme volume de resíduos hoje descartados de forma difusa pelos consumidores e recolhidos pela coleta municipal, ou mesmo os adquiridos como sucata por catadores informais sem qualquer certeza de sua correta destinação.
É fato, também, que a coleta domiciliar, ainda que ocorra processamento eventual dos resíduos na boca do aterro sanitário, não constitui alternativa válida para a destinação final do lixo tecnológico pós consumo.
Na verdade, há uma enorme perda de receita e ineficiência crônica no acordo setorial que se pretende implantar, justamente por não se incluir, na cadeia logística, a coleta municipal dos resíduos domésticos. Na verdade, as concessionárias dos serviços de coleta e destinação final dos resíduos urbanos, deveriam segregar o material eletro-eletrônico que recolhem no lixo doméstico e… notificar o setor responsável pela logística reversa do material a, pagar uma taxa e recolher o material segregado na boca dos eco-parques ou aterros – isso sim, conferiria eficácia ao sistema e conferiria escala ao processo – gerando economias de toda ordem.
Não é à toa que todo o setor, hoje, enfrenta violenta concorrência chinesa e coreana, sem se dar conta que os maiores reprocessadores industriais de material eletrônico descartado, em todo o mundo, são justamente esses países da Ásia. Isso porque eles já compreenderam a razão econômica ainda não vislumbrada no Brasil.
UMA AGENDA PARA SAIR DA CRISE (VÁLIDA PARA TODA A PNRS)
Para compreender toda essa economia portanto, as seguintes providências deveriam ser adotadas, implicando no adiamento de prazos e retomada de negociações em um patamar mais sério. Vejamos:
1-
O processo de gestão compartilhada firmado num acordo setorial não pode prescindir de entidade gestora dos resíduos, com autonomia para lidar com o fluxo dos materiais, articulando-se inclusive os serviços públicos organizados.
2-
Deve ser instituído um ambiente de regulação setorial próprio na gestão pública dos resíduos, em consonância com a Política Nacional de Saneamento, por meio de agência que regule o regime de concessões, contratações, regionalização do destino final e articulação de tecnologias.
3-
Um regime tributário eficaz há de desonerar a indústria de reciclagem e remanufatura, incentivar a produção de peças recambiáveis e estabelecer renúncia fiscal sobre produtos produzidos com o material reciclado. Isso irá disciplinar a política de preços, obrigar à declaração efetiva dos fluxos de materiais e orientar o mercado.
4-
Urge que se implemente ação efetiva do Sistema Nacional do Meio Ambiente, vinculando licenciamento e fiscalização ambiental aos Planos de Resíduos e Planos de Gerenciamento Integrado, de forma a dispor no território nacional uma rede de clusters, integrando processos regionalizados de gestão pública aos objetivos dispostos nos acordos setoriais. Esse sistema irá articular tecnologias, monitorar o fluxo de materiais e a disposição de rejeitos. O uso do instrumento de Avaliação de Impactos Ambientais, dos Planos de Bacia, dos Planos de Saneamento, deverá contribuir para tirar a Lei de Política Nacional de Resíduos do rol das boas intenções em que hoje se encontra, com referência aos acordos setoriais.
5-
É preciso incluir, na cadeia logística, a coleta municipal dos resíduos domésticos, de forma a que concessionárias dos serviços de coleta e destinação final dos resíduos urbanos, segreguem o material eletro-eletrônico que recolhem no lixo doméstico e notifiquem a entidade gestora a pagar taxa e recolher o material segregado na boca dos eco-parques ou aterros.
6-
Por fim, É IMPERATIVO implementar fiscalização governamental sobre o descarte clandestino de resíduos, monitorar, reprimir e impor ajustamento de conduta de processos industriais insustentáveis. No mesmo diapasão, deve a polícia e o Poder Judiciário, combater fraudes hoje recorrentes na disposição final dos resíduos.
CONCLUSÃO
Somente a rigorosa fiscalização pelas agências ambientais, com estamentos policiais e administrativos integrados e rigidamente controlados, fiscalizados externamente pelo Ministério Público, fará com que esse fantástico mercado seja atrativo para investimentos privados e se torne uma verdadeira economia.
É preciso que o mercado de resíduos deixe de conviver perigosamente com a clandestinidade e o crime – pois hoje, o que há de mais limpo nesse setor (com raras exceções), infelizmente, é o lixo…
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado, sócio-diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Consultor ambiental, é integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Grupo Técnico de Sustentabilidade e Gestão de Resíduos Sólidos da CNC e membro das Comissões de Direito Ambiental do IAB e de Infraestrutura da OAB/SP. Ex-Presidente e Membro Emérito da Comissão de Meio Ambiente da OAB/SP, integra a Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da OAB. Jornalista, é Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal, editor responsável pela Revista Eletrônica DAZIBAO e autor do Blog The Eagle View.
obs.: publicado originalmente no Blog “The Eagle View” ( Lixo Cibernético, Logística Reversa e Acordos Setoriais)
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