Médico de família judaica em plena Segunda Guerra, o cirurgião teve seu primeiro contato com a paraplegia aos 18 anos
Por Eduardo Colli
Ludwig Guttmann nasceu em Tost, na Alemanha, no dia 3 de julho de 1899. Aos 3 anos de idade se mudou com a família para Konigshutte, uma região de mineração de carvão. Em 1917, aos 18 anos, trabalhando como voluntário no hospital de mineiros, aconteceu seu primeiro encontro com a paraplegia: um jovem carvoeiro com fratura na espinha tinha perdido toda a sensibilidade.
Após ajudar no atendimento, Guttmann ouviu de um médico: “Não se preocupe, ele estará morto em pouco tempo”. Após cinco semanas, com um quadro de septicemia generalizada, provocada por infecção urinária e outras doenças, o mineiro morreu.
Guttmann se lembraria desse paciente pelo resto da vida. Ele estudou medicina, inicialmente na Faculdade de Breslau e depois na Universidade de Friburgo, onde se tornou ativo membro da fraternidade judaica para informar e sensibilizar contra o antissemitismo nas universidades alemãs.
Autoconfiante, afirmava: “Ninguém precisa ter vergonha de ser judeu”. Formado, foi trabalhar no departamento neurológico no hospital em Breslau, na Baixa Silésia, atual Polônia. Cresceu profissionalmente e foi neurocirurgião no Hospital Universitário de Hamburgo por um ano, até se tornar assistente do então famoso doutor Foester e publicar seu primeiro artigo acadêmico. Em 1933, com a proibição a médicos judeus de trabalhar em hospitais públicos, voltou a Breslau, onde imediatamente assumiu os departamentos neurológico e neurocirúrgico do hospital judaico.
Com a ascensão de Hitler ao poder, a posição dos alemães com origem judaica ficou cada vez mais difícil. Acreditando que o nazismo não iria durar muito tempo, ele não aceitou os convites para trabalhar no exterior. Tornou-se presidente da Comunidade Médica Judaica e se expôs ao perigo, ajudando refugiados e pacientes.
Em 9 de novembro de 1938, na chamada Noite dos Cristais, quando judeus foram atacados na Alemanha e na Áustria, Guttmann internou 64 pessoas com a intenção de salvá-las. Ao ser interrogado pela Gestapo sobre essas internações repentinas, alegou que eram casos de urgência. Ele salvou todos, mas três foram enviados para campos de concentração. Percebeu, então, que deveria deixar a Alemanha.
Após tentar se fixar sem êxito em Lisboa, por meio de um amigo do então ditador português António Salazar, foi com a família para a Grã-Bretanha. Era março de 1939. Patrocinado pelo doutor Hugh Cairns, um dos principais neurocirurgiões desse período, e ajudado pelo Conselho para Assistência de Acadêmicos Refugiados, Guttmann começou uma pesquisa em Oxford.
Nessa época, os paraplégicos eram engessados e confinados em leitos onde viviam como aleijados inúteis, sem esperança e indesejados, condenados pelo resto da vida às instituições para doentes incuráveis e sem incentivo para voltarem a ter uma vida produtiva. A taxa de mortalidade por paraplegia traumática nos Exércitos britânico e americano durante a Primeira Guerra Mundial atingiu 80% dos casos. Isso o perturbava.
Inspirado no tratamento de lesões da coluna vertebral que um tal doutor Munro introduziu nos Estados Unidos na década de 1930, onde os pacientes eram virados de posição a cada duas horas para prevenir as escaras, em dezembro de 1941, Guttmann apresentou um estudo com pacientes que sofriam de lesões na medula espinhal: como deveriam ser tratados e reabilitados.
Prevendo que o número de paraplégicos iria aumentar com o ataque do Dia D, ocorrido em 1943, o Conselho de Pesquisa Médica da Inglaterra decidiu criar um centro especial para pacientes com lesões na medula espinhal. E o governo britânico nomeou o doutor Guttmann como diretor-geral do primeiro Centro de Reabilitação para Pacientes com Lesões na Medula Espinhal, no Hospital de Stoke Mandeville, em Aylesbury.
Ele aceitou sob a condição de total independência para aplicar o seu método de tratamento. O Centro começou a funcionar em fevereiro de 1944 com 26 leitos. O objetivo de Guttmann era a reintegração dos pacientes na sociedade, como membros respeitáveis e úteis. Nos dois primeiros anos de atividade escutou repetidamente a mesma pergunta de quase todos os visitantes: “Realmente vale a pena?”
A demonstração de como seria difícil superar as percepções e os preconceitos seculares não o desmoronou. Uma frase de um dos primeiros pacientes sintetizava a atitude derrotista da sociedade e a força deles e do doutor: “Uma das tarefas mais difíceis para um paraplégico é animar seus visitantes!”
Embora não pensasse em si mesmo como psicólogo, em toda a estrutura do programa de reabilitação, Guttmann demonstrou profunda compreensão dos fatores psicológicos dos pacientes com lesão de medula. Esse foi seu triunfo: conhecendo o valor terapêutico, recreativo e psicológico, ele revolucionou ao introduzir no tratamento dos paraplégicos as atividades físicas para o fortalecimento muscular e a prática esportiva.
Solicitava que as equipes de enfermagem interagissem com os pacientes, relatando fatos cotidianos para que eles criassem uma conexão com o ambiente fora do hospital. E, mais impressionante, colocou pacientes e enfermeiros sentados em cadeiras de rodas para competirem. Era a semente do que viria depois.
Logo a prática desportiva foi incorporada ao programa de reabilitação e se transformou em atividades para homens, mulheres e crianças no hospital. Iniciativa depois expandida para toda a Grã-Bretanha. Seus pacientes praticavam várias modalidades, do basquete em cadeiras de rodas a corridas com próteses. Em 1944, ao ver cadeirantes e pacientes com bengalas correndo atrás de um disco que deslizava sobre o piso, Guttmann entrou no jogo, e assim nasceu um novo esporte: o polo em cadeira de rodas.
Ele revolucionou sua área ao conseguir reabilitar e reintegrar os pacientes como indivíduos dignos e produtivos, superando as limitações. Em 28 de julho de 1948, um dia antes dia da abertura dos segundos Jogos Olímpicos de Londres, os primeiros após o recesso de 12 anos gerado pela Segunda Guerra Mundial, foram realizados os primeiros Jogos de Stoke Mandeville: 14 homens e duas mulheres que serviram o Exército britânico no campo de batalha disputaram provas com arco na grama do hospital. A data não foi escolhida por acaso, Guttmann queria que seus Jogos fossem divulgados.
Em 1952, com a participação de uma equipe holandesa de veteranos de guerra paraplégicos, os Jogos se tornaram internacionais. Só quatro anos do primeiro intento haviam se passado, e oito da inauguração do Centro.
Com apoio do Comitê Olímpico Internacional ficou estabelecido que os Jogos Internacionais de Stoke Mandeville seriam realizados no país-sede das Olimpíadas. A primeira edição dos Jogos Paralímpicos aconteceu, com 400 paratletas de 23 países, em Roma, Itália, em 1960.
Após o encerramento, ao discursar no Vaticano para uma plateia com centenas de paratletas em cadeiras de rodas, o papa João 23 afirmou: “Doutor Guttmann, você é o Pierre de Coubertin dos paralisados”. Em 1961, Guttmann se tornou o primeiro presidente da Sociedade Médica Internacional de Paraplegia e também o primeiro editor da revista da Sociedade.
Aposentou-se em 1966, mas seu legado é maior que os Jogos Paralímpicos e talvez superior ao de Coubertin. Ele revolucionou o tratamento das lesões na medula e se tornou símbolo do resgate da esperança para muitas pessoas.
Quando foi acusado de não admitir que seus pacientes eram inválidos, que não teriam uma vida normal, um colega lhe perguntou: “Quem eles pensam que são?” Fitando-o, Guttmann respondeu: “Os melhores dentre os homens”. Ludwig Guttmann faleceu em 8 de março de 1980 em Aylesbury, na Grã-Bretanha. Com o título The Best of Men (O Melhor dos Homens), sua vida foi retratada em um documentário da BBC, de Londres.
Fonte: Aventuras na Historia
Publicação Ambiente Legal, 02/08/2021
Edição: Ana A. Alencar
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