Medida muda o rumo do debate na Política Nacional de Resíduos Sólidos
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
O Estado de Minas Gerais dá um passo corajoso, porém sectário, à frente dos demais estados brasileiros e define parâmetros na sua cadeia de gestão dos resíduos sólidos: irá banir a incineração no seu território.
Assembleia Legislativa mineira aprovou medida em reunião extraordinária
Não foi uma atitude gratuita
Reagindo ao forte lobby de certas RAPOSAS que infestaram o setor de incineração no país – e acabaram por estigmatizar a rota tecnológica do mass burning, a Assembleia Legislativa de Minas Gerais aprovou, em primeira instância de votação, o Projeto de Lei (PL) 4.051/13, que proíbe o uso da tecnologia de incineração no processo de destinação final dos resíduos sólidos urbanos, durante a Reunião Extraordinária de Plenário do dia 25/06/14.
O projeto, de autoria dos deputados Dinis Pinheiro (PP) e André Quintão (PT), foi aprovado na forma do substitutivo nº 1, da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Ele foca a cadeia de gestão e gerenciamento dos resíduos sólidos urbanos, oriundos do sistema de coleta do serviço público de limpeza urbana.
A proibição também se aplica aos concessionários dos serviços públicos que promovam o aproveitamento energético a partir da incineração de resíduos sólidos urbanos oriundos da coleta convencional e, altera a Lei 18.031, de 2009, que dispõe sobre a Política Estadual de Resíduos Sólidos.
O PL 4.051/13 foi aprovado com a emenda nº 1, apresentada pela Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. Essa emenda tem o objetivo de permitir o uso da tecnologia de coprocessamento em fornos de fábricas de cimento.
Catadores – atividade diretamente atingida pela incineração
Pressão dos catadores
A decisão da ALMG, deve-se aos vários ciclos de debates ocorridos em 2013, com as lideranças dos movimentos de catadores de recicláveis, que reivindicaram a proibição da incineração do lixo como forma de garantir a continuidade do trabalho de milhares de pessoas e da nascente indústria de materiais recicláveis.
Há hoje todo um ciclo econômico que retira sustento dessa atividade, ao mesmo tempo que contribui para a preservação do meio ambiente. O problema é que no planejamento de empreendimentos de incineração, a questão tem sido sistematicamente ignorada.
De fato a Lei Federal 12.305 de 2010, que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS, dispõe, na gestão e gerenciamento de resíduos sólidos, de forma expressa, a observância da seguinte ordem de prioridade: “não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos” (art. 9º).
Incineração consome material reciclado
A lei federal também dispõe, de forma restrita, que “poderão ser utilizadas tecnologias visando à recuperação energética dos resíduos sólidos urbanos, desde que tenha sido comprovada sua viabilidade técnica e ambiental e com a implantação de programa de monitoramento de emissão de gases tóxicos aprovado pelo órgão ambiental” (parágrafo 1º do art. 9º).
Há, assim, no próprio marco legal, embutido uma mensagem, um reconhecimento oficial que a incineração pode afetar negativamente a cadeia econômica que prioriza o reaproveitamento e a reciclagem. Há também uma preocupação expressa em relação aos danos à saúde da população do entorno dos incineradores, devido à emissão de furanos e organoclorados característicos do processo de incineração de material de uso doméstico e comercial (plástico, PVC, carcaças e demais resíduos orgânicos).
Durante um os debates públicos sobre incineração, desenvolvidos no ano de 2013, a procuradora do Trabalho, Margaret Matos de Carvalho afirmou que “a incineração é um desastre dos pontos de vista social, ambiental e econômico”, pois, segundo ela, “o que queima não é rejeito, mais sim material reciclável”.
Sobra preconceito, falta advocacy
Por óbvio que todas essas questões possuem fórmulas consagradas de equacionamento. No entanto, o lobby até agora exercido pelos que querem introduzir (ou melhor, reintroduzir) a tecnologia de incineração, não produz um único material buscando identificar os pontos controversos do conflito, terminando por acirrá-lo.
Na verdade, todo o debate em torno da questão está invertido. Nem a Lei Federal, nem quem lida com gestão ambiental de forma séria, exclui a incineração como forma de destinação avançada dos resíduos sólidos, com aproveitamento energético.
O problema é a arrogância, no campo político e social. O problema é a escala, o balanço de massa e o balanço de energia, no campo econômico.
No Brasil, absolutamente assimétrico e pleno de municípios minúsculos com núcleos urbanos distantes, a incineração do lixo urbano não adquire escala econômica de viabilidade no território se não inverter a cadeia de gestão e abocanhar o material reciclável, considerado, nos termos da PNRS um “bem público”.
Assim, é preciso evitar a fórmula consagrada de buscar municípios “menores” para instalar sistemas “maiores” – com claro interesse de regionalizar o serviço. Se a fórmula é utilizada para os aterros sanitários, não se presta a ser adotada para o aproveitamento energético dos resíduos urbanos – ainda que coligados a um aterro.
Esse conflito tem sido observado nos estados onde a incineração tem buscado ganhar espaço, por meio da iniciativa privada. Há muita confusão de papéis, pressas que levantam reações e pouca ação visando conferir transparência às iniciativas.
No caso das concessões, a adoção do sistema sem um balanço de massa e um planejamento de fluxo de materiais – inserido em um plano estratégico de gestão integrada de resíduos, revela um verdadeiro contrassenso. Há quem diga que a concessionária prejudicaria os projetos de inclusão do trabalho dos catadores de recicláveis e desmotivaria a coleta seletiva, por necessitar do mesmo material como insumo da sua atividade de processamento térmico.
O lobby das raposas da incineração é perigoso
Os estados de São Paulo e Rio de Janeiro sediaram flertes de toda ordem com a incineração nos últimos anos – ao mesmo tempo em que nestes mesmos estados observou-se leniência na implementação da Política de Resíduos, em todas as esferas. E esse descaso duplo dos gestores públicos – com a falta de planejamento integrado e o desleixo para com o impacto social da economia circular – destrói objetivamente a rota tecnológica do aproveitamento energético em larga escala.
São históricas as tentativas do Governo de Paulo Maluf, nos anos 1990, de instalar três mega-incineradores na capital paulista, visando o processamento de quase 5000 toneladas diárias de lixo urbano – projeto que resultou num conflito judicial envolvendo associações de bairro, entidades do comércio local, OAB, MP e parlamentares, e que terminou sem que os incineradores se viabilizassem.
A região do ABC, a Cidade de Barueri e o litoral norte paulista serão os próximos palcos desse tipo de conflito – provavelmente com final funesto para a incineração. Os conflitos ocorreram e irão ocorrer – não pela tecnologia em si mas, sim, pela extrema arrogância com que certas raposas do empresariado se comportam em relação ao planejamento urbano integrado, ao necessário diálogo com autoridades ambientais, quanto à satisfação prestada junto aos stakeholders e à forma nebulosa de relacionamento com governantes igualmente arrogantes no trato do assunto.
Não basta apresentar power points sofisticados com fórmulas e escalas promissoras, em ambientes refrigerados lotados de ternos de grife… se não se faz a lição de casa de propor – antes, uma política pública integrada, em caráter regional, articulando TODOS os atores envolvidos na questão.
No Rio de Janeiro, as raposinhas da incineração começaram a tentar se instalar no sistema público de gestão de resíduos urbanos – e a falta de transparência com que o processo ocorre deverá merecer especial atenção dos órgãos de controle ambiental e judiciário. O show de arrogância, ali, já se assemelha ao formato do grupo X, de Eike Batista – cujos resultados todos conhecemos. Chega a parecer que todo o esforço se faz no sentido de capitalizar o empreendimento para, depois, esborrachá-lo no labirinto dos impasses institucionais.
Falta planejamento integrado
O lobby está, na verdade, todo errado.
O incinerador é um sistema válido que alia a destinação do resíduo com a produção de energia, mas pressupõe a resolução dos conflitos sociais na cadeia de gestão, e uma carga forte de industrialização no processo de coleta e reciclagem.
De fato, deve haver mecanização e escala para se admitir a incineração. Se isso é verdadeiro, sair pelo território vendendo a incineração como se fosse um elixir, sem pensar em um plano diretor estratégico de gestão dos resíduos, é igual vender um motor… sem o veículo.
Vender a incineração, sem articular um projeto público que envolva regiões e consórcios intermunicipais, com solução industrial para a questão da reciclagem – é literalmente vender uma solução cara… que sairá muito caro também ao comprador.
É importante anotar as sutilezas.
O sistema de incineração parece ser adequado e é aceito sem oposição, em menor escala, quando o assunto é destinação final de solo contaminado por processos industriais, material fármaco – químico, resíduos de saúde, etc.
A discussão ocorre quando o assunto é a gestão dos resíduos domésticos. E isso tem um motivo: o incinerador, na ponta do sistema, arca com o preço da falta de iniciativa dos demais atores – encarregados da logística reversa.
A complexidade da questão é de ordem política, social e econômica – em especial no que tange à realização da chamada ECONOMIA CIRCULAR.
Acordos setoriais cosméticos, falta de engajamento dos municípios nos arranjos de logística reversa das embalagens e materiais recicláveis, absoluta ignorância dos entes públicos quanto a uma regulação que obrigue o setor produtivo a fazer um balanço de massa envolvendo os loopings dos materiais que utiliza… tudo isso acarreta no carreamento para a boca dos incineradores, de conflitos e problemas que não serão incinerados com o material carreado.
Minas Gerais, vingue ou não a iniciativa legislativa, ao que tudo indica, busca corrigir o rumo da hierarquia na cadeia de gestão, no que tange à reciclagem e tratamento adequado de resíduos – e o faz com base no somatório de preconceitos a respeito da tecnologia, desconhecendo que o sistema em que ela se insere é que constitui o problema.
Como se costuma dizer, o assunto é divino, pois “Deus recicla – o Diabo é que incinera”…
Até lá, os lobbies “do diabo” precisam humildemente traçar uma estratégia mais ampla, para além da venda de um equipamento quente que costuma por o município comprador “numa fria”…
Fontes:
http://www.cidadessustentaveis.org.br/noticias/aprovado-projeto-que-proibe-incineracao-do-lixo-no-estado-de-minas
http://www.almg.gov.br/acompanhe/noticias/arquivos/2014/06/25_aprovado_projeto_que_proibe_incineracao_do_lixo.html
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP) , sócio-diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Consultor ambiental, com consultorias prestadas ao Banco Mundial, IFC, PNUD, UNICRI, Caixa Econômica Federal, Ministério de Minas e Energia, Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência, DNIT, Governos Estaduais e municípios. É integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Grupo Técnico de Sustentabilidade e Gestão de Resíduos Sólidos da CNC e membro das Comissões de Direito Ambiental do IAB e de Infraestrutura da OAB/SP. Jornalista, é Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal, Editor da Revista Eletrônica DAZIBAO e editor do Blog The Eagle View.
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Dr. Antonio, seu texto está muito bem escrito!!! Parabéns! Minas acaba de votar na ALMG, nesta segunda, 15/12/2014, contra o veto do Governador, à proposição de lei que proibe a incineração de resíduos solidos urbanso no Estado. Minas à frente, fazendo história e dando exemplo para o Pais, na defesa do meio ambiente, do interesse e saúde dos cidadãos e das empresas e trabalhadores de toda a cadeia da reciclagem!!! Veja mais em http://www.almg.gov.br
MUito obrigado Sheila, pelo contato e informação. Já estamos providenciando artigo sobre a proibição definitiva da incineração de resíduos em Minas Gerais. Realmente é um grande passo e lição para todo o país !
Ana Alencar
Caro Dr. Antônio,
Meus cumprimentos pelo excelente resumo sobre o assunto. Também sou contra a incineração de resíduos sólidos urbanos, por todos os problemas apontados. Entretanto, tenho algumas dúvidas. No final do ano passado houve leilões para compra de energia oriundas de resíduos sólidos(incluindo urbanos), não havendo restrição de tecnologia ou tipo de resíduo. Que tecnologias seriam permitidas para esse tipo de geração de energia? Incineração remete a queima pura e simples. O processo de gasificação, após separação e retirada de recicláveis seria permitido ou estaria enquadrado em “incineração” também? Agradeço se o Sr. comentasse essas questões e me corrigisse, em caso de algum equívoco de minha parte.