Só Stanislaw Ponte Preta explica a PEC 65 de 2012, que pretende inutilizar o licenciamento ambiental
Por Evelinne Zambrone
“Estamos em uma corrida contra o tempo.
A era do consumo sem consequências acabou.”
(Ban Ki-Moon, secretário-geral da ONU e guardião do original do Acordo de Paris)
Foram os segundos dizeres que marcaram o Dia Internacional da Terra no último 22 de abril, durante a Cerimônia de Assinatura do “Acordo de Paris” na Conferência do Clima onde aportaram seu aval 175 chefes de Estado, incluindo a Presidenta Dilma, adesão coletiva oriunda de negociações que vinham se arrastando a anos para discutir e propor soluções frente à crescente ascensão da temperatura e do nível dos mares, bem como aos outros impactos de ordem climática; desde dezembro de 2015 os países se reúnem para as tratativas que também se delongaram por conta das disputas entre “ricos” e “pobres” acerca das suas responsabilidades nas emissões dos gases estufa e outras práticas nocivas ao meio ambiente já tratadas no Brasil desde a “Cúpula da Terra”(ECO-92).
Mas, ao nosso país, poderia muito bem servir de pontual ilustração a citação de Stanislaw Ponte Preta, nosso saudoso cronista Sérgio Porto, ora usada como título de forma preambular, não quanto ao significado, mas no que tange à significação que se tem dado às rubricas nas normas do nosso Executivo e Legislativo a nível global: fora de contexto, incoerente, descompromissada e desviada de sua própria função como ato de legitimação da finalidade de bem social da própria lei.
Inevitável o questionamento, mediante a celebração de ato internacional sobre mudanças climáticas pela Presidenta da República, conforme prevê o art. 84, inciso VIII da Constituição Federal e no caminho de ser aprovado pelo Congresso Nacional: qual será a validade da adesão pelo Brasil ao ”Acordo de Paris” se for aprovada definitivamente a proposta de emenda constitucional n.º 65 de 2012, em trâmite no Senado desde sua aprovação na CCJ no último 27 de abril, que torna inexigível e descartável nas obras públicas o licenciamento ambiental, mesmo tal sendo parte da Política Nacional de Meio Ambiente instituída pela Lei 6.938/81 como eficaz instrumento legal de gestão da Administração Pública no controle de atividades humanas que sejam potenciamente poluidoras e que interferem nas condições ambientais, incluindo as nocivas ao clima?
Causa-nos perplexidade que a CCJ, intitulada Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, não faça jus à sua denominação ao aprovar para submissão à apreciação do Senado o acréscimo de um parágrafo 7º ao art. 225 da Magna Carta em notória e incoerente afronta constitucional ao retirar a essencialidade do licenciamento, instrumento de controle autorizativo das obras, mencionando somente o estudo prévio de impacto ambiental que é sabido instrumento meramente avaliador da viabilidade dos empreendimentos, conforme dispõe textualmente a dita PEC:
“§ 7º A apresentação do estudo prévio de impacto ambiental importa autorização para a execução da obra, que não poderá ser suspensa ou cancelada pelas mesmas razões a não ser em face de fato superveniente.”
Ora, tal ato importa em relativização da fiscalização e do controle ambiental e coloca em risco a defesa de tais garantias constitucionais às presentes e futuras gerações ao tornar obrigatória a sujeição do empreendedor apenas ao crivo avaliador do Estudo de Impacto Ambiental (EIA); única exigência que se transformaria em uma espécie de desvirtuado passaporte autorizador da execução do empreendimento que não poderia ser suspenso ou cancelado após sua mera apresentação, exceto por fator superveniente – também questionável haja visto que muitos fatos que se mantenham desconhecidos no decorrer da atividade, mas predecessores à autorização da obra, podem ser perigosos e lesivos ainda que não sejam fatos novos.
Notamos que deixar relegadas à dispensabilidade as necessárias licenças de controle, estas sim de cunho autorizativo, que se resumem em três etapas de avaliações técnicas (licença prévia, licença de instalação e licença de operação) que acompanham o desenvolver do projeto desde a sua viabilidade até a sua execução – embora não previstas no mesmo artigo 225 em seu §1º, inciso IV, que só menciona o EIA -, instrumentos dispostos na Lei n.º 6938/81 em seus artigos 8º, inciso I e 9º, inciso IV e seguintes, na Lei Complementar n.º 140/11 e nos comandos regulamentadores nas Resoluções 001/86 e 237/97 do Conama, e em um drible infeliz jogá-lo de escanteio é o mesmo que jogar ao lixo importantes conquistas na legislação ambiental brasileira que prevê o licenciamento como ferramenta eficaz e legal de controle ambiental autorizativo a exercer o papel de fator garantidor preventivo na tutela de uma de nossas cláusulas pétreas que é a da proteção do nosso direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à sadia qualidade de vida inserto no caput do dispositivo citado.
Há confusão grosseira quanto aos mencionados instrumentos e suas finalidades, sendo que o momento adequado para a apresentação do EIA é justamente por ocasião da licença prévia, que se dá na fase de planejamento da implantação, alteração ou ampliação do empreendimento e objetiva avaliar quanto à viabilidade ambiental e, em caso positivo, estabelece as condições técnicas para o desenvolvimento do projeto, mas não autoriza, per si, a sua instalação. Não obstante, denota atenção o descarte do licenciamento pelo fato de que o acesso ao EIA é restrito, pois contém maior número de informações sigilosas e subjetivas à respeito da atividade.
De outra feita, o texto da PEC não menciona a exigibilidade do EIA-RIMA, que é a somatória do EIA com o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), este que contém as conclusões do Estudo a serem apresentados de forma objetiva e adequada à compreensão pública, de forma a veicular informações em linguagem acessível, ilustrada por meio de imagens, gráficos e tabelas de modo que se possam ser observados as vantagens e desvantagens do projeto a ser executado, bem como as consequências ambientais negativas, o que nos causa estranheza maior ainda.
Alertamos que a dispensabilidade da fase autorizativa atingiria não só as obras públicas, mas também as privadas, pois na forma em que foi concebido o texto de forma genérica neste ponto, não há dita distinção, deixando também ao arrepio da lei e da Política Nacional do Meio Ambiente as obras privadas que possam ser potenciamente poluidoras e causar significativos impactos ambientais.
Temos que claramente dissonante a PEC de sua justificativa apresentada, quando expõe que “tem por objetivo garantir a celeridade e a economia de recursos em obras públicas sujeitas ao licenciamento ambiental, ao impossibilitar a suspensão ou cancelamento de sua execução após a concessão da licença”, pois, acuradamente, vemos cada vez mais a tendência do legislativo em ceder aos interesses políticos e das grandes empreiteiras e construtoras ao abreviar e desconsiderar etapas autorizativas e objetivamente impositivas dos empreendimentos, sendo lenientes à possibilidade de risco e dano dos acidentes ambientais, do superfaturamento, e até mesmo do fraudulento descumprimento de cronogramas ou da execução de obras “fantasmas”, uma vez distorcida como autorizativa uma fase que é avaliativa, portanto, também subjetiva, não impositiva e sujeita à discricionariedade da Administração Pública.
Vale lembrar que a legislação é fonte da discricionariedade na medida em que, se a norma legal deixa brechas por omissão, desvirtuamento ou confusão nos instrumentos jurídicos de controle no corpo da lei, o ato controlador passa a ser arbitrário e temeroso devido ao afrouxamento da higidez no executivo, resultante da oportunidade e conveniência que se permite com a sua relativização, sendo suscetível às mãos de manobras oportunistas, causando o desvio da própria finalidade a que se propôs o espírito da lei.
Feitas tais considerações, observamos que a aludida PEC, que fora aprovada na CCJ rapidamente após a Presidenta do Brasil lavrar sua assinatura na “Carta de Paris”, apenas 5 (cinco) dias depois de nosso país firmar compromisso internacional que tem como objetivo basilar a redução da vulnerabilidade às mudanças climáticas e com vista a contribuir para o desenvolvimento sustentável e assegurar novas práticas adequadas nas metas de temperatura estipuladas pelos países signatários, é, na verdade, uma aberração jurídica de imenso retrocesso a nível mundial pois demonstra o “jeitinho brasileiro” no nosso exagerado consumismo com sede vertiginosa, corrupta e oportunista de aceleração desenfreada e descontrolada da construção civil a relegar a plano secundário a sustentabilidade no nosso desenvolvimento urbano e na preservação de ambientes ecológicos.
A PEC 65 de 2012 configura na seara da sustentabilidade urbanística ambiental uma concorrente “hour concours” com as recentes “sandices” do nosso Congresso, tal como a recente peripécia do deputado Maranhense de “anular a anulação” do processo de Impeachment da Presidenta Dilma. Trata-se de “cretinice” que seria capaz de engrossar as muitas sátiras do nosso “Lalau”, apelido dado ao nosso Sérgio Porto, se ele estivesse ainda vivo entre nós.
Mas nosso cronista de fino humor, não está mais presente para amenizar, ao menos com algum riso amarelo, a nossa própria indignação quando um dia descobrirmos – sim, ainda estamos alheios ao que ocorre nas Tribunas, Tribunais e Tribos do nosso Brasil – o fato de que elegemos mais e mais políticos que exercem seus mandatos, executivos e legislativos, como verdadeiros disparates jurídicos.
Na atual conjuntura enervada e escandalosa da política nacional estaremos todos, literalmente, na “mão do palhaço”. Assim como nós cidadãos não damos significação ao nosso voto, os políticos não dão significação ao significado que aportam em suas assinaturas, agindo de forma desconexa e contrária à Carta Maior.
O(s) Tiririca(s) e presidenciáveis, eleito(s) por nosso voto direto e popular, estarão, talvez, pondo para fora suas umbigueiras a nos envergonhar ostensivamente, não com o refino do mencionado literato que faz graça e nos traz autocrítica construtiva, mas com o impolido escárnio de nos mostrar a crueza da irreversibilidade de nossa omissão, pois não agimos conscientemente nos escrutínios e nem exercemos nosso direito cidadão de votar contra nas consultas públicas às muitas aberrações jurídico-legislativas, tal como a PEC aqui exaurida.
Nos cabe escolher se levaremos nossos descendentes a conviver futuramente com a consolidação covarde da supressão da nossa segurança, saúde, equilíbrio e bem-estar ambiental. Se iremos expô-los ao financiamento corrupto de espetáculos excrescentes de políticos que, caso questionados, dirão não saber onde foram comprados os suspensórios, onde estarão as calças (que já não mais escondem seus umbigos)… ou se cooperaremos para que ocorra um consumo cônscio e ordenado, em harmonia com as metas de desenvolvimento sustentável.
Que o bem se faça concreto no solo dessa nossa mãe gentil, ainda alheia ao que ocorre na ordem mundial urbanística-ambiental, hodierna nas áreas externas às cercanias da Praça dos Três Poderes, em Brasília. Que isso não nos leve a concluir que não, a praça ainda não é nossa.
Evelinne Zambrone Ferreira de Carvalho é advogada, especialista em Direito Ambiental pela Universidade Estácio de Sá, membro do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul, da Comissão de Direito Ambiental da 47ª Subsecção da OAB-SP e do Núcleo Interdisciplinar de Meio Ambiente da PUC-Rio.
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