Por Erika Guimarães, Luiz Paulo Pinto e Marcia Hirota*
A Mata Atlântica, um dos hotspots mundiais de biodiversidade, possui uma das mais atuantes redes institucionais de proteção ambiental do Brasil, o que tem proporcionado muitas conquistas, parcerias e mobilizações ao longo de todo o bioma. Entretanto, a participação do setor público na esfera municipal ainda é um elo frágil dessa poderosa rede de colaboração. Considerando que a Mata Atlântica está presente em 3.429 municípios de diferentes contextos ambientais e socioeconômicos, é imperativo que haja um maior engajamento e compreensão acerca da importância da proteção da biodiversidade por meio da governança e dos atores locais.
As Unidades de Conservação (UCs) municipais administradas por centenas de municípios inseridos no bioma fazem parte de um terreno pouco conhecido pelo setor ambiental. De acordo com o Cadastro Nacional de Unidades de Conservação (CNUC), o bioma conta com mais de 10,2 milhões de hectares em UCs – federais, estaduais e municipais. Entretanto, um levantamento realizado pela Fundação SOS Mata Atlântica, o primeiro estudo feito no país sobre as áreas protegidas nos municípios, mostrou que as UCs municipais estão praticamente invisíveis no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC).
A partir do mapa da área de aplicação da Lei da Mata Atlântica (Lei nº 11.428, de 2006), a SOS Mata Atlântica realizou uma série de análises para avaliar a situação das UCs municipais, caracterizar seu tamanho e distribuição, ampliar o conhecimento sobre os modelos de gestão e articulações institucionais, das tendências para evolução desse mecanismo de proteção local da biodiversidade e ampliar o entendimento sobre seus benefícios e oportunidades.
O estudo identificou mais de mil UCs municipais no bioma, incluindo aquelas situadas nos ambientes costeiros e marinhos. Se adicionadas às estatísticas do CNUC-SNUC, a cobertura da rede de UCs da Mata Atlântica sobe para cerca de 12,1 milhões de hectares, ou seja, um acréscimo de 18% na área total protegida em relação ao que os dados oficiais indicam. Com os novos dados, a Mata Atlântica passa a ter 2.233 UCs reconhecidas oficialmente pelas três esferas político-administrativas, ou seja, pelo Governo Federal, em 17 estados abrangidos pelo bioma Mata Atlântica e nos 3.429 municípios. As UCs municipais representam 22,6% da área e 41% do número total de UCs existentes no bioma.
As análises realizadas se concentraram em 934 UCs municipais, já que 153 ainda têm lacunas de informação. Dessas, 914 UCs estão em áreas da Mata Atlântica e ecossistemas associados (2,8 milhões de hectares) e 20 estão em áreas marinhas (132,3 mil hectares). As UCs avaliadas estão distribuídas em 428 municípios, que equivalem a pouco mais de 3 milhões de hectares. A maioria dos municípios (66%) possui uma única UC sob sua administração, 12,4% possuem duas unidades e 21,7% têm três ou mais unidades. Os municípios de porte médio (entre 100.000 e 500.000 habitantes) são aqueles com maior número de UCs municipais (254 unidades e 27% do total), sendo que esse grupo representa 21% dos municípios na amostragem. Um aspecto importante é que a maioria das UCs municipais estão localizadas nas áreas urbanas e periurbanas, o que proporciona maior aproximação dos espaços protegidos com a população. Em um mundo cada vez mais urbanizado, essa agenda emergente merecerá especial atenção dos tomadores de decisão nos próximos anos.
Das 12 categorias previstas no SNUC, somente a Reserva de Fauna não está representada na rede de UCs municipais. Essa categoria também não está representada na rede de proteção federal e estadual. Existe um equilíbrio em termos de número de UCs municipais entre os grupos de proteção integral e uso sustentável, com predomínio para os parques naturais (317) e a as áreas de proteção ambiental (418). Por outro lado, as UCs de uso sustentável predominam em termos de área, representando 96% da área total registrada para as UCs municipais. A forte ocorrência de áreas de proteção ambiental municipais é um enorme desafio para a gestão ambiental dos municípios, mas pode também ser uma boa oportunidade para a regulação ambiental, conservação da biodiversidade e sustentabilidade local, se tiverem os instrumentos adequados para a gestão dessas áreas.
Em 15, dos 17 estados da Mata Atlântica, foram registradas UCs municipais. Minas Gerais, Rio de Janeiro e Paraná são os que possuem a maior quantidade e a maior área protegida. Os três estados, juntos, possuem 82,6% da área e 70,3% do número total das UCs municipais na Mata Atlântica. O estado do Rio de Janeiro detém a maior proporção e capilaridade da cobertura dessa rede de proteção local, com 77 (83,7%) municípios fluminenses abrigando 305 UCs municipais. Destaque para o Programa de Apoio às Unidades de Conservação Municipais do Estado do Rio de Janeiro (ProUC), iniciativa criada em 2009 pelo governo do estado, coordenado pelo Instituto Estadual do Ambiente (INEA), para o apoio técnico e de capacitação aos municípios, incentivando a criação de UCs e promovendo a sensibilização sobre a importância da gestão ambiental compartilhada.
Uma amostragem envolvendo 35 UCs municipais de diferentes categorias de manejo, em 26 municípios de nove estados, mostrou que, em média, 58,5% da área das UCs municipais está coberta por vegetação nativa. O restante representa solos expostos, áreas agrícolas, reflorestamentos, infraestruturas e estradas, entre outros, o que varia conforme a categoria de manejo avaliada. Isso demonstra que ainda é preciso avançar na compreensão sobre a contribuição da área efetivamente protegida pelas UCs municipais e as medidas que são necessárias para incrementar o manejo dessas áreas. O fato de parte das UCs ter perdido trechos da cobertura da vegetação nativa não impede que essas áreas sejam recuperadas e manejadas para que possam contribuir à proteção da biodiversidade, geração de serviços ambientais associados e promoção de bem-estar das comunidades nas quais estão inseridas.
O estudo evidenciou que a rede de proteção sob responsabilidade dos municípios é expressiva e proporciona grande capilaridade para as ações de conservação necessárias para o enfrentamento dos desafios de gestão da paisagem em um bioma rico em biodiversidade. A expectativa é que exista um número maior de UCs municipais na Mata Atlântica, que não foram ainda identificadas nesse estudo. Portanto, a continuidade da avaliação da rede de UCs municipais no bioma é necessária para a obtenção de informações de todos municípios e para o melhor entendimento da situação e dos desafios da gestão desse importante patrimônio natural. Para a SOS Mata Atlântica, os esforços para a consolidação dessa agenda continuam e é preciso avançar em algumas medidas essenciais que envolvam a consolidação de uma base de dados, a geração e disseminação de informações, o desenvolvimento de capacidades e o aperfeiçoamento das políticas públicas específicas para os municípios.*
Conhecer esse cenário é o primeiro passo para o aprimoramento e fortalecimento de uma estratégia de conservação da Mata Atlântica amplificado e integrado, valorizando e disseminando a experiência dos municípios na sustentabilidade do ambiente urbano e rural.
*Medidas sugeridas para fortalecer a Rede de Unidades de Conservação Municipais da Mata Atlântica:
• Continuar o levantamento e análises das informações sobre as UCs municipais;
• Ampliar o acesso público aos dados básicos das UCs municipais;
• Estimular os municípios para o registro dasUCs no CNUC-MMA;
• Ampliar o conhecimento sobre os atributos naturais, a qualidade ambiental atual e o grau de implementação das UCs municipais;
• Desenvolver estudos sobre os serviços ambientais e a contribuição econômica proporcionados pelas UCs municipais;
• Desenvolver estudos sobre o papel das UCs municipais no ambiente urbano e periurbano;
• Estimular e promover o intercâmbio de experiências sobre criação, gestão e implementação das UCs municipais;
• Realizarcursos de treinamento para técnicos das prefeiturase outras instituições sobre manejoe uso público de UCs;
• Estimular a elaboração dos sistemas municipais de unidades de conservação;
• Criar programas, fundos e outros mecanismos de suporte às UCs municipais;
• Criar projetos/programas de recuperação ambiental e controle e erradicação de espécies exóticas invasoras para UCs municipais;
• Estimular a integração e inserção das UCs municipais no planejamento do desenvolvimento sustentável municipal.
*Erika Guimarães é gerente de Áreas Protegidas da Fundação SOS Mata Atlântica; Luiz Paulo Pinto é biólogo e consultor da organização; Marcia Hirota é diretora-executiva da Fundação. Este conteúdo é parte do estudo “Unidades de Conservação Municipais da Mata Atlântica”, publicado pela Fundação em julho deste ano – conheça o relatório completo.
Fonte: SOSMataAtlântica