O Governo pode e deve assumir a governança da crise ambiental e restabelecer o controle do território. Simples assim.
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*
O propósito deste artigo é conferir dimensões realistas ao fenômeno das queimadas no território amazônico brasileiro, para além do oportunismo político que sempre surge com as brasas na floresta para incendiar governos e nossa soberania.
Um fenômeno cíclico
Nos períodos de baixa umidade e baixa pressão, a estiagem permite maior incidência solar e o calor resultante desidrata a vegetação.
Quando isso ocorre, as plantas recorrem ao subsolo. Por óbvio, nas bordas mais desmatadas o sol também age de modo a reduzir a umidade no solo e o resultado é que, nesse processo o nível de concentração de etileno no ar aumenta tornando o ambiente inflamável.
Nessas condições, com altas temperaturas e deslocamento de massas de ar, qualquer evento pode dar início a um incêndio florestal. De um cigarro jogado aceso no acostamento de uma estrada a uma queima de folhas secas numa clareira.
Raios também provocam incêndios, mas, na maioria dos casos, é a ação humana que dispara o evento. Essa ação humana decorre de ações criminosas, hábitos culturais e ações controladas autorizadas e por óbvio diluem-se no conflito de imagem decorrente do fato.
Queimadas, autorizadas ou não, podem desenvolver um evento catastrófico, e a forma de propagação seguirá conforme a geomorfologia e a fisiologia da floresta.
Regiões florestadas são as maiores vítimas do fenômeno, embora savanas ou cerrados sejam muito mais propícias também a sofrê-lo.
Basta observar esse mapa dinâmico da NASA, do comportamento dos incêndios florestais no mundo, na primeira década deste século, para compreender que o fenômeno é global e regiões de savanas, cerrados, campos e estepes são os locais mais prováveis para o incêndio, e o Brasil não constitui exceção – é apenas mais um país na linha global do fenômeno:
No caso da Amazônia, seja na região do cerrado denso, seja na região dos campos, seja na floresta úmida e densa, o romper de um incêndio toma dimensões continentais, afetando pelo menos cinco países.
O ser humano, embora tenha avançado enormemente no campo da prevenção e monitoramento dos incêndios florestais, ainda não conseguiu desenvolver uma tecnologia que combata o fogo com a devida eficácia. Isso pode ser sentido nos incêndios de grandes proporções que afetaram os Estados Unidos e a Europa, há poucos anos, onde a melhor tecnologia disponível foi utilizada sem que se evitasse a perda de vidas humanas e danos a propriedades, à fauna e à flora.
Na região amazônica a geomorfologia, as grandes extensões desabitadas, a somatória de culturas de usos irregulares do solo, a mata fechada e a chamada propagação de turfa (os focos se propagam também por baixo do solo), dificultam sobremaneira o combate aos focos de incêndio que costumam suceder de maneira infinita por grandes extensões levando equipes inteiras de brigadistas ao cansaço.
Um hábito cultural
A queimada, por outro lado, como prática da agricultura – para limpeza de pasto ou para a prática do pousio, por ex., está profundamente inserida na cultura sul americana. do índio ao fazendeiro. Muitas ocorrem de forma controlada e são autorizadas pelos órgãos ambientais, pois na região o desmate mecânico, a limpeza de uma clareira ou pasto com máquinas, pode gerar custos impagáveis.
Essas queimadas autorizadas não podem ser confundidas de forma alguma com o fenômeno criminoso. Dizem respeito principalmente aos pequenos agricultores – que são responsáveis por alimentar a população do bioma – afinal, a agricultura familiar responde pelo alimento fornecido às cidades e vilas na região. A prática, nesse caso, decorre da atividade cíclica de uso da terra: limpeza, queimada e reuso.
Mas sem dúvida, os focos criminosos são os maiores responsáveis pelos incêndios de grandes proporções – pois não decorrem de um acidente no manejo do fogo e, sim, do descontrole territorial que permitiu que a atividade clandestina gerasse a tragédia ambiental.
Assim, nos períodos de seca – em cada hemisfério, o continente americano arde no norte, no centro e no sul… e não é de hoje.
Não por outro motivo, o extremo sul do continente possui o nome de “Terra do Fogo”. Fernão de Magalhães, o grande navegador, ao passar pela região, no Canal de Beagle, no século 16, relatou grandes incêndios florestais causados pelos nativos, isso quinhentos anos antes de Jair Bolsonaro nascer para questionar se foram ONGs ou agricultores os responsáveis pelos eventos…
Na série histórica de incêndios florestais no Brasil, neste século, já tivemos períodos mais severos que o destes últimos anos – incluso deste governo. Condições climáticas de toda forma indicam que o volume de ocorrências quase duplicou de um ano para outro. Isso significa que o ano de 2018 foi excepcional, e o ano de 2019 seguiu a tendência, que deve ocorrer também em 2020.
Uma questão política
Mas o clima é de guerra híbrida. Luta renhida e sem quartel entre governo e establishment destronado. Interesses nacionais em conflito com interesses internacionais e da concorrência estrangeira às commodities brasileiras, militâncias em chamas, de todas as colorações, incendiando o cenário político nacional. Assim, há batalhas assimétricas em várias frentes – enfrentadas pelo governo Bolsonaro. Isso fez com que os incêndios florestais incendiassem a mídia, as relações exteriores, o agronegócio, o sistema de controle ambiental brasileiro e acendesse a chama do intervencionismo internacional.
A geopolítica, por sua vez, não perdoa “vacilos” na comunicação dos fatos e na gestão dos conflitos político ideológicos em um Estado Nacional – principalmente quando decorrentes de eventos ambientais que podem denotar descontrole territorial. Esse é justamente o nosso caso.
Mas o governo deveria ter se preparado para o conflito – pois não é de hoje e também não é Bolsonaro o único a ter enfrentado crises decorrentes do mesmo fenômeno. E o diagnóstico é o mesmo há anos: não há “descontrole territorial” e, sim, uma ausência de doutrina para lidar com o conflito ambiental – que agora toma características de crise internacional.
A situação, de fato, é mesmo muito crítica. Não houve ainda uma resposta adequada do governo à campanha intervencionista internacional, que se articula sob o pretexto ambiental e isso porque simplesmente não há uma estratégia com conteúdo mais denso na área ambiental.
Falta governança
Falta doutrina – daí a oportunidade de implementar as doutrinas sugeridas na nossa apresentação recentemente efetuada na Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, e reduzida a termos em artigo já publicado*.
Uma boa resposta, de conteúdo, está na harmonização do discurso de afirmação de nossa soberania, pelo Presidente da República, com ações concertadas doutrinariamente pelos órgãos de governo encarregados de combater o fenômeno dos incêndios florestais e retomar o correto monitoramento da região amazônica – pivô da crise.
Há descompassos funcionais que precisam ser corrigidos.
O Centro de Prevenção aos Incêndios Florestais do IBAMA – PREVFOGO, ligado á diretoria de Proteção Ambiental daquela agência federal, sofre claramente com o conflito de governança. Não há como não estranhar fatos como o do dirigente do setor “sair de férias” justamente no período dos incêndios florestais. As equipes de brigadistas, por seu turno, são arregimentadas sem que ocorra a devida fiscalização sobre elas – compostas de gente renumerada por diárias – e que, portanto, ganha enquanto houver incêndio…
A crise de números do desmatamento, ocorrida entre a chefia do governo e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – agência governamental encarregada da conferência dos dados de satélite, parece ter tirado o foco da governança ambiental federal do sistema de prevenção de incêndios, e isso tornou-se notório quando o governo, após já instalada a crise internacional, resolveu tardiamente organizar uma força-tarefa que já deveria estar funcionando com trinta dias de antecedência…
Por sua vez, é evidente o descompasso da fiscalização federal e dos estados, com a ação policial de controle territorial, na repressão aos fenômenos criminológicos que se aproveitam do período para dissimular suas atividades – exemplo é o dos madeireiros clandestinos que usam o incêndio florestal para apagar os rastros do desmatamento que produzem. Tudo isso mereceria um longo planejamento e esquadrinhamento geográfico, com antecedência e fora dos holofotes.
O governo atual não é o único a sofrer com a falta de governança, nem com as ações reativas de pouca eficácia.
Nos governos petistas o descompasso era uma rotina. No período tucano, a crise chegou a tal ponto que o Presidente desastrosamente assinou uma medida provisória alterando todo o código florestal, em 2001, criando as raízes do conflito ambiental contra o agronegócio – fato que só começou a cicatrizar com o advento da nova legislação florestal e sua pacificação jurisprudencial no STF.
O que deve ser feito
O certo, agora, é organizar uma força tarefa com as polícias militares dos estados e a força nacional – com apoio do exército – uma GLO (Garantia da Lei e Ordem), para reforçar o controle do território, combater os focos e monitorar, ao mesmo tempo, o comportamento das próprias brigadas do prevfogo – acionando a inteligência de Estado para localizar atividades clandestinas que possam estar incrementando os focos de incêndio.
Fundamental melhorar a governança do acompanhamento estratégico do fenômeno. Importante montar uma sala de situação, para organizar os dados de monitoramento – evitando colisão de informações e manter um mapeamento geográfico atualizado simultaneamente, para orientar as ações. Essa sala deveria envolver a chefia do estado e ministérios importantes, para muito além do Meio Ambiente – a começar da Agricultura, que é o alvo principal da concorrência internacional, que sempre aplica o conflito como meio de desvalorizar nossas agro-commodities.
No mais, como já disse em várias ocasiões, é preciso adotar as doutrinas de Segurança Ambiental e Soberania Afirmativa, para preparar uma declaração firme do governo federal – de afirmação de soberania, apontando esse fato do fenômeno não ser único e, sim, internacional, e que as medidas de contenção estão sendo adotadas, sendo que, ao contrário do que ocorreu nos EUA e Portugal… até agora não houve perdas humanas. De fato, é preciso melhorar muito a comunicação governamental.
Calma é do que precisamos acima de tudo e, sobretudo acreditar no Brasil.
Hora de por água no fogo – e água não falta na região, para esfriar a cobiça internacional oportunista sobre o solo brasileiro.
Nota:
* – PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro – “Contexto Geopolítico do Brasil e a Questão Ambiental”, in Blog The Eagle View, 2019, visto em 23Ago2019, in https://www.theeagleview.com.br/2019/08/contexto-geopolitico-do-brasil-e.html
*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. É Editor-Chefe dos Portais Ambiente Legal, Dazibao e responsável pelo blog The Eagle View. Twitter: @Pinheiro_Pedro. LinkedIn: http://www.linkedin.com/in/pinheiropedro
Fonte: The Eagle View
Publicação Ambiente Legal, 08/2019 e 15/07/2020
Edição: Ana A. Alencar