Por Maurício Waldman
Era um dia de sol forte em meio a um dos lixões do oeste paulista, quando pontuei a um aluno, que tal como eu, é apaixonado por lixo: “Você já percebeu que não existe revista pornográfica no lixo?”. “Sim, de fato”, concordou imediatamente. “Mas nunca tinha dado conta disso antes”.
De certo modo, nem eu. Para mim, este fato somente se tornou claro com a leitura do livro “Lixo: A Arqueologia dos Refugos”, obra magistral do antropólogo William Rathje que, acessível apenas na língua de Shakeaspeare, é solenemente ignorada no Brasil.
Confira-se: a observação de Rathje contesta um paradigma plenamente falso que, a despeito de inverídico, é assiduamente repetido pela mídia, por acadêmicos e, inclusive, por especialistas em resíduos. Trata-se da máxima pela qual o lixo seria “um reflexo da sociedade”.
Tecnicamente, definir lixo como reflexo da sociedade reclama reparos. Note-se que reflexo implica na correspondência entre o que uma superfície reflete e o que está colocado diante dela. Assim sendo, a despeito de pequenas distorções, prevalecem as afinidades entre o mundo físico e os efeitos gerados numa superfície espelhada.
Mas, não é bem este o caso do lixo. Imaginemos alguém de cabelos pretos, dentes perfeitos, bem trajado e magro. Supondo que esta pessoa seja o lixo, o reflexo, embora reconhecível, exibiria mechas de cabelo branco, brechas no sorriso, roupa em desalinho e quilos a mais.
Na realidade, o lixo é mais misterioso do que se pensa.
Não se restringe a algo rejeitado ou descartado. Na história das sociedades, bens e objetos são desovados mediante codificação cultural, que define aquilo que pode ser jogado fora ou não. Portanto, as noções que conectam diretamente consumo e descarte não necessariamente encontram expressão nos monturos e lixeiras.
As citadas revistas constituem bom exemplo disso.
Para começo de conversa, usufruem insuspeita durabilidade.
São consultadas ocultamente durante anos e anos. Escondidas em sótãos, muitas acabam escandalosamente descobertas somente quando o proprietário morre. Mas, se a viúva, num acesso de fúria, as atira na lata de lixo, uma coisa é certa: sempre haverá quem as resgate do anonimato.
William Rathje indica outras pistas para explicar a ausência das revistas nos lixões. Muitos colecionadores diante do perigo iminente de serem descobertos, carbonizam as revistas em latões quando a família está ausente.
Ou então, fazem doações para borracharias, barbearias e postos de gasolina. Podem ter certeza: o acervo sempre é bem recebido.
Outra tática é atirá-las em caçambas de entulho, invariavelmente bem longe de casa, operação levada a cabo na surdina da noite. Carros estacionam e rapidamente a carga incriminadora é lançada no container.
Mas novamente as deusas do sexo acabam redimidas pela mão salvadora de um sem-teto, de um aficionado por musas ou então, por um adolescente que deste modo termina bem seu dia. E quem disse que na hipótese de sobreviverem e alcançarem um lixão não existirá outra alma caridosa a acolhê-las?
Como informa Rathje, tais publicações demonstram notável perdurabilidade. Só desaparecem quando as páginas, de tanto serem vistas e visitadas, destacam-se dos grampos, gastas por manipulação implacável. Isto é: são decompostas por desejos que, socialmente estigmatizados, teimam em operar na clandestinidade.
Seria possível então, complementar Rathje com Sigmund Freud. O pai da psicanálise entendia que a negação de algo ou alguém sempre acata duas estratégias. Uma é a desqualificação. A outra, a omissão da sua existência. Logo, Freud confirma Rathje: nem tudo neste mundo é brindado com a opção de se tornar lixo.
*Artigo publicado no Jornal “O Imparcial” (Presidente Prudente)
Maurício Waldman é antropólogo, jornalista e chefiou a coleta seletiva de lixo da capital. Pós-doutor em Relações Internacionais (USP, 2013) e Geociências (Unicamp, 2010), desenvolve o terceiro pós-doutorado na Unoeste (Universidade do Oeste Paulista). Autor de 16 livros, dentre os quais “Lixo: Cenário e Desafios” (Cortez Editora, 2010), obra finalista do Prêmio Jabuti de 2011. Contato: mw@mw.pro.br .