Por Marco Aurélio Arrais
A tropa goiana que ia participar da II guerra, na Europa, saiu de Goiás num trem de ferro, que foi para São Paulo. O soldado Arrais, meu pai, nunca havia feito uma viagem tão comprida. Pensava que, montado numa máquina veloz como aquela, que varava dias e noites apitando e vomitando fogo, atravessaria o Brasil todo em uns três dias.
No fim de uma semana todos estavam cansados, pois as acomodações eram péssimas, a comida horrível, e o tratamento o pior do mundo. Foram parar em Iguape, no litoral de São Paulo. Lá foram incorporados no Sexto Regimento de Infantaria, que era sediado em Caçapava. Como a comida servida à tropa era muito ruim, os soldados reforçavam a alimentação com as bananas retiradas das plantações que existiam nas redondezas, além de pescarem no mar, uma novidade para eles. Quando chegaram havia na cidade, um lago cheio de patos e marrecos. Quando partiram, tinham comido todos eles.
Na travessia do Atlântico, meu pai descobriu no mesmo navio em que estava, um seu irmão mais velho, que há muito se mudara para o Rio de Janeiro. Era sargento, e a ele se apresentou com todas as formalidades. O irmão então disse que ele não devia estar ali, pois o governo brasileiro não convocava mais que um soldado de cada família. Mas era tarde para isso. Despediu-se do irmão, e foram se encontrar no Brasil, anos após o fim da guerra.
Recebeu treinamento para destruir casamatas e ninhos de metralhadora do inimigo, lançando granadas que eram disparadas da boca do fuzil, o que fez diversas vezes, enfrentando as rajadas da temida metralhadora alemã MG-42.
Quando era convocado para destruir tais bases, virava caça do inimigo, que varria o terreno com milhares de balas, tentando matar aquele que pretendia destruí-los.
Devido à sua formação religiosa, teve durante toda a vida grande medo da morte. Não dela em si, mas da cobrança que lhe seria fatalmente feita por Deus Todo Poderoso. Tinha matado, e Deus condenava. O pior é que tinha matado muitos, pois em cada posto inimigo que destruiu havia, no mínimo, três soldados alemães. Segundo ele, tentou fazer as contas, mas parou quando passou de uma centena. Só depois de velho, ao conversarmos, aceitou a ideia de um Deus mais piedoso, que não iria castigar os malfeitos de um menino com pouco mais de vinte anos, que obedecia a alguns graduados mais velhos.
Escapou da morte muitas vezes, mas a pior delas foi quando, juntamente com mais quatro companheiros, estava em um buraco lamacento na linha de frente. Diante deles, a uns trezentos metros, a única fonte de água daquela zona. Sabiam que, mais cedo ou mais tarde, algum soldado alemão teria, forçosamente, de buscar água. Alta madrugada, ouviram um barulho abafado. Do meio da vegetação rala e destruída pelas bombas, surgem três soldados, cada um com uma penca de cantis vazios. Não podiam aprisiona-los, pois não havia como conduzi-los à retaguarda. Também não podiam deixar que levassem os cantis cheios. Esperaram que enchessem todos os cantis, e com uma rajada de metralhadora, foram liquidados. Já era manhã alta, quando a água deles acabou. Bastava apanhar os cantis cheios dos alemães mortos. Tiraram a sorte, e a responsabilidade caiu nos ombros do goiano. Com o coração cheio de medo, rastejou pelo solo enlameado até a beira da aguada. Das mãos crispadas dos cadáveres, resgatou os cantis. Viu naqueles olhos sem vida o pavor da morte. Eram um soldado velho de uns cinquenta anos, um outro que aparentava ter sua idade, e um adolescente fardado, que não devia ter dezessete.
Rastejando de volta, ouviu o assovio de uma granada de morteiro inimiga que caia. Fechou os molhos, e esperou a morte. Os alemães não costumavam errar o alvo. A explosão soou abafada, surda. Levantou-se, e correndo como um desesperado, saltou para dentro da trincheira, onde estavam seus amigos. Lá, pregados nas paredes de terra as vísceras, miolos, braços, pernas, tudo encharcado de sangue e queimado pela explosão. Era o que restava dos outros.
No fim do dia os soldados que vieram rendê-los, encontraram-no em estado de choque, abraçando um punhado de cantis alemães.
Junto com outros soldados levou uma repreensão, certa vez. Numa patrulha de rotina, prenderam seis alemães. Os seis, de longe, gritaram “No Kaputt”, e se entregaram. Estavam sujos, com frio, as fardas em farrapos e as botas em pedaços. Depuseram as armas, e através de sinais, pediam comida, levando as mãos à boca.
Não tiveram dúvida.
Abriram as mochilas e dividiram com eles a ração de cada um.
Tinham uns pedações de pão duro, de vários dias. Os alemães comeram o pão, que de tão duro feriu suas gengivas. Os inimigos, jovens soldados como eles choravam, se abraçavam e riam nervosamente. Deram aos alemães cigarros e os conduziram à retaguarda. Quando chegaram, estava lá um oficial do exército dos Estados Unidos, que ao vê-los chegando amparando um dos prisioneiros que caminhava com dificuldade, ficou muito bravo. Segundo meu pai, deu-lhes uma bronca danada em inglês, que não serviu para nada. Ficou mais furioso ainda, quando um dos alemães, um sargento, fez questão de abraça-los, talvez agradecendo pela vida poupada. Mais tarde, o capitão brasileiro disse que o gringo havia deixado instruções de não alimentar o inimigo, não o tratar com bondade, senão quando fosse interrogado, já estaria alimentado e com a moral restabelecida.
Outra coisa que deixava os gringos injuriados, era quando dividiam a comida das marmitas com as crianças italianas. Aprenderam a encher as marmitas até quase derramarem, apenas para poderem alimentar as crianças magras e tristes que ficavam assistindo a tropa comer. Mas o próprio rancho do exército brasileiro, toda manhã, fazia grandes caldeirões de mingau e distribuía à população. Era a alegria das jovens mães, que podiam alimentar os nenéns, das crianças e dos velhos desamparados, cujos filhos haviam morrido em campos de luta distantes.
Meu velho pai faleceu em 2010, com oitenta e nove anos. Guardo comigo sua Medalha de Campanha, e os diplomas desta condecoração e da incorporação na Força Expedicionária Brasileira, além de uma outra condecoração que lhe deu a Maçonaria.
A coisa mais triste é o esquecimento que esses veteranos de guerra sofreram. Os muitos governos do pós-guerra os desprezaram. Antes, quando morria um desses velhos combatentes, o exército brasileiro mandava uma guarda de honra para o sepultamento. No governo do Lula foi proibida essa pequena homenagem. Para o governo, não deve compensar a despesa de deslocar pessoal, para homenagear velhos soldados sem importância. As escolas não ensinam às gerações mais novas, a história da participação do Brasil na II Guerra. Muitas vezes, durante os desfiles de Sete de Setembro, ouvi jovens alienados perguntarem, jocosamente, quem eram aqueles velhos com medalhas no peito, vestidos com ternos surrados e fora de moda. Muitos morreram mergulhados na miséria, afogados no álcool, nos hospícios ou nas enfermarias esquecidas dos poucos hospitais públicos, espalhados pelo Brasil.
Muitas vezes eram apontados nas ruas como alienados mentais. Nunca tiveram qualquer assistência. Somente agora, no início deste século XXI, lembraram de dar uma pensão aos poucos sobreviventes. Meu pai dispensou-a. Já estava aposentado. Disse que esse dinheiro havia chegado muito tarde para a grande maioria deles, que morreram muitas vezes à míngua, sem esperança. Hoje, sobrevivem alguns poucos, que não devem chegar a uma centena, e que como seus camaradas, levarão para o túmulo uma história de glória e de honra, que não será aprendida por essas gerações de jovens que farão (?) o Brasil do amanhã. Triste povo sem memória!
Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”.
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Linda narrativa! Habilmente condensou e partilhou o mais precioso de toda uma longa experiência passada na Itália – meu avô serviu no 6ºRI como telegrafista e assim teve a sorte de ficar no Ministério da Guerra mas três amigos dele, que o meu pai se recorda por serem simpáticos com ele – ficaram mortos na Itália e as sequelas de guerra de um quarto levaram-no a morte pelo alcoolismo. Eu cheguei a conhecer um outro pracinha em situação quase que de rua… Nos anos 1970… Enquanto morava no Rio eu tinha o hábito (aprendido com meu pai) de visitar a cripta do Mausoléu para orar por eles… Anos atrás visitei um portal onde há as fotos deles – preservados em sua juventude imolada – hoje como o autor relata com exatidão, a falta de reconhecimento desses heróis anônimos e comuns alcançou um nível inimaginavel enquanto nos demais países cada veterano permanece celebrado como um exemplo cívico… parece mais um caso pensado para construir uma cidadania medíocre que é capaz de torrar fortunas em eventos de retorno duvidoso mas não se interessa em reforçar a memória da fibra de nosso povo, alicerce necessário para a conquista das liberdades democráticas e justiça social!
Belo testemunho sobre o heroísmo de seu pai é sobre a gloriosa FEB.