Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
Tudo o que se espera de uma lei orgânica para uma Função de Estado é que esta defina competências, obrigações, prerrogativas e direitos que garantam sua funcionalidade pública.
Isso ocorre, por exemplo, com a atual Lei Orgânica da Magistratura – moldada em meio ao golpe institucional de Geisel sobre o Congresso, em 1977 e extraída “a forceps” pelo Regime Militar em 1979 – pois do contrário resultaria, já à época, em verdadeira farra jusburocrática em prejuízo do erário público.
No entanto, do novo projeto de estatuto da magistratura, gestado no Supremo Tribunal Federal (e relutantemente mantido na gaveta do Chefe do Poder Judiciário), nada se pode esperar com relação a organicidade. Pelo contrário, tudo se poderá esperar com relação a privilégios e benesses.
Ao que tudo indica, a proposta de Estatuto da Magistratura não é uma Lei Orgânica, é pauta de reivindicações em Convenção Coletiva do Trabalho. Uma pauta extremamente benéfica à categoria “sindical”, suportada com dinheiro público.
Operários lutam diariamente para manter seus empregos, sofrem riscos, submetem-se a escalas de trabalho e metas de produtividade, organizam greves com risco pessoal buscando melhorias salariais. Enfrentam Indústrias e conglomerados econômicos que igualmente buscam aperfeiçoamento e racionalização de seus sistema gerencial e produtivo, enfrentam riscos do mercado e lutam dentro das regras dinâmicas do sistema capitalista, a cada dia mais competitivo. Convivem todos em uma dinâmica social típica da sociedade de classes.
Já o funcionalismo público, trabalha em uma sociedade de castas, cada categoria segue mobilidade previamente estatuída, sem qualquer dinamismo que não o estatutário. Há injustiças e privilégios que se eternizam… Sua segurança é suportada por uma carga tributária imposta unilateralmente pelo Estado sobre o povo.
Ao contrário das demais categorias, a magistratura se auto-regula, seu conflito é com sua própria hierarquia, nos limites de sua autonomia orçamentária. Por isso mesmo se espera dela, em prol da enorme autoridade que exerce, que sua conduta seja discreta, sóbria e disciplinada – integrada e identificada com a comunidade em que irá exercer sua jurisdição.
Porém, hoje, não é o que ocorre.
Há uma profunda distorção ideológica na magistratura, provocada pela crescente contaminação corporativo-sindical-esquerdo-fascistoide. Essa distorção contamina o debate sobre a LOMAN.
O comportamento corporativo-sindical-esquerdo-fascistoide é observado e sentido em várias associações de magistrados. Não raro se apresenta no tom arrogante, autoritário, segregacionista e não raro acompanhado por argumentos “de autoridade” nas manifestações de seus dirigentes.
No cômputo dos debates acerca do novo Estatuto da Magistratura, e atuação do CNJ, esse comportamento causou atritos até mesmo com a presidência do Supremo Tribunal Federal , na história recente em que foi presidido pelo Ministro Joaquim Barbosa.
No entanto, no período de presidência do Ministro Lewandowski, no STF, o discurso corporativo-sindical-esquerdo-fascistoide… nadou de braçada. O resultado foi a confusão entre lei orgânica e pauta de reivindicação salarial de categoria.
De fato, a nova Lei da Magistratura gestada no STF cria tantos privilégios para a categoria que deve torna-se um caso inédito em todo o mundo.
Na própria Côrte, ministros críticos da nova Loman dizem que ela seria “um abuso até mesmo para a realidade econômica da Suécia”, uma vez que penduricalhos, gratificações, verbas extras e toda forma possível de aumentar salário foram incluídos na proposta.
Segundo noticiado pela imprensa, além do salário pelo teto, a magistratura (ao que tudo indica rebatizada como categoria sindical) será beneficiada por auxílio-alimentação, auxílio-transporte, auxílio-creche, auxílio-educação (com valores estipulados por filho), auxílio-mudança, auxílio-moradia, auxílio de plano de saúde para o casal, auxílio-capacitação, adicional de formação profissional, indenização de permanência e prêmio produtividade anual. Cada um desses benefícios, individualmente, segundo se calcula, seriam equivalentes, no mínimo, ao salário médio do funcionalismo público. Nenhum dos benefícios, obviamente, seria inferior ao teto pago, por exemplo ao professorado de ensino básico, no país…
Com tudo isso, também segundo a imprensa, a remuneração de um juiz de primeira instância poderá passar do dobro do teto salarial estabelecido pela Constituição.
Além de tudo, a “Convenção Coletiva da magistratura” estaria prevendo reajustes automáticos, baseados na inflação mais um incremento decorrente da variação do PIB, tudo sem a necessidade de passar pelo Congresso Nacional.
Tamanha preocupação com os próprios vencimentos é “compensada” por… ao que tudo indica, nenhuma preocupação com deveres funcionais, conduta, metas e procedimentos.
De fato, a LOMAN “sindical” proposta, ainda programa o enfraquecimento do CNJ – Conselho Nacional de Justiça, o órgão de controle externo da magistratura, que hoje tem capacidade de punir magistrados por faltas funcionais e cobrar cumprimento de metas e agilidade.
Não é a toa que o material obrado no seio do Poder Judiciário ainda não veio à luz do Processo Legislativo. Afinal, pretendem suas excelências um paraíso olímpico para a categoria, em um País em plena depressão econômica, com enormes carências sociais, em que a arrecadação, baseada em tributos indiretos, pesa mais sobre os mais pobres, e que não consegue formar um superávit primário para pagar os juros da dívida, que se acumulam ao saldo devedor, criando uma situação insustentável.
E o pior de tudo é que isso se reproduzirá em cadeia pelos estados, que não conseguem pagar o piso do magistério, aplicar o percentual constitucional em saúde, não provêem segurança pública e sequer pagam a polícia.
Há estados na federação que não têm como pagar mais funcionários e sequer conseguem manter de pé os prédios da administração. Escolas sucateadas, hospitais em ruínas, infraestrutura destruída e saneamento inexistente.
Tamanha insensibilidade social beira à ignorância aristocrática do Antigo Regime na França, ás vésperas da Revolução… Punhos de renda contra o povo – o resultado, geralmente é funesto.
Voltamos ao cartorialismo das Côrtes de Portugal. Da forma como se propõe organizar para exercer sua jurisdição, a magistratura reeditará a casta hereditária herdada do lusitano e despudorado Desembargo do Paço.
É uma doença institucional: organismos funcionais comandados por gente medíocre, assessorada por gente pequena. O fenômeno, ao que tudo indica, atingiu também o Poder Judiciário.
Hora de aplicar remédio amargo.
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados, integra o Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, membro da Comissão de Infraestrutura e Sustentabilidade e da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção São Paulo (OAB/SP). Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal. Responde pelo blog The Eagle View.
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