Um conto de raizeiros e calosidades
Por Marco Aurélio Arrais
Nas ruas das cidades maiores, proliferam os mais diversos tipos, empenhados em chamar a atenção do povo, fazendo demonstrações artísticas, vendendo produtos diversos ou exercendo um ou outro serviço que podemos denominar de “utilidade pública”.
Quando dos meus vinte anos, isso no século passado, frequentava as ruas de Goiânia o vendedor de um remédio miraculoso. Era recomendado na cura da “gonorréia de gancho”, “crista de galo”, “mula” e outras ditas “doenças de rua”, como também bastante eficaz no restabelecimento de pau caído e desapetite por mulher. O efeito seria sentido depois de trinta dias após o consumo da beberagem, acondicionada em garrafas de um litro, a ser administrado através de duas colheres de sopa bem cheias, tomadas de manhã e antes de jantar.
Não posso dizer se de fato acontecia a cura prometida, pois o sujeito desaparecia da cidade quando o estoque do medicamento terminava.
Um outro, que tinha por parceira uma jiboia de mais ou menos uns dois metros, de nome Catarina, comerciava uma pomada que curava doenças de pele como sarna, “pano branco”, “impingem”, “cobreiro”, coceira braba no sovaco, no meio das pernas e no rego da bunda. Era produzido com a mistura de algumas raízes, ervas e cascas de árvores conhecidas apenas por alguns iniciados nos mistérios das floras do cerrado, da caatinga e das matas do Amazonas. Enfim, uma mistura de tudo que existia de melhor na natureza.
A comprovação das curas obtidas eram umas fotografias velhas, dentro de um álbum que tinha as folhas protegidas com plástico. Mostravam diversas pessoas com todas essas doenças e, depois, curadas. Era uma exposição bizarra de troncos, braços, pescoços, faces, sovacos, virilhas e regos de traseiros diversos.
Trazia dependurada no pescoço uma velha máquina fotográfica, e prometia dar um desconto especial para aqueles que se deixassem fotografar com seus males, para posterior comprovação da cura.
A dosagem do remédio variava de acordo com a doença, e a prescrição era no pé do ouvido, pois nenhum paciente tinha a intenção de contar qual era a parte afetada. Dizia, ainda, que se não houvesse resultado era só voltar para conferimento, que o dinheiro seria devolvido.
Havia o vendedor de um pó que era tiro e queda para a cura de frieira, descascamento da pele do pé e chulé. Ele atraía muitos curiosos, pois era necessário que o interessado tirasse a botina, o que sempre empesteava o ar por uns dez metros ao redor. O diagnóstico era feito na hora e variava bastante: de “rachadura de frieira” entre os dedos, que fedia a bacalhau podre; “chulé ardido”, que afrontava igualzinho a queijo bichado; mofo de pé, que eram umas manchas cinzentas, com um fedor azedo, e diversos outros males dos quais já não me lembro, mas todos com competência para espantar urubu.
A verificação do mal que a pessoa portava era feita com o uso de um pauzinho de picolé, que era esfregado na parte afetada e mostrado aos presentes, para que comprovassem o acerto do diagnóstico conforme do fedor exalado. Quando o tal pauzinho era oferecido ao povo para verificação, a roda abria em mais de metro.
Os desocupados, em volta, se divertiam com a desgraça alheia, fazendo troça. De vez em quando uma mulher, que é bicho mais fraquejado do estômago, saía quase correndo, dando vômito de nojo.
Mas o mais competente dentre todos eles, era o tirador de calos. Ou como ele se definia numa placa metálica, presa a um suporte: “Técnico em extirpação de calosidade”.
Hábil cirurgião popular, tinha sua área de trabalho numa esquina da Praça do Bandeirante. Seu equipamento era somente uma faquinha minúscula, bem amolada numa pedra, e desinfetada com fogo de álcool. Com ela fazia a extração de qualquer tipo de calo, sem anestesia.
Era auxiliado por uma morena linda e gostosona. Jovem, tinha um sorriso que despertava paixão, os olhos negros e cabelos compridos. Seus peitões avantajados e firmes, eram desprotegidos de sutiã. Usava um vestido com decote generoso.
O tal vestido era feito de um tecido bem fino, colado ao corpo, e fazia ressaltar a bunda e umas coxonas bem favorecidas no volume e na belezura.
A função dela era, durante a operação, segurar a mão do cliente entre as suas. Carinhosa, acalmando-o com doçura e safadeza, ficava sentada bem juntinho dele, num tamborete um pouquinho mais alto, de maneira que o operado ficava com a cara literalmente enfiada no seu departamento mamativo.
O paciente então colocava o pé numa caixa, entre ele e o descalejador. Este passava um pouco de iodo no calo e ia volteando o bruto com a faquinha, sempre mais fundo, até achar a raiz, narrando o procedimento para a plateia como se fosse um jogo de futebol.
Rodeava de fora para dentro até tirá-lo inteirinho. Quando o operado dava sinal de querer puxar o pé ou reclamar, a belezura se aconchegava, suspirava e esfregava os peitões no braço dele. Apertava a mão do sofrente com doçura, e para acalmá-lo, puxava-a mais para cima, até chegar no alto da coxa, bem no rego da virilha. Então, distraidamente, até o fim do procedimento, deixava que ficasse por baixo da sua, pousada aberta e diretamente sobre o pano ralo do vestido, praticamente sobre a pele. Olhava então, lânguida, bem dentro dos seus olhos e gemia toda dengosa: -“Ai, bem, tá doendo?”
O infeliz, diante daquilo, era obrigado a puxar lá do fundo da alma um resto de macheza que estava na reserva e, sorrindo para ela com a boca frouxa e os olhos arregalados de medo, empalidecido de dor, balbuciava com uma voz fraca: -“Não, tá até bom, não é nada”.
À plateia importava mais a visão dos peitos e das coxas da morena que a operação em si.
Em dado momento, dando uma piscadela para o parceiro, ela soltava um gemido sentido, como se fosse sócia na dor do vitimado, e apertava sua mão com força, puxando-a quase para o meio das pernas.
Era o sinal para a finalização. Com um movimento rápido, o miolo do calo era extraído. O infeliz do descalejado nem gemia, pois não há anestésico melhor que quentura de buceta – Não serve até para ferroada de arraia?
Só que além da dor, o paciente também ficava ativado na sua macheza. Naquela época as cuecas usadas eram largas, e não ofereciam proteção contra demonstração de taradice. Era começar o tratamento para a estrovenga do paciente dar sinal de interesse. De vez em quando, alguém dizia: “Repara, gente. A pressão dele está alta. Só que o remédio para baixar, ele deixou em casa”.
O acerto final era feito diretamente com ela, que agradecia com aquele sorriso lindo na boca carnuda e vermelha. Alisava o rosto do freguês sem pressa, sedutoramente e, consolando-o, miava com ternura: -“Tadinho!”.
O interessante, é que nunca tinha dinheiro suficiente para o troco, quando a cédula dada em pagamento era das mais graúdas. Dizia então meio sussurrando, meio reclamando, com uma vozinha quase inaudível, rouca e xamegosa: -“Tem troco completo não, amor”.
Ninguém se importava. O encantamento dela era muito poderoso. O convalescente ficava que nem passarinho dominado por cobra.
O calo era então colocado em uma caixa de madeira junto com centenas de outros anteriormente extraídos. Havia calos de todos os tamanhos, cores e formas.
Fazendo propaganda, o homem revirava com uma vareta os calos da caixa, para que fossem apreciados pelos presentes, comprovando com isso sua técnica e perícia.
Hoje, quando vejo nos supermercados esses tais sucrilhos que a meninada adora, me lembro dos calos depositados na caixa. A cor, o formato e a textura são bem parecidos!
Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”. –
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