Missão jesuítica que produziu o manuscrito foi marcada por conhecimentos de vanguarda. Para entender melhor a questão, conversamos com Édison Hüttner, pesquisador que analisou o documento
Um artigo científico publicado neste anoanalisou um valioso manuscrito confeccionado durante uma missão jesuítica ocorrida durante o século 18 (mais especificamente, entre 1730 e 1740), fazendo uma série de impressionantes descobertas a respeito da quantidade de conhecimento que os padres e indígenas do local tinham acesso.
Os missioneiros não apenas estudavam teologia e cultura geral, como também contavam informações então vanguardistas a respeito dos campos da astronomia e da cartografia, com o documento histórico chegando a incluir estudos nunca vistos antes de Buenaventura Suaréz, o primeiro astrônomo da América do Sul.
Para entender melhor o que essa descoberta significa para a reconstrução do passado não apenas do Brasil, mas do continente latino como um todo, o Aventuras na História realizou uma entrevista exclusiva com Édison Hüttner, que é um pesquisador de História, Teologia e Povos Indígenas, além de lecionar na PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul).
Herança histórica
No início de 2017, Édison recebeu uma ligação que definiria seus próximos cinco anos de estudo acadêmico. Do outro lado da linha, estava Andréa Sinnemann Geh, uma moradora da cidade de Panambi, no Rio Grande do Sul.
Ela conheceu o trabalho do professor através de uma aparição dele na televisão, e dizia ter acesso a um livro antigo escrito em espanhol e latim. A obra em si pertencia à sua tia, Liane Janke, tendo sido passada a ela como herança de família.
Hüttner aceitou prontamente a oferta de analisar o documento, passando na residência da gaúcha na volta de uma viagem para Porto Alegre. Não demorou para perceber o grande valor histórico do objeto.
“Quando peguei nas mãos o livro, já a capa, me surpreendeu… vi que se tratava de uma obra muito rara, e que provavelmente seria dos jesuítas. Fiquei até alta madrugada lendo e folheando a obra. No dia seguinte solicitei por escrito autorização para levar o livro para Porto Alegre com o objetivo de realizar pesquisas com mais tempo e com a participação do Dr. Eder Hüttner”, contou o especialista.
Mais tarde, ainda em 2017, o Manuscrito seria exposto no saguão da Biblioteca Central da PUC-RS, assim como as análises iniciais a seu respeito.
O estudo completo sobre o artefato, por sua vez, apenas veio em 2023, sendo publicado pela revista internacional Visione Latino Americane. O trabalho teve a autoria de Édison, juntamente de Eder Abreu Hüttner, Fernanda Lima Andrade e Rogerio Mongelo.
Código de Panambi
O documento, chamado pelos autores do artigo de Manuscrito, Almanaque e ainda Código de Panambi (em homenagem à cidade onde foi encontrado) possui cerca de 800 páginas escritas à mão.
Os inúmeros estilos de escrita diferentes revelam que se tratou de um trabalho colaborativo, sendo confeccionado por uma pluralidade de missionários que incluiria tanto padres jesuítas quanto indígenas.
O que se mantém constante, todavia, é a organização impecável: em todas as laudas, linhas foram traçadas para garantir a escrita reta, as margens são respeitadas, e a caligrafia é bonita, sendo perfeitamente legível do início ao fim.
Um detalhe triste é que as páginas, que são numeradas, começam no número 73. Esse início da obra, que teria permitido sabermos quem foram os organizadores por trás do enorme documento, se perdeu em algum ponto de sua trajetória ao longo dos séculos.
O conteúdo do Código de Panambi, por sua vez, pode ser descrito como uma apostila didática multidisciplinar:
“O Manuscrito abrange temas de várias áreas do conhecimento, de cultura geral, como é próprio de um almanaque. Não podendo faltar, é claro, temas de ciência e da época, como a astronomia, a astrologia, bem como um conteúdo essencial para as missões: teologia”, explica Édison Hüttner.
O pesquisador acrescentou ainda que, em um dos trechos do documento, é revelado o autor de certas laudas que eram sobre teologia — tratava-se de Richards Arsdekin, um famoso jesuíta que viveu entre 1619 e 1693.
O Manuscrito impressiona pela extensão do conhecimento que compila, caracterizando as missões jesuíticas (também chamadas de Reduções) como um espaço onde a intelectualidade podia florescer.
“Os índigenas, aquela grande população, eram um povo internacionalizado, letrado e culto. Estavam informados de notícias do cotidiano dos jesuítas do Japão e da China, da História de países da Europa, África, Ásia, de como viviam os povos moscovitas, sobre fábulas, a história de reis, papas e dos grandes templos da igreja católica”, aponta o historiador.
É a cronologia dos papas, aliás, que permitiu a datação do Manuscrito: o último pontífice citado é Clemente XII (1652-1740), informação que levou à determinação do período de finalização do livro como aquele entre 1730 e 1740.
Entre as centenas de páginas, estão ainda incluídos mapas de grande qualidade mostrando as coordenadas geográficas das 30 Reduções salpicadas pela região Sul do Brasil, assim como pelo Paraguai, Argentina e Uruguai. Esses recursos teriam criado uma importante “cultura de localização geográfica indígena” nas comunidades nativas que faziam parte das missões, de acordo com Hüttner.
São também conhecidas a latitude e longitude das capitais de diversos países, tais como o Rio de Janeiro (então capital brasileira), Madrid (da Espanha), Londres (Inglaterra), Roma (Itália) e outras.
Conhecimentos suarenses
A cartografia presente neste e outros documentos criados em missões jesuíticas, vale mencionar, pode ser atribuída a Buenaventura Suaréz, um jesuíta argentino de grande relevância histórica que pode ser caracterizado como ninguém menos que o primeiro astrônomo da América Latina.
Curiosamente, seus estudos de cartografia e astronomia foram realizados justamente no ambiente das Reduções, e não em espaços acadêmicos — sua conexão com outros especialistas era estabelecida por cartas.
Um dos diferenciais do Almanaque jesuíta encontrado no Rio Grande do Sul, aliás, é a presença de escritos suarenses inéditos, isso é, trabalhos do astrônomo latino que nunca havíamos visto antes. Foi graças à presença de Buenaventura que as missões jesuíticas contêm informações de astronomia.
O Código de Panambi, por sua vez, inclui ainda conceitos da astrologia (algo que não está presente em outros manuscritos jesuítas), informações que, conforme conjecturado por Édison, teriam interessado o jesuíta argentino por sua ligação com os planetas e o Universo.
O Manuscrito contava, portanto, com a descrição de signos do Zodíaco, assim como as constelações, planetas e mitos associados a cada um. Tanto a escrita quanto os desenhos dessas laudas teriam sido feitos por Suaréz.
Uma das conclusões peculiares resultantes da análise do documento histórico é que os indígenas que viveram em uma Redução há séculos atrás sabiam seus respectivos signos.
Homem missioneiro
Outro detalhe interessante é quem eram os leitores a quem o Almanaque se destinava: não eram apenas os indígenas das missões, mas também os “mestres jesuítas que utilizavam o conteúdo para sua formação teológica”, conforme revela o artigo de 2023.
Assim, os nativos e os eclesiásticos seriam unificados na categoria de “homem missioneiro”, estando ambos envolvidos tanto na escrita quanto na leitura do documento histórico. Essas condições podem ser consideradas excepcionais em meio à trajetória sangrenta da colonização do Brasil:
“Naturalmente ocorreram estranhamentos no início e/ou hibridismos de experiências religiosas, como é em todo encontro entre culturas e manifestações religiosas diferentes. Mas levando em conta aquele período de caça a escravos por parte de portugueses e espanhóis, acredito que é o período da História em que mais tivemos harmonia entre eclesiásticos e índios, tendo em mente o número de índios com envolvimento em atividades em comum, num mesmo espaço”, apontou Hüttner, enfatizando que havia mais “valorização” que “distinção”.
De acordo com o pesquisador, a cosmologia dos povos indígenas da época teria inclusive influenciado os estudos astronômicos de Buenaventura Suaréz devido à convivência entre a cultura jesuítica e a cultura dos nativos:
“Com o passar do tempo, o conhecimento e as trocas entre índios e jesuítas se tornaram mais clara e recíprocas (…) Era um trabalho em comum. As etnias guarani e outras, como os coroados (caingangues), charruas… tinham suas crenças e uma visão de mundo, assim como os jesuítas. Esses mundos se encontraram para surgir astronomia”, explicou ele.
No artigo científico, essa corrente de conhecimento é descrita como uma “astronomia suarence missioneira” que seria “única no mundo” devido às condições específicas em que surgiu.
Vale mencionar que o estudioso chegou a construir um observatório astronômico com materiais locais e ajuda dos indígenas na Redução de São Cosme e São Damião. Hoje, infelizmente, só temos as ruínas desse local.
“Se o centro astronômico criado por Suárez não tivesse sido destruído com o fim das reduções jesuíticas 1768, teríamos talvez o maior centro astronômico americano existente na América”, lamentou Hüttner.
Felizmente, graças aos trabalhos recentes de Édison Hüttner e sua equipe, assim como os dos pesquisadores que estudaram outros documentos jesuítas, podemos aos poucos entender como realmente era o ambiente dentro das missões jesuíticas, recuperando essa parte surpreendente da História sul-americana.
Fonte: Aventuras na História
Publicação Ambiente Legal, 30/01/2023
Edição: Ana Alves Alencar
As publicações não expressam necessariamente a opinião dessa revista, mas servem para informação e reflexão.