A “crise do gás” provocada por Evo Morales revelou à sociedade brasileira o quanto o governo atual e gestões anteriores têm tornado a economia nacional refém de interesses externos.
Por Simone Silva Jardim e Soraia Sene
A nacionalização das reservas bolivianas de gás natural e de petróleo causou um sismo na economia brasileira. Mas diz o provérbio popular que há males que vêm para bem; a chamada “crise do gás”, sem dúvida, foi esse bem às avessas. É que se abriu à sociedade brasileira a oportunidade de ver, nua e cruamente, a realidade do País nessa área estratégica. Vejamos.
O presidente Luis Ignácio Lula da Silva teve de admitir, publicamente, que foi “um erro estratégico” ter colocado tanto dinheiro em uma nação estrangeira – a Petrobras já investiu 1,5 bilhão de dólares no País do hostil e populista Evo Morales. Se Lula tivesse um pouco mais de sinceridade, teria ido além, dito alto e bom som que o erro estratégico de seu governo, e também de gestões anteriores, foi tornar nossa economia refém de interesses externos. Mas Lula não podia dizer isso, pois ainda insiste em caminhar na corda bamba.
Se não bastasse submeter o Brasil a Evo Morales, agora há o risco de o País ser, em um futuro próximo, refém de Hugo Chávez, por meio da construção do Gasoduto Sul, iniciativa que reúne Argentina, Brasil e Venezuela. Se vingar, o mega-gasoduto anunciado com entusiasmo por Lula terá nove mil quilômetros de extensão e talvez se converta em mais uma resposta na contramão do interesse nacional.
Irresponsabilidade à brasileira – O ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Lafer, declarou que não se pode perder de vista que não tem havido boa-fé – a subjetiva da disposição e a objetiva do comportamento – por parte do governo da Bolívia em relação às obrigações contratadas. “A ocupação militar de unidades da Petrobras, a designação arbitrária de diretores bolivianos para a empresa brasileira, a ameaça de desapropriação de seus bens sem indenização são o exercício de atos unilaterais inamistosos. Representam um sério risco de prejuízo material para o Brasil e constituem um dano moral que compromete nossa política externa na região e no mundo”, afirma Lafer.
Já o economista e ex-ministro Antonio Delfim Netto, em artigo intitulado O medo da Bolívia, publicado na revista Carta Capital (edição no. 396, 17/05/20006), fez a seguinte avaliação da crise do gás: Diante desse passado de 180 anos (esse é o tempo de independência da Bolívia) de acordos secretos, traições, chicanas, tramóias e descumprimentos de contratos é que devemos medir a irresponsabilidade brasileira ao modificar a matriz energética para incluir o gás boliviano. Investimos em um gasoduto de 3 mil quilômetros para colocar boa parte da indústria nacional nas mãos de fornecedor não confiável, analisa Delfim Netto.
Assim, se, em 1993, em lugar de o governo brasileiro assinar contrato de parceria com a Bolívia para a construção do gasoduto e exploração e compra do gás natural tivesse investido na produção interna, hoje, o País teria não só assegurada sua auto-suficiência em petróleo, mas também em relação a esse combustível limpo, seguro e barato.
Pacote de medidas – Tentando correr atrás do tempo perdido, o governo federal lançou um pacote de medidas para buscar tão-somente reduzir a dependência brasileira na área energética. O compromisso da Petrobras de antecipar, para 2008, uma elevação na produção interna de gás natural de 24,2 milhões de metros cúbicos, prevista inicialmente para ocorrer em quatro a seis anos, é uma dessas medidas.
José Sérgio Gabrielli, presidente da estatal petroleira, informou que a produção adicional virá principalmente da Bacia do Espírito Santo, onde recentemente foram descobertas novas reservas de gás natural. A meta é ampliar a oferta na região Sudeste, aumentando a produção dos atuais 15,8 milhões m3/dia para 40 milhões m3/dia.
Esse objetivo poderá ser atingido se dois novos campos de óleo e gás forem explorados no Espírito Santo (1-ESS-164 e 1-ESS-130). A companhia pretende, ainda, aumentar a oferta de gás do campo de Marlim, na Bacia de Campos (RJ), e ampliar a produção em torno do campo de Merluza, na Bacia de Santos (SP).
O Brasil seguramente tem todas as condições de produzir gás natural para atender plenamente à demanda interna, mas desde que invista pesado nas reservas da bacia de Santos, por exemplo, que têm aproximadamente 400 bilhões de m³ de gás e podem produzir 70 milhões de m³/dia, que atenderiam satisfatoriamente às regiões Sudeste e Sul, que, juntas, consomem cerca de 19 milhões de m³ de gás natural por dia. Por sua vez, a bacia de Campos tem reservas com 160 bilhões de m³ de gás natural. A reserva do Espírito Santo tem mais 150 bilhões de m³ de gás.
Vale lembrar que o Brasil importa atualmente cerca de 50% do gás natural que consome – em torno de 45 milhões de metros cúbicos/dia. Os especialistas estimam que o País vai depender de importações por, no mínimo, mais uma década, já que entre a descoberta de um campo de exploração e sua efetiva operação há um período de desenvolvimento e construção que leva entre sete e dez anos.
Desfecho esperado – Lula tem afirmado que a nacionalização das reservas do gás natural boliviano obrigou o Brasil a adotar medidas “arrojadas” na área energética. “Nós resolvemos trabalhar de forma mais arrojada para apresentar à sociedade brasileira a tranqüilidade de que ela precisa para não ficar correndo risco de faltar energia nesse país, como faltou em 2001, com o apagão”, discursou o presidente.
Esse, pelo menos, é o desfecho que a sociedade brasileira espera assistir ao final desse novelão entre hermanos no muy amigos.
Gás natural: os números do Brasil
Geólogos estimam que temos reservas de 800 bilhões de metros cúbicos de gás natural, quantidade suficiente para abastecer o País pelos próximos 50 anos – o estoque supera as reservas da Bolívia, estimadas em 620 bilhões de metros cúbicos. Os especialistas alertam que a falta crônica de investimentos no setor fez que apenas 37,5% das reservas brasileiras tenham sido, até agora, exploradas.
Segundo o diretor-executivo da Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace), Paulo Ludmer, a importância do gás natural em cada etapa do processo industrial e em cada região do País é distinta, mas muitas indústrias são totalmente dependentes do gás natural. “O gás boliviano é responsável pela quase totalidade do produto consumido de São Paulo até o Sul”, enfatiza Ludmer.
Na opinião dele, será necessário estudar cuidadosamente as opções possíveis ao gás natural da Bolívia. “Há saídas, mas todas elas requerem dinheiro e um tempo de transição. Tudo isso diminui a competitividade da economia brasileira no curto prazo”, avalia Ludmer, que é membro do Conselho Mundial de Energia. O presidente da Abrace defende a participação dos consumidores na elaboração de qualquer plano de contingenciamento de gás natural voltado a situações emergenciais.
A indústria é o maior consumidor de gás natural no Brasil. Dados da Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado (Abegás) apontam que, somente em janeiro deste ano, o País consumiu, em média, 42,7 milhões de metros cúbicos de gás por dia – 27 milhões importados da Bolívia. Desse total, o setor industrial consumiu 53,4%.
Os chamados grandes consumidores industriais, a exemplo dos setores vidreiro, siderúrgico e petroquímico, utilizam 40% de todo o gás consumido no país e 25% da energia (parte dela também produzida a partir do gás natural). O faturamento dessas empresas é de cerca de R$ 260 bilhões, o equivalente a 13% do total faturado por todas as empresas do País, 28,8% do total de exportações e 26,5% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro.
A demanda por gás natural é crescente no Brasil e deve dobrar até 2015. A taxa de crescimento mundial é de 20%, mas, no País, chega a 29,9%. A frota nacional movida a gás é de quase 2,5 milhões de veículos.
Petrobras: ordem é diversificar
A Petrobras anunciou que construirá pelo menos três usinas de regaseificação de Gás Natural Liquefeito (GNL) como principal alternativa ao gás natural boliviano. Segundo o diretor financeiro da companhia, Almir Barbassa, estão sendo estudados os locais mais adequados para instalar as usinas, que exigirão, cada qual, um investimento de 100 a 300 milhões de dólares. Essas instalações teriam uma capacidade de processamento de cinco a oito milhões de metros cúbicos por dia.
Por sua vez, Gabrielli informou que a estatal concluiu o desenvolvimento de uma tecnologia, pioneira no mundo, denominada H-Bio, para a produção de óleo diesel vegetal, obtido a partir de sementes como a do óleo de soja, da mamona e da palma. O novo produto será adicionado inicialmente em um percentual de 10% ao óleo diesel vegetal, reduzindo a dependência brasileira do diesel mineral, importado em até 250 mil metros cúbicos por dia. O H-Bio já vem sendo testado na refinaria Gabriel Passos (Regap), em Betim, Minas Gerais.
“É uma quebra de paradigma tecnológico, um avanço extremamente importante, porque introduz o óleo vegetal no processo de refino”, avalia José Sérgio Gabrielli, presidente da Petrobras.
Segundo Gabrielli, o óleo diesel produzido por meio do processo H-Bio tem características de um diesel mineral normal, mas é de melhor qualidade, pois tem mais cetano e menor teor de enxofre, substância poluente.
O Ministério da Agriculturadivulgou que as três refinarias da empresa que passarão a adotar o processo de produção do H-Bio, a partir do ano que vem, em Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul, deverão demandar o uso de cerca de 1,2 milhão de toneladas de soja.
Técnicos da Petrobras têm afirmado que o H-Bio não é um combustível que vai concorrer com o biodiesel, uma vez que eles se complementarão na cadeia logística de distribuição de derivados no País.
Por fim, o governo também revelou que a Petrobras está concluindo testes para permitir que as usinas termelétricas, desenhadas para trabalhar com gás natural, possam utilizar também o álcool, o Gás Liquefeito de Petróleo (gás de cozinha) ou o Gás Natural Liquefeito em suas turbinas.