Por Paulo de Bessa Antunes*
O tribunal nunca esquece
(Franz Kafka)
O Supremo Tribunal Federal [STF] após reconhecer a Repercussão Geral no Recurso Extraordinário [RE] 654833[1], cuja questão de fundo diz respeito à uma ACP movida em face de supostos desmatadores em área indígena localizada no Estado do Acre. Em decisão proferida aos 17/04/2020, o STF fixou, por maioria, o tema 999 de Repercussão Geral, com a seguinte tese: “É imprescritível a pretensão de reparação civil de dano ambiental”. A decisão é preocupante, pois é uma verdadeira criação de Direito novo. Infelizmente, o inteiro teor da decisão ainda não se encontra disponível no sítio internet do STF[2]. A matéria, no Superior Tribunal de Justiça [STJ], a matéria foi apreciada no Recurso Especial [REsp] 1120117/AC[3], cuja Relatora foi a Ministra Eliana CALMON; na decisão o STJ entendeu imprescritível o dano ambiental.
Antes de enfrentar a discussão da matéria, julga-se conveniente relembrar que o feito tramitou perante o STF por cerca de 11 anos e que o tem em discussão dizia respeito a corte de vegetação em Terras Indígenas entre os anos 1981 e 1987. Isto, levou-se mais de 30 anos para decidir a questão. Este artigo, dividido em 2 partes, examinará o tema 999 do ponto de vista teórico e prático. Esta primeira parte será voltada para os aspectos teóricos da questão.
1 – Regras relativas à prescrição ambiental
A prescrição dos danos ambientais é tema controverso, há legislações omissas quanto à matéria e outras que dela tratam diretamente. Na América Latina há dois grupos definidos. (1) Brasil e Argentina[4] são omissos quanto ao tema, (2) (a) Chile[5], México[6] e Panamá[7] estabelecem marcos temporais para a prescrição e (2) (b) o Equador[8] tem por imprescritível o dano ambiental.
Em Portugal[9], a prescrição ocorre em 30 (trinta) anos. Em França, o artigo L 152 -1 do Código do Ambiente (alterado pela Lei nº 2016/1087[10]) estabelece o prazo de 10 anos para a prescrição, contados a partir do dia em que o titular da ação tenha tomado conhecimento, ou deveria ter tomado, da manifestação do dano.
2 – Ordem jurídica e segurança: o tempo como elemento da formação do Direito.
A ordem jurídica, como se sabe, tende à estabilidade e à previsibilidade. As suas mudanças se fazem ao longo do tempo, em um processo de constantes acomodações entre o passado, o presente e, em alguma medida, o futuro. As incertezas são uma característica da vida humana e, portanto, o direito, na medida do possível, deve buscar minimizá-las. Quem imaginaria a pandemia de COVID 19? A segurança jurídica, entendida como a certeza de que se pode contar com regras de Direito, com a sua aplicação igual e, em determinadas circunstâncias criadas ou qualificadas pelo Direito, com os direitos adquiridos e protegidos por um tribunal (LARENZ, 1985, p. 46), é um elemento fundamental para a vida em sociedade e a prescrição é um dos seus principais alicerces.
A prescrição é uma das diversas consequências do tempo sobre o Direito. Conforme nos lembra SERPA LOPES (1996, p. 558) ela possui significação jurídica, assim como as manifestações de vontade e dos demais atos aquisitivos de direitos. O tempo é um elemento que se soma aos demais requisitos formadores de um direito, haja vista que após determinadas situações de fato, impõe-se o transcurso de um certo lapso de tempo, consolidando-se uma realidade jurídica e jurígena.
SAN TIAGO DANTAS (1979) leciona que a influência do tempo no Direito, causada pela inércia do titular, serve a vários propósitos, inclusive o que considera “uma das finalidades supremas da ordem jurídica, que é estabelecer a segurança das relações sociais”. Acrescenta que a passagem do tempo sem que se modifique o estado atual das coisas, não se tem por justo a continuidade da exposição das pessoas à insegurança que o” direito de reclamar mantém sobre todos”. Para San Tiago Dantas, a prescrição tem uma de suas raízes numa das “razões de ser da ordem jurídica, distribuir a justiça”, acrescentando, “fazer com que o homem possa saber com o que conta e com o que não conta”. Ou seja, é o reconhecimento cabal dos fatos consumados na produção da estabilidade social e jurídica.[11]
Parece claro, portanto, que a passagem do tempo é um dos maiores desafios na capacidade instituinte do Direito (OST, 2005).
3 – Imprescritibilidade é exceção
A Constituição Federal estabeleceu algumas hipóteses de imprescritibilidade (ações eternas) de direitos ou mesmo de ações. O artigo 5º, incisos XLII e XLIV estabelece que a prática do “racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei” e que “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.
Em relação aos cofres públicos, a Constituição Federal, em seu artigo 37, § 5º estabelece como imprescritível a ação de ressarcimento, muito embora admita a prescrição dos atos ilícitos praticados “por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário”.[12]
Os bens públicos, por força da Constituição Federal, são imprescritíveis, não podendo ser adquiridos por usucapião. Matérias relevantes como o meio ambiente e a energia nuclear não mereceram consideração especial do Constituinte no que se refere à prescrição. Conforme a sistemática constitucional tem-se que as hipóteses de imprescritibilidade devem ser expressas, até mesmo porque exceção não se presume em Direito.
4 – Dano ambiental: breve definição
A discussão sobre a prescritibilidade ou não da ACP e da reparação dos danos ao meio ambiente, necessariamente, passa pela discussão do próprio conceito de dano ao meio ambiente (ANTUNES, 2015). A Lei da Política Nacional do Meio Ambiente [PNMA][13] nada dispôs sobre a questão, limitando-se a estabelecer conceitos abertos de (1) degradação e (2) poluição. A degradação, como se sabe, é a alteração adversa das características do meio ambiente; Já a poluição é a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente: a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; c) afetem desfavoravelmente a biota; d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos. Normativamente, a Argentina[14] e o Chile[15], por exemplo, definem dano ambiental como toda perda, diminuição, detrimento ou menoscabo significativo imposto ao meio ambiente ou a um ou mais de seus componentes.
A própria definição de meio ambiente contida na PNMA é ampla, “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”, e, certamente, dificulta uma compreensão jurídica adequada para a sua recuperação, quando for o caso. Acresce que, nos termos do artigo 2º, I da PNMA, o meio ambiente é tido como “bem público”.
O dano ambiental, pragmaticamente, pode ser definido como uma alteração adversa das condições ambientais vigentes em determinado momento. Todavia, é necessário considerar que o dano ambiental pode ser dividido em dois grandes blocos, sendo o (1) primeiro constituído pelos danos aos recursos naturais em si mesmos, água, flora, fauna etc, ou danos ambientais próprios (ecológicos) e o segundo (2) bloco constituído pelos danos causados a outros bens jurídicos tutelados, tais como, à saúde humana e animal, às propriedades, bens e atividade econômica, os danos ambientais impróprios.
Há consenso que em relação aos danos ambientais impróprios não se discute a incidência da prescrição: “Em matéria de prescrição cumpre distinguir qual o bem jurídico tutelado: se eminentemente privado seguem-se os prazos normais das ações indenizatórias”.[16] A controvérsia é relativa a prescrição da reparação dos danos ecológicos.
5 – Bens públicos e prescrição
A complexidade do tema ambiental, muitas vezes, tem induzido a adoção de soluções simplistas, como se a ordem jurídica e seus institutos fundamentais tivessem que ceder passo à proteção ambiental, sem observância estrita dos regramentos jurídicos. Em matéria de prescrição isto é evidente.
O artigo 20 da Constituição Federal estabelece uma extensa relação de bens públicos federais, dentre os quais, muitos estão incluídos no conceito amplíssimo de bens ambientais. Destacaremos os seguintes: (1) as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei; (2) os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais; (3) as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as praias marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as que contenham a sede de Municípios, exceto aquelas áreas afetadas ao serviço público e a unidade ambiental federal, e as referidas no art. 26, II; (4) os recursos naturais da plataforma continental e da zona econômica exclusiva; (5) o mar territorial; (6) os terrenos de marinha e seus acrescidos; (7) os potenciais de energia hidráulica; (8) os recursos minerais, inclusive os do subsolo; (9) as cavidades naturais subterrâneas e os sítios arqueológicos e pré-históricos; (10) as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.
Os Estados e o Distrito federal, por sua vez, têm os bens de sua propriedade arrolados no artigo 26 da Constituição Federal, neles incluindo-se, dentre outros: (1) as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União; (2) as áreas, nas ilhas oceânicas e costeiras, que estiverem no seu domínio, excluídas aquelas sob domínio da União, Municípios ou terceiros; (3) as ilhas fluviais e lacustres não pertencentes à União e (4) as terras devolutas não compreendidas entre as da União.
Todos os bens acima arrolados são públicos (artigo 98 do Código Civil Brasileiro – CCB). Os bens públicos, como se sabe, podem ser (1) de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças; (2) de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias ou (3) dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades.
O artigo 20 não trata da prescrição aplicável a tais bens, todavia, merece menção que o § 4º do artigo 231 da mesma Constituição, expressamente, afirma que “[a]s terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.” Não é necessário grande esforço interpretativo para que se perceba que a prescrição incide sobre os demais bens públicos federais arrolados no artigo 20 da Lei Fundamental. No particular, convém observar que, tal como indicado no item 2 deste artigo, a prescrição se divide em (1) aquisitiva e (2) extintiva de direitos.
No que tange à prescrição aquisitiva, o § 3º do artigo 183, expressamente, afasta a incidência da usucapião sobre os bens públicos, norma reafirmada pelo Parágrafo único do artigo 191[17]. Obviamente, não há, no Texto Constitucional, qualquer menção expressa à não incidência da prescrição extintiva de direitos. Não sendo lícito que se presuma a sua existência, pois é princípio elementar de Direito que as exceções devem ser expressas e não presumidas. A não sujeição dos bens imóveis da União, “seja qual for a sua natureza” ao regime jurídico da usucapião é matéria antiga, tendo sido prevista no artigo 200 do Decreto-lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946 e, ainda, em outras normas precedentes[18].
A prescrição no regime geral do CCB ocorre em 10 (dez) anos, salvo estipulação legal em contrário. No caso dos danos ambientais impróprios, o prazo prescricional aplicável é o constante do §3º, V artigo 206 do CCB. Na hipótese dos danos ambientais próprios (danos ecológicos) nos quais o bem lesado seja público, tal como cursos d`água, unidades de conservação, mar etc, o prazo prescricional aplicável é de 5 (cinco) anos, conforme estabelecido pelo artigo 1º do Decreto 20.910/1932. Em sendo o bem privado, a prescrição aplicável é a mesma relativa aos danos ambientais impróprios, quando se tratar de ressarcimento de danos ou recuperação.
6 – Ações Civis Públicas
As ações civis públicas, assim como as ações populares podem ser manejadas para a defesa dos interesses difusos, com destaque para a defesa do meio ambiente, conforme determinação constitucional[19]. Veja-se, entretanto, que, mesmo em defesa do meio ambiente, o artigo 21 da Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965 (Lei da Ação Popular – LAP) estabelece que “[a] ação prevista nesta lei prescreve em 5 (cinco) anos.” Esta compreensão decorre do fato de que “[a] Ação Civil Pública e a Ação Popular compõem um microssistema de tutela dos direitos difusos, por isso que, não havendo previsão de prazo prescricional para a propositura da Ação Civil Pública, recomenda-se a aplicação, por analogia, do prazo quinquenal previsto no art. 21 da Lei n. 4.717/65” [20] Em consonância com tal decisão, “Na falta de dispositivo legal específico para a ação civil pública, aplica-se, por analogia, o prazo de prescrição da ação popular, que é o quinquenal (art. 21 da Lei nº 4.717/1965), adotando-se também tal lapso na respectiva execução, a teor da Súmula nº 150/STF. A lacuna da Lei nº 7.347/1985 é melhor suprida (sic) com a aplicação de outra legislação também integrante do microssistema de proteção dos interesses transindividuais, como os coletivos e difusos, a afastar os prazos do Código Civil, mesmo na tutela de direitos individuais homogêneos (pretensão de reembolso dos usuários de plano de saúde que foram obrigados a custear lentes intraoculares para a realização de cirurgias de catarata)”Precedentes. (REsp 1473846/SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas CUEVA, 3ª TURMA, julgado em 21/2/2017, DJe 24/2/2017).[21]Um dos argumentos recorrentes em defesa da perenidade das ações civis públicas ambientais é que a poluição persiste por muitos anos e que, em tal condição, estar-se-ia atribuindo uma carta branca ao “direito de poluir”. O argumento é frágil. De fato, se a poluição persiste ao longo dos anos, do ponto de vista da prescrição, isto é irrelevante. Em primeiro lugar, tem-se que a poluição que se prolonga no tempo é, claramente, um ilícito continuado e, portanto, a lesão ao direito se renova diariamente, impedindo o início a contagem do prazo prescricional. Assim, não há dúvida da possibilidade do ajuizamento de ACP com vistas a cessação da atividade e, igualmente, para a recuperação dos danos causados. Entretanto, faz-se necessário lembra que recuperação, em termos jurídicos, não se confunde com retorno ao status quo ante, pois é a “restituição de um ecossistema ou de uma população silvestre degradada a uma condição não degradada, que pode ser diferente de sua condição original”. (Lei nº 9.985/2000, artigo 2º, XIII).Por outro lado, há casos em que a área poluída, em decorrência da passagem do tempo se torna inerte e, portanto, incapaz de produzir alterações adversas no ambiente. Qualquer ação que viesse a ser proposta na hipótese de recuperar a área, então inerte, seria fadada ao insucesso por falta de interesse de agir.
7 – Modelos argentino e chileno
Como já foi visto, na Argentina, a lei não prevê expressamente os prazos de prescrição para os danos ambientais, bem como para a ação com vistas a buscar a reparação judicial dos danos ambientais, situação idêntica à do Brasil. Na Argentina a matéria de prescrição de ações e danos ambientais tem sido tratada de forma menos “criativa” do que no Brasil. Com efeito, o Código Civil e Comercial unificado[22], no Livro Sexto estabelece as normas gerais de prescrição e decadência aplicáveis aos direitos reais e pessoais, conforme o artigo 2532, tais normas são aplicáveis na ausência de disposições específicas, como é o caso da ação de reparação de danos ao meio ambiente.
O artigo 2560 estabelece um prazo genérico de 5 (cinco) anos para a prescrição, caso não haja disposição legal em sentido contrário. Conforme o disposto no artigo 2561, as ações indenizatórias de danos derivados de responsabilidade civil prescrevem em 3 (três) anos; já no prazo de 2 (dois) anos prescreve a ação de responsabilidade civil decorrentes de danos de natureza extracontratual.
É importante observar que a imprescritibilidade, tal como concebida na Argentina, exige duas condições: a (1) primeira que o dano seja atual, muito embora tenha se iniciado no passado. Em tal circunstância, parece claro que há uma renovação diária da lesão, não tendo início a contagem do prazo prescricional; a segunda (2) hipótese diz respeito à possibilidade de que se exija que o dano não seja causado, ou a cessação de sua atualidade. Entendem, acertadamente, os tribunais que há uma obrigação constitucional de não causar dano ao ambiente e que ela é exigível a todo tempo. No Chile[23], onde já vimos que a ação para reparação de danos ambientais prescreve em 5 (cinco) anos, excepcionando a regra contida no artigo 2332[24] do Código Civil Chileno. Por outro lado, a Lei 19.330 estabelece em seu artigo 63 que o início da contagem do prazo prescricional se dá a partir da manifestação evidente do dano. O artigo, como se percebe, determina, portanto, que é a ciência do dano que dá início a fluência do aludido prazo, no caso dos danos continuados e evidentes, tal prazo se renova diariamente (CS, Rol 47890-2016, 2-03-2017).
8 – Jurisprudência criativa
O Recurso Extraordinário [RE] 654833 teve por origem o Resp. 1120117/AC[25], de cuja ementa podemos destacar: “O direito ao pedido de reparação de danos ambientais, dentro da logicidade hermenêutica, está protegido pelo manto da imprescritibilidade, por se tratar de direito inerente à vida, fundamental e essencial à afirmação dos povos, independentemente de não estar expresso em texto legal.” E mais: “O dano ambiental inclui-se dentre os direitos indisponíveis e como tal está dentre os poucos acobertados pelo manto da imprescritibilidade a ação que visa reparar o dano ambiental.” Desnecessário ressaltar que a própria decisão reconhece a inexistência de norma sobre a matéria, causando perplexidade. E mais: dano ambiental não é direito indisponível; a sua reparação, talvez seja.
A questão foi mal colocada. A discussão havida nos autos do processo não dizia respeito a danos ambientais abstratamente considerados, mas, isto sim, a danos ambientais causados em terras indígenas, devido à extração ilegal de madeira. Neste ponto, vale a pena reproduzir o item 2.4 imprescritibilidade do dano ambiental, contido no voto da ilustre Ministra Eliana Calmon:
“2.4. Imprescritibilidade do dano ambiental[26]
Diante desse arcabouço jurídico, resta definirmos qual o prazo prescricional aplicável aos casos em que se busca a reparação do dano ambiental. Sabemos que a regra é a prescrição, e que o seu afastamento deve apoiar-se em previsão legal. É o caso da imprescritibilidade de ações de reparação dos danos causados ao patrimônio público, regra prevista na Constituição Federal de 1988, no art. 37, § 5º.Entretanto, o direito ao pedido de reparação de danos ambientais, dentro da logicidade hermenêutica, também está protegido pelo manto da imprescritibilidade, por se tratar de direito inerente à vida, fundamental e essencial a afirmação dos povos, independentemente de estar expresso ou não em texto legal.”
Não é difícil perceber que toda a argumentação acima não tem por base uma única norma jurídica. A imprescritibilidade, no caso, não está amparada por um suposto direito à vida, como criativamente, o voto trata a questão. Por se cuidar de danos ambientais em terras indígenas, a resposta jurídica para a questão é muito mais simples: O § 4º do artigo 231 da Constituição Federal estabelece a imprescritibilidade dos direitos sobre as terras indígenas. Cuida-se, evidentemente, de um regime jurídico especial que não se confunde com o regime geral aplicável aos danos ambientais fora de terras indígenas. A argumentação da decisão, no entanto, parte para províncias distantes do caso concreto. Salvo engano, o § 4º do artigo 231 da CF não é citado uma única vez. Sustenta-se uma imprescritibilidade genérica dos danos ambientais com base em que os danos são futuros, atingem direitos fundamentais, o que não possui substrato jurídico relevante.
9 – Ação civil pública legitimidade e inércia
A prescrição extintiva decorre da inércia do titular do direito subjetivo tutelado em reivindicá-lo. No caso concreto da defesa do meio ambiente, não resta dúvida que, muito embora não se possa falar em titularidade do meio ambiente como conceito abstrato, parece claro que os bens, em grande parte são públicos e, portanto, submetidos ao regime jurídico administrativo. A lei da ACP possui um rol amplo de legitimados ativos, como disposto no artigo 5º: o (1) Ministério Público; a (2) Defensoria Pública; a (3) União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; a (4) autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; a (5) associação que, concomitantemente: a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil; b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. A isto deve ser acrescentado o fato que o Ministério Público tem intervenção obrigatória em todas as ACPs em que não atue como autor, seja como fiscal da lei, seja como substituto do autor, caso este abandone a ação. Acresce o fato que na ACP não há custas, nem honorários de advogado, salvo comprovada má-fé. Ou seja, não há um desincentivo às chamadas demandas frívolas. Sabemos que a comprovação de má-fé dos demandantes é matéria complexa e, nem sempre, bem aceita pelo Judiciário.
A inexistência de um regime prescricional claro diante de tal gama de legitimados para a propositura de ACPs ambientais é uma ameaça constante ao cidadão, sobretudo se nos lembramos que o direito de ação é abstrato, existindo “mesmo que seu titular não tenha, efetivamente, o direito material alegado”. (CÂMARA, 2015, p. 35).
Diante do vastíssimo leque de legitimados, parece pouco crível que todos se quedem inertes diante de um dano ambiental consumado ou mesmo tentado. Logo, a tese da imprescritibilidade da ACP é, de fato, um prêmio à inércia de milhares de legitimados legalmente admitidos, em prejuízo do particular e da necessária segurança jurídica em uma ordem jurídica democrática. E mais, como advertira José Carlos Barbosa Moreira (1984, p 180), antes mesmo da existência da Lei nº 7.347/1985, existem perigos inerentes à ampliação das possibilidades de inciativa, “é imprescindível estabelecer restrições e cominações que desestimulem as demandas temerárias, brotadas da mera emulação ou do propósito de arrancar concessões e benesses pessoais.”
Referências bibliográficas
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BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A Proteção Jurídica dos Interesses Difusos, in, Temas de Direito Processual – Terceira Série. São Paulo: Saraiva. Pp 173-181. 1984
CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. São Paulo: Atlas. 2015
LARENZ, Karl. Derecho Justo – Fundamentos de Ética Jurídica. (tradución Luíz Diez-Picazo). Madrid: Editorial Civitas. 1985
MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense. Volume I, 10ª edição. 1997.
OST, François. O tempo do Direito (tradução de Élcio Fernandes). Bauru: EDUSC. 2005
SAN TIAGO DANTAS, Francisco Clementino. Programa de Direito Civil – aulas proferidas na Faculdade Nacional de Direito (1942-1945). Parte Geral. Rio de Janeiro: Editora Rio. 4ª Tiragem. 1979
SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de Direito Civil – Introdução, Parte Geral e Teoria dos Negócios Jurídicos. Volume I. Rio de Janeiro: Freitas Bastos. 8ª Edição. 1996.
[1] Disponível em: < http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4130104 > Acesso em: 19/03/2020
[2] 21/04/2020
[3] Reconhecida a Repercussão Geral pelo Supremo Tribunal Federal. Disponível em: < http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4130104 > Acesso em: 18/03/2020. Vale observar que a decisão recorrida do STJ é de 2009, só sendo decidida em abril de 2020.
[4] Disponível em: < http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/75000-79999/79980/norma.htm > Acesso em: 09/03/2020
[5] Disponível em: < https://www.conaf.cl/wp-content/files_mf/1370463346Ley19300.pdf > Acesso em: 08/03/2020
[6] Disponível em < http://www.ordenjuridico.gob.mx/Documentos/Federal/html/wo83191.html > Acesso em: 17/03/2020
[7]Disponível em: < https://beta.panamaemprende.gob.pa/descargas/ley%2041%20de%201998%20-%20AMBIENTE.pdf > Acesso em: 17/03/2020
[8] Disponível em: < https://www.ambiente.gob.ec/wp-content/uploads/downloads/2018/01/CODIGO_ORGANICO_AMBIENTE.pdf > Acesso em: 08/03/3020
[9] Disponível em: < https://dre.pt/pesquisa/-/search/454822/details/maximized > Acesso em 09/03/2020
[10]Disponível em: < https://www.legifrance.gouv.fr/affichCodeArticle.do?cidTexte=LEGITEXT000006074220&idArticle=LEGIARTI000033033531 > Acesso em: 09/03/2020
[11] Supremo Tribunal Federal. A inconstitucionalidade da lei estadual que viole dispositivo constitucional e contrarie pacífica jurisprudência do Supremo Tribunal Federal deve ser também considerada à luz da excepcionalidade proveniente da situação fática e da omissão do legislador federal em regulamentar o dispositivo constitucional por meio de lei complementar. A decisão do Supremo Tribunal Federal deve levar em conta a força normativa dos fatos e ponderar entre o princípio da nulidade da lei inconstitucional e o princípio da segurança jurídica. Dessa forma, a lei pode ser julgada inconstitucional, sem declaração de nulidade por certo período de tempo, até que o legislador emende a legislação de acordo com as exigências constitucionais, conforme regulamentadas em lei complementar a ser editada em nível federal.
Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.240 – Diário da Justiça – 3/8/2007. Disponível em: < http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/verConteudo.php?sigla=portalStfJurisprudencia_pt_br&idConteudo=184812 > Acesso em: 17/03/2020
[12] Supremo Tribunal Federal. RE 852475 ED / SP. Relator: Ministro Edson FACHIN
Julgamento: 25/10/2019. Pleno. DJe-245, publicação 11-11-2019
[13] Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981
[14]Disponível em <http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/75000-79999/79980/norma.htm > Acesso em 17/03/2020
[15] Disponível em: < https://www.leychile.cl/Navegar?idNorma=30667 > Acesso em: 17/03/2020
[16] Superior Tribunal de Justiça. REsp 1120117/AC, Rel. Ministra Eliana CALMON, 2ª TURMA, julgado em 10/11/2009, DJe 19/11/2009.
[17] Supremo Tribunal Federal. Súmula 340 Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião.
[18] O Código Civil, em seu artigo 102 estabelece que os bens públicos não estão sujeitos a usucapião.
[19] Artigo 5º – LXXIII – qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.
[20] Superior Tribunal de Justiça. REsp 1070896/SC, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 2ª Seção, J. 14/04/2010, DJe 04/08/2010
[21] Superior Tribunal de Justiça. AgInt no REsp 1780768 / SP, Relatora Ministra Maria Isabel GALLOTTI, 4ª Turma, Julgamento 06/08/2019
[22] Disponível em < http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/235000-239999/235975/norma.htm#48 > Acesso em: 17/03/2020
[23] Vergara, José Illanes “¿Es imprescriptible el daño ambiental? Disponível em: < http://www.derecho.uchile.cl/centro-de-derecho-ambiental/columnas-de-opinion/tribuna-de-ayudantes-jose-i-es-imprescriptible-el-dano-ambiental.html > Acesso em: 09/03/2020
[24] Art. 2332. Las acciones que concede este título por daño o dolo, prescriben en cuatro años contados desde la perpetración del acto. Disponível em: < https://www.leychile.cl/Navegar?idNorma=172986 > Aceso em: 11/03/2020
[25] Reconhecida a Repercussão Geral pelo Supremo Tribunal Federal. Disponível em: < http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4130104 > Acesso em: 18/03/2020. Vale observar que a decisão recorrida do STJ é de 2009 e, em março de 20020, a matéria ainda não foi decidida.
[26] Disponível em: < https://ww2.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista/REJ.cgi/ITA?seq=927512&tipo=0&nreg=200900740337&SeqCgrmaSessao=&CodOrgaoJgdr=&dt=20091119&formato=PDF&salvar=false > Acesso em: 17/03/2020
*Paulo Bessa Antunes – Mestre e Doutor em Direito. Líder de Pesquisa Acadêmica cadastrada no CNPq. Visiting Scholar de Lewis and Clark College, Portland, Oregon. Professor adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Procurador regional da República (aposentado). Foi Presidente da Comissão Permanente de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros. Ex-chefe da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado do Meio Ambiente do Estado do Rio de Janeiro. Sócio da prática de Direito Ambiental do Tauil & Chequer Advogados, advogado e parecerista em Direito Ambiental. Autor de diversos livros e artigos sobre Direito Ambiental.
Fonte: GenJuridico
Publicação Ambiente Legal, 28/04/2020
Edição: Ana A. Alencar
Interessante a decisão do STF, considerando que:
a) O próprio meio ambiente é um conceito abstrato e pode variar, sob o aspecto físico em função de sua região, e sob o aspecto de sua percepção, em função da cultura de quem o vê e o sente (apesar das definições da CF na Lei 6938/81).
b) Desconheço uma definição legal para o dano ambiental, apesar da “degradação ambiental” ser definida na Lei 6.938/1981 (Art 3), Resolução do CONAMA 001/81 e NBRISO14001 (req. 3.4.1).
Quando se fala em responsabilização e reparação do dano ambiental, usualmente o direito busca estabelecer, conceitualmente, que é a falta de equilíbrio, alteração da condição inicial de qualidade da área, sem, no entanto, estar definido em lei.
Então como algo não definido na forma de lei, subjetivo e variável pode não prescrever?
Assim, poderão ser responsabilizados os proprietários das indústrias de Cubatão, apenas por estarem em área de mangue da baixada santista (sua localização em sí é um dano para o meio ambiente local)?
Qualquer alteração em relação as condições existentes na época de Cabral poderá ser considerada dano ambiental em vigor e assim, criminalizada?