Um testemunho sobre a condição feminina, a lei, a justiça, o direito, o preconceito e a misoginia
Suzete Carvalho*
As idéias e casos expostos no presente artigo estão relacionados com alguns dos temas que venho estudando há anos e que dizem respeito às questões abrangentes do comportamento humano que, até pelo fato de terem repercussão sobre nossos relacionamentos conosco mesmos e com o outro, incluída aqui a Mãe Terra e, por se refletirem diretamente sobre as manifestações socioculturais, são sempre polêmicas e, em geral, dolorosas.
Para quem não está familiarizado com meu trabalho – e até para justificar a adoção de relatos pessoais sobre minhas vivências – tomo a liberdade de lembrar que, a par a missão de escrever em prosa e verso que abracei, após me haver afastado um pouco do mundo jurídico, nos últimos anos tenho me dedicado mais a ministrar cursos e palestras.
O título pelo qual optei para este texto – Mulher, Sociedade e Direito -, me ocorreu tendo em vista um livro do qual participei com mais de trinta especialistas em várias áreas, da Arquitetura à Sociologia, da Literatura às Ciências Econômicas e ao Meio Ambiente, da Antropologia ao Direito, muito especialmente o Direito do Trabalho que, aliás, foi o pano de fundo para todos os nossos estudos. Trata-se da Obra “Mulher, Sociedade e Direitos Humanos”, SP:Ed.Rideel, 2010, 833 páginas, finalista do Prêmio Jabuti de 2011 na Categoria “Direito”, o que nos estimula a continuar o trabalho.
Por outro lado, as questões mais específicas sobre as dores que a nossa alma sente, que direta ou indiretamente afetam os relacionamentos de todas as pessoas, como o preconceito, a inveja, culpa, medo, ressentimento, submissão, entre tantas outras, foram tratadas em meu livro “O Olhar da Caprichosa – como lidar com inveja, preconceito e fenômenos afins”, RJ:Ed.Batel, 2014, 302 pág., lançado em setembro último, na Livraria Saraiva.
Afinal, atire a primeira pedra quem nunca sentiu ou foi vítima de alguma espécie de preconceito, quem nunca (se) permitiu que alguma mágoa fincasse raízes em seu coração, quem nunca se sentiu culpado ou culpou alguém por suas próprias vicissitudes, quem nunca sentiu medo… As mulheres, sobretudo, sabem a que me refiro, até por serem milenarmente discriminadas e, nem por outro motivo, lhes foi dedicado um dia especial no calendário internacional, assim como a tantos outros grupos tidos e havidos como “minorias”: os excluídos de sempre.
O fato é que, sempre que sou convidada a falar ou escrever sobre o Dia da Mulher, me vêm à mente também o Dia do Índio e o Dia da Criança, formando um tripé de ‘comemorações’ que me remete a uma questão social e jurídica que tem a ver com a cidadania capenga a que esses grupos eram relegados pela própria legislação. Para quem não está lembrado, refiro-me ao Código Civil de 1916 que, até 1962, com o advento do Estatuto da Mulher Casada, institucionalizava uma pretensa “semi-capacidade para os atos da vida civil” das mulheres casadas, dos menores até 16 anos de idade, dos índios e isso, pasmem!, ao lado dos “loucos de todo gênero” a quem eram, portanto, igualados. Foi sob esse regime que eu me casei em 1958.
Lembro-me de uma parente, à época com 28 anos de idade e que trabalhava fora desde os 18, que tendo ido ao banco para retirar parte do dinheiro produto de seu trabalho, foi informada pelo funcionário: “Seu marido precisa autorizar a retirada”. Quando ela respondeu que a conta estava em seu nome e que era a única titular, recebeu como resposta, acompanhada de um sorrisinho irônico: “Lei é lei, dona. O marido é o chefe da família, portanto, seu marido precisa assinar… Entendeu?”.
Acresça-se a esses vexames aos quais as mulheres eram levadas a sofrer, a perversidade maior da lei civil de então: o Código autorizava a anulação do casamento, por “erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge”, em que se incluía a hipótese do “defloramento da mulher”, ignorado pelo marido (art.219, IV). Vale dizer que o homem podia pedir anulação do casamento sob a alegação de que a mulher não era virgem, já que não havia comprovar, pois ele próprio poderia tê-la deflorado, quando então, como se dizia à época, ele tinha o direito de “devolvê-la à família, como mera mercadoria com defeito”.
De lembrar ainda que a CLT, consoante com as normas civis, permitia aos maridos que rescindissem o contrato de trabalho da mulher quando lhes aprouvesse, desautorizando-a, se achassem que o trabalho fora do lar comprometia ‘suas obrigações’(!) domésticas. Afinal, o espaço público pertencia ao homem e, o privado, à mulher.
Não por outro motivo, foi muito aplaudido o discurso do deputado Augusto de Lima, quando se discutia o tema na primeira metade do século passado (parece distante, mas vale lembrar que à época, muitos dentre os leitores e leitoras já eram nascidos…): “Este contrato traz a separação não sabida, não consentida pelo marido e, portanto, altamente suspeita, pondo em perigo o bom nome do lar. De uma mulher que se apresenta sem assistência do seu marido e até talvez, com oposição deste, o que se presume logo?”.
Vale dizer que a mulher casada, ou era considerada santa (a rainha do lar) ou, então, sacripanta (pra não usar outros nomes, hoje muito em moda, mas que não condizem com a dignidade da Revista). E foi por essas e por outras que, entre tantas vivências que o patriarcado me proporcionou particularmente e estou certa de que não fui a única contemplada, tive uma experiência desagradável que acredito oportuno narrar. Quando minha filha nasceu, eu acabara de me formar em Direito e era funcionária do Gabinete da Presidência do Tribunal de Contas do Estado, que ainda não havia implantado creche em sua sede que se localiza até hoje, em frente ao prédio da Secretaria da Fazenda, onde meu marido trabalhava, no centro de São Paulo.
Pois bem, considerando que havia vagas na Creche da Secretaria da Fazenda e que eu corria o risco de perder um cargo efetivo que eu conquistara passando em 10º lugar em um concurso público de títulos e provas que teve milhares de candidatos, meu marido requereu uma das vagas para nossa filha, rejeitada liminarmente pelo então Diretor Administrativo da Secretaria, com um despacho lacônico: “Nego, porque o pedido vai contra as leis da natureza, já que às mulheres cabe cuidar de seus filhos”.
Esse é apenas um exemplo de como o androcentrismo deixou sequelas profundas no corpo social, confirmado por dados oficiais recentes que demonstram o quanto a sociedade ainda subestima mais da metade de sua população – 53%, para ser exata – em que pesem algumas relevantes conquistas obtidas a duras penas. É o caso da magistratura à qual as mulheres foram admitidas em 1ª instância em 1954 e somente em 1983 em um Tribunal de Justiça. Hoje, décadas após, ainda correspondem a apenas 1/3 dos cargos. A propósito, não resisto à tentação de contar-lhes mais um causo pessoal.
Trata-se do seguinte: quando me vi na contingência de pedir exoneração do Tribunal de Contas, tratei de prestar um novo concurso público que me permitisse um horário maleável para que pudesse administrar os cuidados com nossa filha, a quem confiei a uma escola infantil, e optei por um cargo de oficiala de justiça avaliadora do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, de cuja Associação de Classe, mais tarde, acabei me tornando presidente e de cujo Jornal assumi a redação. Mas esse não é o caso e sim o ocorrido alguns anos depois, quando eu cursava pós-graduação na USP.
O fato é que na função de oficiala de justiça, houve vezes, embora isso não fosse necessariamente a regra, em que cheguei a guiar 100 kms em apenas um dia, percorrendo todos os meandros das zonas leste e sul de SP e vivenciando peripécias de fundo machista que renderiam mais um livro. Sem falsa modéstia, posso dizer que eu e várias outras colegas éramos, sim, excelentes motoristas. Pois bem, certa vez, ao adentrar à sala de aula, vi que um grupo de rapazes cercava um colega, juiz de uma das varas cíveis da capital, impedindo, sem perceber, que eu me aproximasse de um dos assentos vagos e, assim, enquanto aguardava passagem, forçosamente ouvi a bravata de Sua Excelência: “Se cair na minha vara, eu ferro mesmo. Mulher não sabe guiar. Se bater, é culpada e fim.”
Bem, voltemos aos dados oficiais da ONU neste 2015: as mulheres trabalhadoras no mundo ganham de 10 a 30% menos que os homens e, se forem negras, 50% a menos do que as brancas; as mulheres representam apenas 20% do total de legisladores do mundo, enquanto somente 9% delas têm assento às Mesas de Negociação de Paz. No Brasil, após 100 anos de existência, em 2011 a primeira mulher teve assento à Mesa da Câmara dos Deputados.
O fato é que os homens têm dominado quantitativamente os espaços de poder milenarmente, em todas as áreas, exercendo-o com extrema agressividade. Refiro-me, aqui, à questão específica da violência contra as mulheres, estatisticamente comprovada: a cada 15 segundos, uma mulher é estuprada no mundo (metade é de crianças), à parte as tentativas frustradas, em sua grande maioria por parentes próximos ou amigos, sem contar que esse é um troféu dos vencedores em todas as guerras.
Só no Brasil, em 2013, foram denunciados 311.000 estupros, conforme levantamento da Justiça (calculem o número de casos não denunciados, seja por medo ou vergonha, cuja estimativa é de, no mínimo, 80%). A Lei Maria da Penha teve o condão de fazer aumentar o número de denúncias e de incentivar a proteção à mulher (já) agredida, mas não basta a legislação, há que se investir na prevenção, que passa pela (re)educação no sentido de uma sociedade mais igualitária, com vistas a uma Cultura de Paz.
Assim, em que pese a evolução legal no combate à violência contra a mulher, a questão é tida ainda como pandêmica pela ONU, já que física, moral ou psicologicamente, a cada duas horas uma mulher é assassinada e a cada cinco minutos, é agredida. E mais, segundo dados recentes do Instituto Avon, três em cada cinco mulheres jovens sofre alguma espécie de violência em seus relacionamentos e, para a ONU, em cada três mulheres de todas as idades, uma ainda sofre ou sofrerá alguma dessas espécies de agressão em algum ou vários momentos de suas vidas. Para o BID, as consequências dessas agressões recaem sobre a toda a sociedade, inclusive pelos impactos intangíveis que causam à Economia,
Há que se considerar também as sutilezas de que se reveste a violência em suas ‘faces’ simbólica e estrutural, opressões que se evidenciam a começar pela própria linguagem, que confere tão somente ao homem o “status” de representante de toda família humana. Daí expressões como “Um país se faz com homens e com livros”, de nosso renomado Lobato, têm sido repetidas à exaustão. Acredito que se procurássemos usar o termo “pessoas” nesses casos, estaríamos contribuindo para desmistificar a alegada não participação das mulheres na História.
O machismo e a misoginia se revelam ainda nas várias formas de assédio e subestima a que as mulheres são submetidas sistematicamente, seja nas ruas e nas empresas, nas eternas piadinhas de quem se acredita espirituoso, nas programações de uma mídia descomprometida com uma cultura igualitária, na publicidade que insiste em perpetuar a imagem da mulher objeto, nas letras de músicas populares, etc., etc., etc.
Enfim, nem o preconceito se limita às questões de gênero, nem esta se limita às questões que dizem apenas à mulher, até por que essa forma perversa de pensar e ver o mundo se encontra, sim, ainda enraizada em nossa sociedade, herdeiros que somos de uma tradição sociocultural que, apesar de sua ânsia de expansão (ou talvez por isso mesmo) não soube enfrentar com bom senso a questão da(s) diferença(s), seja meramente cultural, seja de raça ou de cor.
E foi assim que acabamos sendo educados, até hoje, para sermos competitivos, ambiciosos, preconceituosos, invejosos e, por conseguinte, indiferentes às injustiças sociais, o que se consubstancia em um individualismo doentio que se reflete no aumento das dores da alma, em perverso círculo vicioso a banalizar (ainda mais) o mal. Sobrecarregados com as frustrações a que somos levados por essas circunstâncias, navegamos entre a culpa, o ressentimento e o medo de perder o que acreditamos nosso por “direito”. A propósito, em abril tenho uma palestra agendada para Educadores, na Feira do Livro de Poços de Caldas, na qual proponho debatermos a seguinte questão: “Somos educados para sermos invejosos e preconceituosos?”
Esses os principais motivos – já que esses temas são muito complexos – pelos quais tantas de nós e um número crescente de homens comprometidos com a construção de um mundo mais justo e ecologicamente sustentável – têm se dedicado de corpo e alma a promover a conquista da dignidade para todas as pessoas – tão iguais nas diferenças -, clamando por cidadania plena, cuja realização se dá também nas oportunidades iguais de trabalho e remuneração e de participação nas decisões.
Por outro lado há que destacar o protagonismo consciente de cidadãos e cidadãs de todas as áreas, na construção de uma sociedade mais comprometida com o aprimoramento de nossas relações com a Natureza, da qual somos parte indefectível e, sabedores de que o barco da vida é único e corre o risco ir a pique se continuarmos a nos comportar como predadores. Por consequência, se o barco afundar, todos os seres viventes serão arrastados de roldão pelos mares revoltos.
Todas essas ações, portanto, se fazem necessárias à própria sobrevivência da humanidade, o que transcende as questões de gênero para adentrar nossas relações com o meio-ambiente e, resta dizer, com todos os outros grupos populacionais discriminados desde sempre: os pobres, os nordestinos, os idosos, os deficientes, os índios e, principalmente, ao maior contingente de pessoas – 53% da população – cuja competência, dedicação e esforços têm sido subestimados culturalmente – os negros e seus descendentes, o que levou a ONU a contemplá-los com o Dia da Consciência Negra, o que não é suficiente para mudar os nefastos estereótipos impregnados no senso comum.
Também determinadas classes de trabalhadores têm sido subestimadas, como é o caso dos servidores e servidoras públicas, bode expiatório das mazelas institucionais de todas as instâncias públicas e, portanto, objeto da mais sutil das violências: a violência simbólica, objeto de vários de meus artigos e, no caso que passo a narrar, de uma palestra que ministrei em um Seminário promovido há pouco mais de uma década São Paulo.
Pois bem, quase ao final da palestra – que, convém evidenciar, ainda estava dentro do tempo estipulado -, propus a participação da plateia (composta por mais de uma centena de servidores, que se revelaram interessados no tema) no sentido de tentarmos desvendar onde estaria contida a violência simbólica baseada numa experiência americana que eu acabara de relatar. Nesse exato momento, fui interrompida pelo presidente da Mesa de trabalhos do dia, com a seguinte ironia: “Engraçadinha ela, não? Mas o café está servido, então, encerro esta primeira parte e convido a todos para voltarem em 20 minutos quando teremos o prazer de ouvir nosso próximo palestrante, o ilustre senhor doutor ‘Fulano de Tal’.”
Para encerrar, ouso enfrentar uma tormentosa e centenária questão: “Mas, afinal, o que querem as mulheres?” Tomo a liberdade de responder por todas, presentes e ausentes à formulação freudiana, mantricamente repetida. – “Querem Flores? – Sim, por que não, se as flores enfeitam, alegram/colorem a vida. – “Querem ser iguais aos homens?” – “Não, até porque ninguém é igual a ninguém e é nessa diferença, sem a qual sequer existiríamos, que se encontra a grandeza de nossa humanidade.” – “O que elas querem, então?” – “Querem igualdade de tratamento, porque respeito é bom e elas gostam, sim, ainda que lhes tenha sido afirmado o contrário. Querem, enfim, igualdade de oportunidades para que possam se realizar como seres humanos íntegros e integrais como, aliás, o querem todos os grupos “ditos” minoritários, que na verdade constituem a arrasadora maioria dos seres humanos.
Enfim, essas foram apenas algumas pinceladas, na tormentosa questão do preconceito, que nos afeta individualmente, exacerbando, porém, as dores da alma coletiva (ou, se preferirem, da alma social), pois se refletem sobre a sociedade como um todo, corroendo relacionamentos e perpetuando a injustiça.
*Texto adaptado de palestra proferida pela autora em 26/03/2015, em sessão plenária do Conselho Deliberativo da Associação dos Funcionários Públicos do Estado de São Paulo (AFPESP).
Suzete Carvalho, advogada, foi professora universitária , tem cerca de quatrocentas publicações, entre artigos técnico-jurídicos, crônicas, poemas, contos e ensaios sobre temas abrangentes da experiência humana, disponíveis parcialmente no blog www.novaeleusis.blogspot.com . É autora do livro “O Olhar da Caprichosa – a arte de lidar com inveja, preconceito e fenômenos afins” lançado em 2014 no Brasil, EUA e Suécia.
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