Por Malu Ribeiro e Mario Mantovani*
O acesso à água de qualidade e em quantidade é um direito humano que deve ser garantido por meio da universalização do saneamento, razão pela qual é inexplicável a forma incipiente como o tema vem sendo tratado pelo governo brasileiro. O problema se agrava quando a regulação é alterada de forma desconectada das políticas públicas ambientais e dos preceitos constitucionais da transparência e da participação social.
Esse descompasso está refletido na recente Medida Provisória do Saneamento Básico (MP 844) assinada pelo presidente Michel Temer e apresentada pelo ministro-chefe da Casa Civil Alexandre Padilha em artigo publicado nesta Folha.
É importante frisar que o instrumento da Medida Provisória deve ser utilizado em caso de urgência e por tempo limitado, o que não se aplica a um tema de extrema importância e impacto social como o saneamento básico, que demanda planejamento e execução de longo prazo.
Em que pese a necessidade de aprimoramento do marco regulatório do saneamento – fruto de mais de uma década de debates – a MP 844 não respeita o direito da sociedade de debater e participar da construção dessa política pública. A modernização do setor e aperfeiçoamentos devem ocorrer por meio de um Projeto de Lei que envolva a sociedade, poder público e os setores técnicos.
Ao trazer para a Agência Nacional de Águas (ANA) a regulação do saneamento, a MP enfraquece o seu papel estratégico de gestora do recurso natural e prejudica o Sistema Nacional de Recursos Hídricos. A ANA é responsável por instrumentos estratégicos como o enquadramento dos corpos d’água, que classifica os rios em classes de qualidade, e também pela outorga de direito de uso da água. Portanto, a nova atribuição gera um conflito de papéis.
A precariedade no tratamento de esgotos tem levado companhias públicas e privadas a pressionar comitês de bacias hidrográficas e governos para rebaixar o enquadramento dos rios para a classe 4, que mantém rios poluídos e impróprios para uso por não ter limites para diluição de poluentes. Assim, o setor evita punições e sobretaxas. E agora, como ficará o papel da ANA na emissão de outorgas para o setor que ela mesma passará a regular?
A MP também fere os princípios fundamentais de descentralização e participação da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) quando estabelece que a ANA pode restringir o uso da água em rios estaduais e federais em períodos de seca, sem ouvir os comitês de bacias hidrográficas e os Sistemas Estaduais de Recursos Hídricos.
Um exemplo de como a mudança pode afetar a atuação integrada desses órgãos é a outorga do Sistema Cantareira, formado por dois rios federais e dois estaduais, que atende às regiões metropolitanas de São Paulo e Campinas. Sua renovação durante a crise hídrica envolveu amplo processo de negociação e judicialização. Com audiências públicas e integração entre os comitês de bacias e órgãos gestores federais e estaduais de Minas Gerais e São Paulo foi possível superar o desafio de renovar a outorga. Ao centralizar a decisão na União, a MP exclui a possibilidade de negociações como essa em momentos de seca e escassez.
No afã de alterar o marco regulatório do saneamento básico, o governo brasileiro renega a gestão da água a um segundo plano e cria uma forma de cortar caminho, que fere direitos e atropela políticas públicas estratégicas que devem ser reguladas com participação da sociedade e transparência. Não será uma Medida Provisória sancionada a toque de caixa que levará o país à universalizar o saneamento.
*Malu Ribeiro é especialista em Água da Fundação SOS Mata Atlântica; Mario Mantovani é diretor de Políticas Públicas da Fundação.
Publicado originalmente em 31 de julho, na Folha de S. Paulo.
Fonte: SOSMA