Uma análise dos pronunciamentos no dia em que a crise se abateu sobre o governo, com Moro fora do ministério da justiça
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*
O governo segue adiante, governo deve governar. Assim, a República não irá entrar em quarentena com a saída de Sérgio Moro do governo. No entanto, o governo Bolsonaro não mais será o mesmo. Ele mudou neste 24 de abril de 2020. Passará a ter outro espectro e não mais terá o aval moral que o ex-magistrado da operação lava-jato lhe emprestava.
Vai ter que construir uma nova reserva de credibilidade.
O episódio parece um briga de separação de casal enamorado, envolvido em uma trama de terceiros, tal qual a comédia de Shakespeare – “Muito Barulho por Nada”. Porém, trata-se de um drama mais profundo e que envolve o futuro da República. Assim, o barulho é por tudo.
Sobre isso conversei com o editor do Canal Notícias Agrícolas, João Batista Olivi, em gravação que pode ser acessada clicando aqui ou na imagem abaixo:
A Síndrome de Janus
Esse episódio marca a difícil metamorfose que acometeu o governo de Jair Bolsonaro, que denominei de “Síndrome de Janus” (*).
De fato, tal como o Deus Romano das Escolhas e dos Caminhos, o Governo Bolsonaro constituí-se de um corpo e uma cabeça, que no entanto possuí dois rostos. Um rostso voltado para a governabilidade e a execução fiel dos planos e projetos de reforma do Estado e resgate da moralidade pública, da economia de mercado, da transparência e da democracia. Outro, proselitista, populista, vincado pela cicatriz do autoritarismo, do arbítrio, tomado pelo ódio ás diferenças, às pessoas e à própria governabilidade, empenhado em uma campanha eleitoral contínua, baseada no enfrentamento dos inimigos de ocasião.
A saída de Sérgio Moro, diz respeito a esse segundo rosto do governo bolsonaro, no qual insere-se não apenas a figura do capitão agitador e direitista radical, mas também do zeloso pai que não consegue separar os negócios de estado dos cuidados para com seus filhos… que muito interferem nas suas decisões e atitudes. Do político amesquinhado pela vaidade e incapaz de levar adiante os compromissos que assume – dedicando-se a apunhalar aliados pelas costas e moer a reputação alheia por meio do seu gabinete do ódio…
O episódio que assistimos horrorizados neste sexta-feira, portanto, é o segundo provocado pelo segundo rosto, em pleno período de combate à uma pandemia.
Um choque de conceitos de gestão
O cerne da crise, objetivamente falando, está centrado em um grave choque de conceitos de gestão entre Moro e Bolsonaro. Ambos os conceitos foram traçados pelo compromisso político havido entre eles no início do governo.
O conceito de gestão de Moro pressupunha a porteira fechada e a ampla autonomia – a carta branca prometida em campanha. Essa porteira fechada serviria para que Moro administrasse as reformas de Estado no campo penal e jurídico, dentro dos preceitos de otimização do arcabouço legal buscando eficácia, do aprofundamento ao combate ao crime organizado e à corrupção. A polícia federal e o sistema de inteligência fiscal e de controle territorial integrariam esse projeto sob o comando de Sérgio Moro, e a reforma na legislação conferiria uma nova dinâmica à persecução penal e a eficácia do sistema punitivo – eliminando a sensação de impunidade que grassava a República.
Ocorre que Bolsonaro resolveu recuar, premido pelo conflito investigativo que envolveu seu filho mais velho… afetando completamente sua forma de decidir e ver as coisas no campo da gestão de Sérgio Moro. De fato, o monitoramento do COAF sobre a movimentação bancária do seu filho Flavio Bolsonaro no contexto da tal “rachadinha” na Assembleia Legislativa do Rio, definiu a segunda face na cabeça do governo. A partir daí, iniciou-se um processo de “retomada” da condução dos processos no âmbito do Ministério da Justiça – começando com a retirada explícita do apoio governamental às alterações legislativas propostas por Sérgio Moro, que terminaram desidratadas no parlamento.
Ao par disso, Bolsonaro buscou um entendimento político com a direção do Supremo Tribunal Federal, reduzindo claramente a resistência do executivo às decisões garantistas ali produzidas, que terminaram libertando os principais alvos da Operação Lava-Jato, sem qualquer constrangimento. Calou fundo a impassibilidade do presidente ante o festival de solturas promovidos pelo Supremo, deixando antever que sua preocupação clara era a de não antagonizar com ministros que definiriam o conflito de seu filho Flávio com o COAF, ali na esquina…
A autonomia da Polícia Federal passou a incomodar Bolsonaro, que resolveu avançar sobre a porteira que havia entregue a Sérgio Moro. E várias foram as vezes que o presidente fez carga sobre a troca do diretor e do superintendente do Rio de Janeiro, visando dar uma “diretiva” à condução das investigações que se processavam no entorno dos filhos.
Com a bobagem cometida no último dia 19 de abril, quando o presidente deu guarida a uma mobilização que não visava blindar a ele e, sim, promover um movimento de apoio a um golpe de estado, o choque foi inevitável. Ante a perspectiva de um novo inquérito policial federal, jurisdicionado pelo STF, visando apurar a conduta dos parlamentares que organizaram o movimento, o insistiu em ter acesso direto á polícia federal, como teria em relação a qualquer outro órgão de inteligência. E Moro refugou.
O Papel da Polícia Federal
No seu depoimento, nesta sexta-feira, o presidente citou três inquéritos em curso na Polícia Federal, submetidos á jurisdição judiciária – de Adélio Bispo dos Santos – o autor do atentado contra ele, o de Marielle – vereadora carioca assassinada por milicianos no Rio, e o caso das fake news.
Ocorre que ao contrário do que o presidente quis fazer crer no seu pronunciamento, não é função da polícia federal “informar” o presidente da república de toda e qualquer investigação em curso, em especial aquelas que estejam envolvendo personalidades de alto escalão da república jurisdicionadas pelo Supremo Tribunal Federal. Ainda mais quando há sigilo imposto ás investigações.
Em vários países democráticos do mundo, a estrutura de polícia ou é submetida diretamente ao judiciário ou, quando submetida ao poder executivo, o governo, tem seu poder de investigação controlado judiciariamente ou compartilhado com um órgão de persecução (ministério público). Assim, todo inquérito, em especial os sigilosos, sempre refogem ao domínio estritamente policial, para sofrerem jurisdição judiciária ou persecutória.
Os exemplos dados pelo Presidente, como sintomáticos da crise com Moro, ademais, remetem a um fato novo e dois fatos antigos, que, se realmente houvessem gerado o desconforto relatado, deveriam ter motivado a exoneração do diretor da polícia federal há mais de ano e, por conseguinte, na hipótese de conflito com o ministro, deveriam ter justificado a demissão deste há tempos.
Se não ocorreu, e só agora foi relatado um histórico de conflitos – parece que estamos diante não de uma crise localizada mas, sim, de uma crise de autoridade do próprio presidente.
Crise de autoridade
Para contrapor à grave acusação de Moro, Bolsonaro informou também um episódio lamentável – de ter Moro condicionado a saída do seu diretor da PF ao mês de novembro de 2020, “após a indicação para o Supremo Tribunal Federal”. Com efeito, esse tipo de conversa nem deveria ter ocorrido e, se ocorreu, deveria ter sido de pronto rechaçada com a demissão sumária do ministro. Imagino se isso ocorreria nos tempos de Itamar Franco ou, para ficarmos num exemplo ao gosto de Bolsonaro, com o firme e rígido General Ernesto Geisel. O interlocutor não duraria cinco minutos no Planalto.
O relato só piorou a condição do presidente.
O evento do pronunciamento presidencial, por sua vez, da forma como executado, foi outro desastre. Em frente ás câmaras de televisão apresentou-se um justificante ladeado de ministros filho e deputados – todos constrangidos, aparentando não saber bem o que estavam fazendo ali. O quadro expressou uma sensação de insegurança absoluta. Demonstra uma já notória e reiterada falha clamorosa de estratégia de comunicação da presidência da república.
O fato é que o bate-boca de sexta-feira já resultou em mais um inquérito policial, solicitado pelo Procurador Geral da República, submetido ao STF e a ser tocado pela Polícia Federal, sobre o qual um novo diretor da do órgão pouco ou nada terá o que fazer.
A Tarefa do Gabinete Moderador
Enquanto isso a economia do país sofre, e o gabinete moderador, formado pelos militares que ocupam os cargos de Casa Civil, Secretaria de Assuntos Estratégicos, Secretaria de Governo, GSI e Defesa, mais uma vez, é demandado para buscar a governabilidade no momento de crise (**).
O rosto de Janus que deveria prevalecer, à cargo do gabinete da presidência, mais uma vez deverá atuar para resgatar o governo da crise envolvendo o seu presidente. Esse gabinete, por sua vez, a cada dia torna-se mais “Governo” e menos “Bolsonaro”. Aliás, o compromisso de todos os que acreditam no projeto proposto em 2018 e em execução desde 2019, deverá doravante centrar-se mais no governo e nas atividades de Estado e, cada vez menos, na figura de Jair Bolsonaro.
O General Mourão, nosso Vice Presidente, constitui a grande reserva estratégica da República. E é lógico que tem todas as condições de entrar em campo para conduzir o país, se isso se fizer necessário. Melhor será, no entanto, se o atual presidente superar o conflito, mas isso implicará em remover a segunda face de Janus, proselitista, golpista, mesquinha, que conspurca o governo federal. Esse rosto deformado pelo “gabinete do ódio”, que está definitivamente comprometendo a governabilidade do país, precisa ser definitivamente removido!
Moro, por sua vez, é também um ativo muito caro à nação. Um patrimônio que merece todas as nossas homenagens. Um cidadão que honrou a magistratura e honrou o governo federal. Sua condução firme no combate ao crime organizado e á corrupção, à frente dos processos de investigação e julgamento da Operação Lava-Jato, redesenhou o rosto da Nação e resultou inclusive no governo Bolsonaro.
Não reconhecer esse fato, é negar a história até agora escrita pelos fatos.
Pensar à frente!
Temos todos, portanto, uma tarefa hercúlea pela frente.
Há um plano Marshall para implementar no Brasil, uma retomada da economia com todos os conflitos inerentes a esse duro processo. De forma alguma poderemos nos deter em questiúnculas absurdas como a que observamos nesta sexta-feira.
Muito menos temos condições de enfrentar um complicado processo de impeachment por conta do que foi dito e apontado – ainda que grave, no pronunciamento de Sérgio Moro – pois ficou claro que o ex-ministro descreveu os delitos de coação no curso do processo, falsidade ideológica e advocacia administrativa, imputando-os ao presidente da república. Isso deverá se resolver, se o caso evoluir, de forma rápida e eficaz, com uma renúncia do presidente em nome dos interesses mais elevados do páis – no extremo das hipóteses. Caso contrário, que se supere o entrave e se siga em frente – removendo o tumor em forma da segunda face de Janus do governo Bolsonaro.
Há outro detalhe lamentável. Outros ministros saíram do episódio enfraquecidos, porque claramente foram “reduzidos” em sua autonomia pelo novo estilo imposto pelo presidente – e isso pode acarretar novas defecções em tempo de crise.
Fiquemos atentos ao que virá.
Notas:
* PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro, “A Síndrome de Janus no Governo Bolsonaro”, in Blog “The Eagle View”, 23 Abril 2020, in https://www.theeagleview.com.br/2020/04/a-sindrome-de-janus-no-governo-bolsonaro.html
** PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro, “Buscando em Ordem a Luz no Fim do Túnel”, in Blog “The Eagle View”, 15 Abril 2020, in https://www.theeagleview.com.br/2020/04/buscando-em-ordem-luz-no-fim-do-tunel.html
*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa – API. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View”. Foi integrante da equipe que elaborou o plano de transição da gestão ambiental para o governo Bolsonaro.
Fonte: The Eagle View
Publicação Ambiente Legal, 25/04/2020
Edição: Ana A. Alves