Por Marco Aurélio Arrais*
Seu nome era Matildes Duarte Ferreira. Mas para nós, todos os netos da Vó Julieta, era Mãe Nega. Mãe, é verdade. Mãe que ajudou a criar alguns de nós a começar comigo, o neto mais velho. Desde meu nascimento prematuro, em 1948, aos oito meses da gravidez de minha mãe Floricena, até sua morte em 1991, de câncer na garganta. Mãe Nega foi minha segunda mãe.
Nasceu em Orizona (GO), antiga Campo Formoso, em 1929. Seus pais chamavam-se Benedito e Tarcila.
Benedito Peão, como era chamado, era o melhor amansador de burro da região, muito requisitado pelos fazendeiros. Também era um profissional muito considerado na manufatura de cabresto, laço, chicote ou qualquer outro apetrecho que exigisse conhecimento no trançamento de couro cru ou crina de cavalo. Com perícia, cortava o couto em tiras finas, usando um ferro bem amolado, e depois de amaciá-las com sebo, trançava-as com cuidado. Lembro-me de um cabresto que foi do meu avô Antenor, feito de crina de rabo de cavalo, que era uma coisa linda. Os fios nas cores branca e preta, trançados com arte, era um trabalho lindo.
Sua mãe Tarcila era uma mulher cheia de corpo, sem ser gorda, com uma voz grossa e rouca. Tinha o costume de mascar fumo, sempre tendo no canto da boca um tolete de fumo enrolado em papel celofane. De vez em quando, sem tirar aquilo da boca dava uma cusparada amarela e grossa. No pescoço tinha um papo do tamanho de uma laranja, que era objeto de minha curiosidade, mas não tinha coragem de perguntar o que ela havia engolido e ficara entalado. Desde quando minha avó morava em Orizona, prestava serviço na sua casa como lavadeira. Me lembro de se tratarem por comadre, mas não sei de qual filho dela minha avó foi madrinha.
Quando nasceu minha tia Nelly, a caçula de minha avó, mãe Nega passou a morar com a família, para pajear a menina. Isso foi em 1942, quando tinha uns doze anos. Nunca mais voltou a morar com seus pais, muito pobres e com muitos filhos. Era considerada por minha avó como uma das suas filhas, e quando a família mudou-se para Goiânia, veio junto.
Desde pequeno lembro-me de tratá-la por mãe. Eu, meus irmãos e todos os primos. Tinha por nós muito amor e carinho, pois fomos os filhos que ela nunca pode ter, pois era estéril. Nunca deixou de atender qualquer desejo nosso. A qualquer momento estava disposta a fazer biscoitos de polvilho frito, pão de queijo e bolos. Às vezes, minha mãe Floricena me aplicava um corretivo como castigo pelas danuras que cometia, e depois da taca regulamentar, sentado em um tamborete, num castigo penitencial de várias horas ela, cúmplice, levava para mim um prato de queijo frito com açúcar mais um copo de limonada, e sentada ao meu lado me contava histórias de animais que falavam, e outros muitos outros casos que aprendera na sua infância.
À noite, depois da janta, antes de irmos para a cama, as histórias eram outras. Numa varanda iluminada pela luz fraca de uma lamparina a querosene, os casos era sobre assombrações que apareciam na escuridão das noites, cobrando providências para suas salvações. Eram almas penadas de pessoas que morriam sem confissão, que tinham sido más, de meninos malcriados que xingavam muito e desobedeciam aos mais velhos.
Ouvia esses casos com o coração saindo pela boca. Os olhos tentavam varar a escuridão vendo vultos, e gemidos e lamentos das almas condenadas ao inferno eram trazidos pelo vento. Isso contribuiu, e muito, para minha formação. E de forma benéfica, pois me ensinou a não temer o que é invisível e impalpável.
Uma das histórias que mais me impressionavam, era a do fazendeiro rico que deixava seus empregados passar fome, que negava remédio e ajuda a quem necessitava, que negava até esmola. Não ia à missa e não rezava. Quando morreu o capeta, em forma de uma enorme cobra com os olhos que soltavam fogo, apareceu durante o velório. Antes desse aparecimento, contava que as velas colocadas junto ao caixão não paravam acesas, no prenúncio de uma desgraça. Então a cobrona surgiu do nada, e enrolada no madeiramento do telhado, desceu sobre o defunto, envolvendo-o num abraço. Antes que o padre pudesse jogar água benta na aparição ela, enrolada no cadáver do condenado, elevou-se até o telhado onde, num estouro de muito fogo e fumaça que fedia a enxofre, desapareceu com o falecido. Eu ia me deitar apavorado.
Como a casa ainda não possuía eletricidade, e a lamparina era levada depois de acomodar a molecada, eu ficava vendo na escuridão vultos fantasmagóricos, ouvindo sons indefinidos e sentindo alguma coisa soprar na minha orelha. Aí o remédio era cobrir a cabeça, rezar e prometer não aprontar malinesa nem fazer má-criação. Mas essas intenções eram esquecidas ao amanhecer do dia seguinte.
Meu tio Pinheirinho possuía uma criação de pombos, que segundo minha avó, dava um prejuízo danado, pois eles comiam muito milho e não serviam para nada. De vez em quando ela ordenava a mim e ao meu irmão Gersinho darmos uma baixa no bando. À noite, depois que os pombos iam dormir, subíamos até seus poleiros e matávamos uns quinze dos mais gordos. Mãe Nega, já de prontidão, preparava-os para fritar no dia seguinte. No almoço tínhamos um banquete. Mas esse prato era só da molecada, que fazia a maior festa!
Recordo com saudade do sabor do mingau de polvilho de araruta com canela; do biscoito de polvilho de mandioca fritado na gordura de porco; do franguinho frito inteiro (um para cada, para que não houvesse briga); do rabinho de porco conservado na lata de banha, que era e ainda é o meu preferido. Naqueles tempos de menino saboreando com um copão de limonada. Hoje, como tira-gosto de uma lapada de cachaça.
Mas se a desobedecêssemos ou lhe fizéssemos malcriação, não tinha perdão, ela dava uns cascudos doídos que chegava a arder. Certa vez, meu irmão Gersinho resolveu mandá-la “caçar marido”. Estavam lá com seus sete anos, tinha ouvido isso e aprendido. Nem sabia o que significava. Quando viu que ia apanhar, correu. Foi nada não. No final da tarde, voltando para casa, Mãe Nega com carinho, como se nada houvesse acontecido, pediu que ele subisse na goiabeira próxima ao tanque de lavar roupa, e pegasse para ela uma fruta que se destacava das outras de tão madura. Ele, pensando que estava tudo esquecido, subiu na árvore, pegou a goiaba e foi levar para ela. Rapidamente segurou-o pelo braço e tacou-lhe meia dúzia de cascudos para que deixasse de ser desaforado.
Ela fiscalizava a higiene diária da meninada. A tropinha era constituída por mim, meu irmão Gersinho e meus primos César e Wavel. Eles são uns três anos mais novos que eu. O banho, na água fria e com sabão de bola e bucha de palha de milho era uma beleza. Tirava todo o encardido de terra e nos livrava de um ou outro carrapato quer se alojava nos sovacos ou no saco e rego da bunda. Depois do banho, limpos e calçados com um chinelo, íamos merendar um pratão de leite com café e farinha de milho.
Essa tal fiscalização corporal terminou para mim, e creio que também para os outros, quando ela percebeu que havia um encabelamento denunciatório no pé da minha estrovenga. Chamou minha mãe Cena, a vó Julieta e comunicou a perda da minha infância. A partir daí, passei a ser inteiramente responsável por minha higienização diária. Nenhuma delas iria arriscar a ser desconsiderada pela reação desrespeitosa, embora involuntária, por parte da anatomia de um inocente que tinha deixado de o ser.
Durante muitos anos, mãe Nega trabalhou como encarregada da limpeza das salas de aula do saudoso “Educandário Goiás”, que funcionava na Rua 20, no centro de Goiânia. Não foram poucas as vezes que fui convocado a auxiliá-la. Minha função era ajudar na varrição e colocar no lugar as carteiras. Havia uma aluna, menina mimada e enjoada, que se sentava sempre numa determinada carteira, numa das salas. Vinha falar comigo, com um narizinho empinado, que colocasse a carteira dela no mesmo lugar, como se fosse dona do mundo. Para atormentá-la, eu pegava a tal carteira e levava para outra sala. Ela ficava desesperada, e só a encontrava dias depois.
Percebi que ela havia feito uma marca com caneta esferográfica no encosto da carteira, e para seu desespero final – depois de trocar mais uma vez a carteira de lugar – fiz a mesma marca em todas as carteiras da sala. Anos depois, já adulto, sempre que a encontrava recebia um olhar de raiva e desprezo. Pelo que deduzi, nunca mais conseguiu encontrar a tal carteira. Nem eu.
Essas minhas arrumações não passavam despercebidas. Mãe Nega dava uma gargalhada curta, olhava dentro de meus olhos, e sentenciava: “Isso é coisa sua!”
Minha avó contraiu, ainda nova, uma ferida na sola do pé esquerdo que, com o tempo, transformou-se em uma chaga do tamanho de uma tampinha de garrafa de guaraná. Tempos depois, foi diagnosticada com diabetes. Ficou tratando aquilo por um tempo enorme, sem resultado. Durante todo esse período, era assistida com carinho e amor pela mão Nega que, todos os dias depois do banho, fazia um curativo a base de iodo e um pó branco de nome Anaseptil, um cicatrizante.
Quando mãe Nega se casou, já passava dos trinta anos. Seu marido, o José Mariano, era um baiano danado de supersticioso. Funcionário da na época Telebrasília, vinha todo fim de semana para Goiânia, já que mãe Nega não se dispôs a mudar-se.
Certa feita, depois de despedir-se, no domingo à tarde, saiu com sua malinha, dirigindo-se à rodoviária para apanhar o ônibus. Mas daí a pouco, para surpresa da mulher, estava de volta. Disse que não mais iria naquele dia, pois havia tropeçado numa pedra, quase caindo na rua. Segundo ele, tinha sido um aviso do destino para não viajar, pois poderia morrer.
Um dia, ao abotoar a camisa, errou as casas dos botões. Foi o suficiente para não mais usar aquela peça de roupa, que estava na intenção de atrapalhar sua vida, pois se o fizesse, nada mais daria certo.
Numa final de ano, no dia 31 de dezembro, o Zé jantou um pratão de arroz com suã de porco, em seguida meteu o beiço num pratão de leite com farinha, já quase na hora de deitar, isso lá pela dez da noite. A mãe Nega ficou danada de brava, pois como que é que iria deitar-se depois de comer aquele tanto? Com certeza, poderia passar mal. Só que aí ele lembrou-se de que um companheiro de serviço havia dito a ele, que se não desse umas chamegadas com a mulher, como despedida do ano velho, iria broxar o ano inteiro.
Foi nada, não. Daí a pouco, o trem ficou feio. O Zé foi expulso do quarto depois que explicou para a mãe Nega o motivo de tanta alegria. Ela ficou danada com a intenção dele de querer chamego depois de comer daquele tanto. Ela não pretendia ficar viúva, e ainda mais de uma maneira tão desconsiderada.
Hoje avalio a felicidade de ter tido, na minha vida, esta outra mãe. Não é qualquer vivente que tem a alegria e o privilégio de poder ter duas mães. E conviver com as duas até a idade adulta.
Hoje, imerso nas lembranças e nas saudades do que já foi vivido, ao lembrar-me dessa minha segunda e muita amada mãe, só posso pedir: Bença, mãe Nega!…
*Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”.
Fonte: o autor
Publicação Ambiente Legal, 28/01/2022
Edição: Ana Alves Alencar
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