Por Vladimir Passos de Freitas*
As mudanças climáticas, e com ela os desastres ambientais que delas decorrem, vieram para ficar. Os negacionistas resistiram até o último momento, firmes na crença de que acidentes naturais sempre ocorreram e, por isso, era um erro atribuir-lhes a participação dos humanos. Nem mesmo os 195 cientistas e os milhares de voluntários do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas), da ONU (Organização das Nações Unidas), foram suficientes para convencer os céticos.
O IPCC tem por fim valer-se do conhecimento de grandes especialistas para forjar conhecimentos sobre as bases físicas da mudança climática, que impactos elas podem gerar e o que fazer para evita-los ou, se isto não for possível, diminuí-los. O alerta pioneiro do IPCC foi dado em 1992, quando produziu o primeiro Relatório de Avaliação, expondo exatamente tudo o que poderia vir a ocorrer, ou seja, a elevação do nível do mar, aumento da temperatura, chuvas torrenciais e outros fenômenos.
No Brasil esta realidade se apresenta clara e com resultados assustadores. Para ficar apenas em um exemplo recente, temos as ocorrências do primeiro semestre deste ano no Rio Grande do Sul, onde 446 municípios declararam estado de emergência através de decretos e ao menos 18 pessoas morreram, quase 300 ficaram feridas e 57,5 mil foram desalojadas. [1]
A este tipo de ocorrência, de todos o mais comum, somam-se outros como a seca na Amazônia que já chega ao quinto mês. É verdade que a seca está ligada a um fato natural, ou seja o El Niño, que é um fenômeno natural caracterizado pelo aquecimento anormal das águas do oceano Pacífico na sua porção equatorial e que pode alterar a distribuição de umidade e a temperatura, com consequências em diversos continentes e ocasionando, no Brasil, “secas prolongas as regiões Norte e Nordeste e chuvas intensas e volumosas no Sul. [2] Porém, ainda que seja fenômeno natural, o aquecimento das águas por força das mudanças climáticas, por certo agrava a situação.
Outro fenômeno que vem se tornando comum é o da invasão do mar sobre parte da costa brasileira. As invasões vêm ocorrendo de forma contínua, gerando insegurança a moradores de diversos pontos da costa brasileira. Exemplos: em 2019, Atalaia Nove(SE)[3], em 2021, Maceió [4], em abril de 2023, Arraial do Cabo (RJ). [5]
Mudanças climáticas é tema da meteorologia, geografia. engenharia florestal, engenharia ambiental, oceanografia e estatística, os quais não são do conhecimento dos profissionais do Direito.
No âmbito normativo, a base está na Lei 12.187, de 2009, que trata da Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC). Referida lei não tem sanções administrativas e penais, o que a torna uma simples carta de boas intenções. Nos estados existem leis sobre a matéria (v.g., Paraná, Lei 17.133, de 2012) e também em alguns municípios (e.g., São Paulo, Lei 14.933, de 2009).
Este aparato legislativo, já relativamente antigo, não tem gerado efeitos mais significativos. E nem dá aos operadores jurídicos meios de posicionar-se diante do problema. Assim, tudo acaba se resumindo em reconhecer que mudanças climáticas existem, mas que o seu alcance e os seus efeitos são incertos. E tratar do incerto, evidentemente, não é tarefa fácil.
Diante deste quadro em formação, temos duas espécies de ações judiciais, as coletivas, manejadas pelo Ministério Público ou outros legitimados pelo artigo 5º da Lei da Ação Civil Pública, e as privadas, aquelas que tratam de danos ambientais individuais, propostas por vítimas.
A favor das ações coletivas climáticas, temos precedente do STF na ADP 708, julgada em 14 de julho de 2022, que proibiu o contingenciamento das receitas que integram o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (Fundo Clima) e determinou ao governo federal que adote as providências necessárias ao seu funcionamento, com a consequente destinação de recursos. O STF reconheceu, ainda, a omissão da União devido à não alocação integral das verbas do fundo referentes ao ano de 2019. [6]
No âmbito do STJ não foi julgado recurso específico em ação coletiva climática, porém examinando recursos em ações civis públicas de danos ambientais que podem influir, direta ou indiretamente nas mudanças climáticas, decidiu a Corte que: a) para construção de muros de contenção para casos de maré alta influindo no fluxo das ondas, o município não pode licenciar obra ou empreendimento que possa afetar, direta ou indiretamente, bem federal, no caso terreno de marinha, devendo dar ciência à União; [7] b) em caso de ação indenizatória por pesca predatória com danos aos recursos marinhos e corais, reconhece-se o dano moral coletivo, porque Máxime em época de mudanças climáticas, o Estado não pode e não deve cruzar os braços diante de ações e omissões que perturbem os corais, pois seria irracional e imoral abandoná-los – por ignorância, inércia ou ganância – em vácuo normativo, administrativo e judicial.[8]
Na primeira instância, a primeira ação ambiental climática foi proposta pelo Instituto de Estudos Amazônicos, ONG com sede em Curitiba, contra a União, distribuída para a 13ª Vara Federal (Ambiental) da capital paranaense, em 8/10/2020, processo nº 5048951-39.2020.4.04.7000/PR, na qual se pedem várias providências, como a da requerida fazer um Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm). Referida ação se encontra em fase de especificação de provas.
Há outras, contudo, como uma proposta em abril de 2021 pelo Ministério Público Federal na Justiça Federal do Amazonas (7ª Vara), reivindicando indenização pelo desmatamento de 2.488,56 hectares [9] e várias requeridas pela Advocacia Geral da União cobrando indenização por infração ambiental que resultou diretamente na emissão de gases do efeito estufa, sendo que em uma delas, proposta na Justiça Federal do Distrito Federal, o pedido envolve nada menos que R$ 292 milhões de reais. [10]
Mas a grande dificuldade destas ações é a quantificação do dano ambiental climático. Qual valor corresponde à retirada de certo número de árvores? E em se tratando de resíduos sólidos ou poluição do oceano?
O CNJ, no artigo 14 da Resolução 433, determinou que Na condenação por dano ambiental, o(a) magistrado(a) deverá considerar, entre outros parâmetros, o impacto desse dano na mudança climática global, os danos difusos a povos e comunidades atingidos e o efeito dissuasório às externalidades ambientais causadas pela atividade poluidora. [11] Fácil é ver a dificuldade que terão os juízes, tudo indicando que a regra será discretamente ignorada.
Wedy e Peres, em artigo nesta revista eletrônica, comentam a matéria demonstrando a insegurança atual na valoração e mostrando as diversas possibilidades oriundas das correntes econômicas da atualidade.[12]
No âmbito privado as ações são propostas na Justiça dos estados, sendo que nelas se discute, via de regra, o dever de indenização à vítima indireta do dano ambiental ou o cumprimento de um contrato.
Na jurisprudência encontram-se ações de consumidores de energia elétrica contra as concessionárias, porque se viram privados de usufruir tal serviço. No TJ do Rio Grande do Sul, em ação de autor pedindo dano moral porque se viu privado de energia por sete dias, foi rejeitada a tese de que o fato era imprevisível e ocorreu por causa de mudanças climáticas, decidindo a Corte que o fato era previsível e a empresa tinha a obrigação de adaptar-se a esta nova situação. [13]
O TJ de São Paulo, em caso de contrato de compra e venda no qual houve atraso na entrega do imóvel, rejeitou a tese de que isto ocorreu por conta das mudanças climáticas e excesso de chuvas, pois elas são previsíveis e inerentes à atividade que desempenha a ré, não podendo, assim, serem utilizadas como justificativas válidas de atraso na conclusão da obra não caracterizam caso fortuito ou força maior a afastar a responsabilidade da ré de entregar o imóvel na data avençada. [14]
Percebe-se com facilidade que as ações individuais, geralmente baseadas em dano moral, porque isto facilita sobremaneira a produção de provas, vão multiplicar-se indefinidamente. Preocupado com as consequências que disto podem advir, o STJ discute atualmente o Tema Repetitivo 1.158, no qual pretende dar ao juiz que vislumbre a ocorrência de litigância predatória, o poder de exigir que a parte autora emende a petição inicial com apresentação de documentos capazes de lastrear minimamente as pretensões deduzidas em juízo, como procuração atualizada, declaração de pobreza e de residência, cópias do contrato e dos extratos bancários.
Três aspectos anda merecem ser lembrados neste complexo tema:
a) O terreno de marinha, bem da União quando localizado na faixa de 33 metros contados da linha do preamar médio da maré cheia de 1881, acompanha o avanço do mar? Se positivo, passa a incluir propriedades outrora particulares? Como fica a situação do detentor do domínio útil do terreno de marinha coberto pelas águas? Extingue-se o aforamento?
b) O Ministério Público tende a ter gabinetes climáticos para munir-se de pesquisas, documentos, notícias, com isto podendo oferecer serviço de qualidade. O MP gaúcho já tomou a iniciativa.
c) Tramita no Congresso o PL 1.410, de 2022, deputada Tabata Amaral, que pretende criar um Seguro Obrigatório de Danos Pessoais e Materiais causados por desastres naturais relacionados a chuvas, com alíquotas mais elevadas em regiões mais vulneráveis a deslizamentos e inundações.
Como se vê, muitas serão as dificuldades e os desafios dos profissionais do Direito com as múltiplas questões que advirão das mudanças climáticas. A única forma de enfrentá-las é com equilíbrio e muito estudo, o que obrigatoriamente incluirá áreas interdisciplinares. Mãos à obra.
[1] GZA Ambiente. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/ambiente/noticia/2023/08/rs-teve-446-decretos-de-desastres-naturais-em-2023-maior-numero-em-sete-anos-clllf4bxk00em015krq2oqjl7.html.Acesso em 10 nov. 2023.
[2] UOL. El Nino. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/geografia/el-nino.htm. Acesso em 10 nov. 2023.
[3] Jornal da Cidade NET. Disponível em: https://www.jornaldacidade.net/cidades/2019/08/310802/mare-alta-destroi-orla-e-atinge-casas.html. Acesso em 10 nov. 2023.
[4] Tribuna Hoje.com. Disponível em: https://tribunahoje.com/noticias/cidades/2021/11/11/78904-mar-avanca-e-atinge-imoveis-no-litoral-norte-de-maceio. Acesso em 10 nov. 2023.
[5] G1 Região dos Lagos. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/regiao-dos-lagos/noticia/2023/04/03/mar-avanca-e-inunda-ruas-e-casas-durante-ressaca-em-arraial-do-cabo-rj-videos.ghtml. Acesso em 10 nov. 2023.
[6] STF. STF proíbe contingenciamento dos recursos do Fundo Clima. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=489997&ori=1. Acesso em 11 nov. 2023.
[7] STJ, AgInt no REsp n. 2.020.367/PE, Rel. Min. H. Benhamin, j. 12/6/2023.
[8] STJ, AgInt no REsp n. 2.020.367/PE, Rel. Min. H. Benhamin, j. 12/6/2023
[9] Ministério Público Federal. Ação Civil Pública. Disponível em: https://jusclima2030.jfrs.jus.br/wp-content/uploads/2021/05/Inicial-Acao-Civil-Publica-10058857820214013200-1.pdf. Acesso em 11 nov. 2023.
[10] G1 Política. AGU cobra R$ 292 milhões de infrator ambiental por danos climáticos na Amazônia; valor é recorde.
Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/09/11/agu-cobra-r-292-milhoes-de-infrator-ambiental-por-danos-climaticos-na-amazonia-valor-e-recorde.ghtml. Acesso em 11 nov. 2023.
[11] CNJ, Resolução 433. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original14041920211103618296e30894e.pdf. Acesso em 11 nov. 2023.
[12] WEDY, Gabriel. PERES, Ramiro. Debate no CNJ sobre dano climático: preços de offsets ou custo social do carbono? Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 28 out. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-out-28/debate-dano-climatico-precos-offsets-ou-custo-carbono/. Acesso em 11 nov. 2023.
[13] TJRS, Apelação Cível: AC 70085135291 SÃO SEPÉ. Jusbrasil. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-rs/1817579500. Acesso em 7 nov. 2023.
[14] TJSP, Apelação nº 1056534-72.2017.8.26.0576, 9ª Câmara de Direito Privado, rel. Des. Prado neto, j. 27/11/2018.
*Vladimir Passos de Freitas é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR, desembargador federal aposentado, ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça, promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 20/11/2023
Edição: Ana Alves Alencar
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