Por Antenor Pinheiro*
Parece um carma maldito, mas toda cidade tem seus cursos d’água sacrificados em nome do tal “progresso”. Ineficientes gestões públicas deste Brasil mal resolvido fizeram (e ainda fazem) de seus córregos e rios urbanos, indecentes esgotos a ceu aberto ou mesmo fechados, e às suas bordas, as marginais, vias expressas associadas a severos eventos de trânsito e outras feiúras.
Em São Paulo, o Anhangabaú e Tamanduateí, recolhidos aos subterrâneos paulistanos, ou o Tietê e Pinheiros, expostos aos olhos de todos. Em Belo Horizonte, o Arrudas… E por aí vai! É pesquisar e constatar o desprezo deliberado e continuado com as belas paisagens de outrora. Todos invariavelmente sufocados por cimento, aço e asfalto; todos condenados a dar suporte ao tráfego de carros, prioritariamente.
Resido em Goiânia, capital originada dos arraiais fundados pelos bandeirantes de Vila de São Paulo de Piratininga, caminhantes do sertão oeste brasileiro. Do Arraial de Sant’Anna (atual cidade de Goiás) dos séculos coloniais, Goiânia herdou o status de nova capital, construída sob a inspiração do modernismo e monumentalidade franceses de traços Art Dècó na década republicana de 1930. No entanto, ao longo de sua história, também teve destruídos elementares e nobres conceitos urbanísticos que abortaram a chance desta nova urbe constituir-se exemplo de cidade-jardim neste embrutecido continente.
Na altura de seus jovens 84 anos, Goiânia já coleciona horrorosos exemplos de como maltratar suas belezas naturais. Um deles é a marginal Botafogo, aquela cruel camisa-de-força que constrange o córrego de mesmo nome – espécie de lacre que sufoca o curso d’água mais influente na escolha do local para a implantação do plano urbanístico da cidade. Começou como inofensiva ciclovia, mas virou esse monstrengo perigoso que mata gente no trânsito e solapa orçamentos públicos com recorrentes desmoronamentos. Lembra Brecht: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”, simples assim!
Nasci distante 60 metros de sua margem, parto normal, tomei banho no seu leito e nas cristalinas bicas d’água de seus barrancos. Fiz cinzeiros de sua argila. Pesquei lambaris e lobós. Colhi capins-navalha surgidos das locas pra alimentar meus preás e vi belas mulheres suburbanas lavar roupas e filhos sobre pedras à sua beira.
Quando chovia forte, era aquela festa. As águas ganhavam velocidade estupenda, porque ali está o seu perfil mais baixo, próximo do beijo do ribeirão Anicuns e, pouquinho mais pra frente, o abraço do rio Meia Ponte. Mas as enchentes eram dóceis, teatrais. Suas águas acomodavam-se em obediência à calha natural. Dançavam abalroando as próprias ondas que fazia, feito aplausos explosivos que resultam respingos ao alto, como a um balé aquático. E ao lamber as bordas, sedimentos se rendiam avermelhando seu curso. Jovens e adultos, íamos ao mais alto dos barrancos assistir ao espetáculo…. Belo!
Mas o “progresso” chegou e subverteu-o os governantes. A exemplo de córregos e rios de outras capitais, como dito, mereceu a indiferença em forma de concreto e curvou-se à demanda dos carros. No lugar de capins e folhagens, de barrancos e bicas, forjaram concreto neles e asfalto para os carros.
Motivações políticas, econômicas e especulativas orientaram sucessivas gestões da cidade de sorte a sufocar-lhe o bucólico. E agora o gestor pede socorro diante da fúria de suas águas somadas a outras desgovernadas e as do próprio ceu. Os carros estão ameaçados, e já se perguntam os viventes de olhos arregalados: o que seria da cidade sem a marginal botafogo? Respondo: seria!
A solução plausível é aquela que vem sendo adotada por metrópoles igualmente corrompidas mundo afora: devolver ao curso do córrego o que lhe suprimiram. Remover o lacre que lhe impuseram; humanizar suas margens; incluir gente nelas; criar espaços lineares para encontro de pessoas; inserir num desenho urbano ativo as belezas que o urbanismo consequente é capaz de oferecer; resgatar a urbanidade; cuidar do bom córrego que tantas gerações banhou, devolvendo-o às próximas, enfim!
Ninguém deixará de ter e usar carro por causa de uma marginal viária derretida. E isto vale para todas!
* Antenor Pinheiro é jornalista, perito criminal, comentarista de mobilidade urbana da CBN Goiânia e membro da Associação Nacional de Transportes Públicos/ANTP.