Por Eduardo Coral Viegas*
O 8º Fórum Mundial da Água, realizado em março, foi o primeiro a acontecer no hemisfério sul. Considerado o maior de todos e um verdadeiro sucesso, contou com mais de 120 mil visitantes de 172 países. O fórum movimentou Brasília e colocou a água no centro da agenda política mundial.
Parece que, por ironia do destino, a capital federal enfrenta uma estiagem dramática, com racionamento desde janeiro de 2017. Embora o corte de água tenha sido suspenso pela companhia estadual (Caesb) nos locais onde ocorriam as atividades do encontro, milhares de participantes sentiram os efeitos da falta de água até quando precisavam tomar banho ao se preparar para ir ao fórum ou quando voltavam cansados após assistirem a inúmeras palestras, interagirem em debates ou conhecerem projetos inovadores apresentados por entidades nacionais e internacionais, públicas, privadas e do terceiro setor.
Em 2021 o fórum retorna ao continente africano, onde tudo começou. O primeiro aconteceu no Marrocos, e o próximo será no Senegal. O país que sediará o 9º Fórum Mundial tem um longo dever de casa a fazer para que sua população tenha universalizado o acesso à água potável e ao serviço de esgotamento sanitário. Estatística divulgada pelo jornal local Lei 360 Afrique aponta que apenas 4% das 400 aldeias do país estão ligadas à rede geral de água[1].
O tema escolhido para a próxima edição não poderia ser mais apropriado: segurança hídrica. Esse assunto deve ser tratado sob dois enfoques. Primeiro, vimos que a falta de água atinge tanto africanos quanto brasileiros, e isso se espalha ao longo do mundo de uma forma geral. Observemos que o Brasil tem cerca de 15% das reservas de água doce do mundo, que Brasília não está situada em local de criticidade hídrica no país — ao contrário do Nordeste, por exemplo —, e mesmo assim a falta de água mudou a rotina dos brasilienses, como pouco tempo atrás igualmente acompanhamos acontecer na região mais populosa do Brasil, o Sudeste.
Além do ângulo quantitativo, atambém deve ser qualitativa. Segundo a ONU, mais de metade dos leitos hospitalares do mundo são ocupados por pacientes com doenças de veiculação hídrica[2]. Então, a preocupação dos gestores não deve ser apenas a de possibilitar de as pessoas terem acesso à água, mas que a água fornecida à população seja de qualidade.
Nesse aspecto, merece destaque relatório da OMS e do Unicef, de 2017, ao apontar que 4,5 bilhões de pessoas carecem de saneamento seguro[3]. Trata-se de dado extremamente significativo, pois seres humanos desprovidos de saneamento básico demandam mais dos serviços de saúde, adoecem e morrem por doenças totalmente evitáveis.
Todos esses assuntos ligados à segurança hídrica foram objeto de ampla discussão no fórum brasileiro e continuarão na pauta dos próximos três anos, pois, de fato, o direito de acesso à água em quantidade suficiente e qualidade adequada é um direito humano universal, reconhecido formalmente pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2010, por meio de sua Resolução 64/292[4].
No tocante à edição brasileira do fórum mundial, uma das novidades foi a participação do Poder Judiciário e do Ministério Público. Durante sua realização, ocorreu a Conferência de Juízes e Promotores, contando com representantes de 57 países que atuam na área ambiental e em causas relacionadas aos recursos hídricos.
Ao final, restaram aprovadas e publicadas as declarações dos juízes[5] e dos membros do Ministério Público[6][7]. Os documentos apresentam considerandos e conclusões semelhantes em vários aspectos, mas cada qual guarda suas peculiaridades e pontos de vista, que, em análise sistemática, são complementares e harmônicos entre si.
A Carta dos Juízes reconhece que os direitos à vida, à saúde e a um padrão de vida adequado são fundamentais para todos os sistemas legais, e que a água é elemento central para a realização desses direitos fundamentais.
Nessa esteira, rememoro a fala do ministro Herman Benjamin, responsável maior pela participação dos magistrados e membros do Ministério Público no fórum, quando realçou que a água é a base, o fundamento da vida. Portanto, a água deve receber, no mínimo, o mesmo tratamento dado pelo direito à defesa da vida.
Ou seja, embora o direito à água não esteja expresso como direito fundamental na Constituição brasileira, implicitamente está consagrado, porquanto associado umbilicalmente ao direito à vida, que é o mais protegido de todos pelos sistemas jurídicos de um modo geral.
Dentre os 10 princípios consagrados pela Carta da Magistratura, coloco em evidência o primeiro, que reforça ser a água um bem de interesse público, devendo o Estado exercer a administração sobre todos os recursos hídricos e protegê-los, em conjunção com suas funções ecológicas associadas, para o benefício das atuais e das futuras gerações, e da comunidade da vida na Terra.
O assunto é extremamente relevante, sobretudo no momento em que as redes sociais viralizaram uma “denúncia” de que o governo federal estaria negociando a privatização do aquífero Guarani com empresas multinacionais engarrafadoras de água mineral. Essa notícia ganhou força durante o fórum, sendo difundida e questionada pela imprensa, que inclusive retratou a suspeita de um discreto encontro entre o presidente Temer e o presidente da Nestlé, Paul Bulcke, para acelerar as negociações[8].
Se existem negociações a respeito da venda de água do aquífero Guarani para transnacionais, não tenho condições de afirmar; me faltam elementos. O Palácio do Planalto nega qualquer tipo de tratativas nesse sentido[9]. Porém, é fato que as engarrafadoras de água mineral, tanto estrangeiras quanto nacionais[10], já exploram o aquífero, e o fazem com autorização estatal.
Embora se reconheça um domínio cada vez maior das águas minerais brasileiras por multinacionais, isso não significa dizer, do ponto de vista jurídico, que elas sejam proprietárias de nossos mananciais, porquanto a Constituição brasileira concede exclusivamente à União (artigo 20, III e IX) e aos estados (artigo 26, I) o domínio dos recursos hídricos.
No entanto, existem outras formas de a iniciativa privada se apropriar das águas nacionais sem que haja um título de propriedade em seu favor. Uma diz respeito à privatização do setor do saneamento básico, possível no Brasil mediante concessões públicas, ao contrário do que preveem outros países, como o Uruguai. Outra consiste na concentração da água denominada “mineral” (que abrange a potável de mesa) em poder de grandes conglomerados econômicos.
Além disso, há iniciativas no Congresso Nacional que buscam regulamentar e fortalecer o conceito de água como commodity. Podemos citar como exemplo o PL 495/2017, de autoria do senador Tasso Jereissati, que propõe a alteração da Lei 9.433/97 (Lei das Águas) para inclusão dos “mercados de água” como instrumento da política nacional de recursos hídricos, ao lado dos planos de bacia, outorga e cobrança.
Pelo projeto, fica autorizada a “cessão onerosa dos direitos de uso de recursos hídricos entre usuários da mesma bacia ou sub-bacia hidrográfica” (artigo 7º), o que consiste, fundamentalmente, na venda de água entre particulares. Atualmente, a lei que se pretende ver alterada proíbe esse tipo de “negócio”, afirmando expressamente serem as águas inalienáveis (artigo 18 da Lei 9.433/97).
Iniciativas como essa vêm na contramão do que se busca alcançar em matéria de gestão hídrica mundial. Nesse passo, destaco o princípio 4 da Declaração do Ministério Público sobre o Direito à Água — aprovada no 8º Fórum —, segundo o qual a disponibilidade de água deve ser contínua, suficiente, segura, com qualidade aceitável, utilização de instalações físicas acessíveis e preços razoáveis para todos.
A base da afirmação desses direitos pode ser encontrada no princípio 1 da mesma carta: “O Direito Humano à Água e ao saneamento deve ser reconhecido e aplicado em sua máxima efetividade por todas as esferas públicas e privadas de Poder…”.
Conjugando as declarações dos juízes e membros do MP, verificamos a importância de a água ser um bem de domínio público, e que seu acesso seja afirmado como direito humano fundamental. A CF respalda tais entendimentos e assegura que condutas tendentes a priorizar o valor econômico da água em detrimento de sua função social sejam coibidas pelo Direito.
O último dos 10 princípios da Carta do MP é intitulado “Água e acesso à Justiça”, e nele consta o dever de o MP zelar “pela prioridade e celeridade no andamento dos processos judiciais que envolvam discussões sobre Água”. Esse dever, obviamente, é de todos os stakeholders envolvidos de alguma forma no processo de gestão hídrica.
Durante seu pronunciamento perante os juízes e promotores, a procuradora-geral da República e presidente do Conselho Nacional do Ministério Público, Raquel Dodge, afirmou que precisamos de justiça como precisamos de água.
A correlação não poderia ser mais apropriada. Poderíamos muito bem substituir, no princípio 4 acima destacado, que a disponibilidade de justiça deve ser contínua, suficiente, segura, com qualidade aceitável e a preços razoáveis para todos.
De fato, não podemos ter acesso à água ou à justiça eventualmente, de forma insuficiente, sem a devida segurança hídrica ou jurídica, com baixa qualidade ou a custos somente suportáveis pelos mais afortunados. Sem água ou sem justiça, não temos saúde, vida ou dignidade para viver.
Enfim, em um momento em que a Justiça brasileira está em crise, que não resguarda adequadamente o princípio da segurança jurídica[11], que não raras vezes é tardia e, portanto, inefetiva[12], devemos lutar para que um assunto tão relevante, como o direito de acesso à água, seja tratado de forma prioritária nas vias judiciais e extrajudiciais, sob pena de continuarmos a assistir ao incremento das nefastas estatísticas de doenças e mortes por problemas de veiculação hídrica, tal como acontecia na Idade Média, quando 1/3 da população europeia foi dizimada pela peste negra.
[1] <https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/forum-mundial-da-agua-no-senegal-conheca-o-pais-que-sediara-evento-em-2021.ghtml>. Acesso em 30.mar.2018.
[2] <http://www.estadao.com.br/noticias/geral,agua-contaminada-mata-mais-do-que-guerras-diz-onu,527749>. Acesso em 30.mar.2018.
[3] <https://nacoesunidas.org/onu-45-bilhoes-de-pessoas-nao-dispoem-de-saneamento-seguro-no-mundo/>. Acesso em 30.mar.2018.
[4] <http://www.un.org/es/comun/docs/?symbol=A/RES/64/292>. Acesso em 30.mar.2018.
[5] <https://www.iucn.org/sites/dev/files/content/documents/brasilia_declaration_of_judges_on_water_justice_21_march_2018_final_as_approved.pdf>. Acesso em 30.mar.2018.
[6] <http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/Declaracao_do_Ministerio_Publico.pdf>. Acesso em 30.mar.2018.
[7] <https://nacoesunidas.org/juizes-e-promotores-aprovam-em-brasilia-compromisso-para-proteger-direito-a-agua-e-ao-saneamento/>. Acesso em 30.mar.2018.
[8] <http://www.bbc.com/portuguese/brasil-43164069>. Acesso em 30.mar.2018.
[9] <https://noticias.uol.com.br/confere/ultimas-noticias/2018/03/22/governo-negocia-privatizacao-do-aquifero-guarani-com-multinacionais.htm>. Acesso em 30.mar.2018.
[10] <http://www.fruki.com.br/marcas_e_produtos/Agua_da_pedra/detalhes_produto/7>. Acesso em 3.abr.2018.
[11] O maior exemplo vem do STF, que nos últimos tempos decide as causas mais relevantes da sociedade brasileira com o placar de 6 x 5, deixando vidas e direitos fundamentais à “sorte” da composição daquele momento da corte maior do país.
[12] Nas palavras de Ruy Barbosa, “justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”.
*Eduardo Coral Viegas é promotor de Justiça no MP-RS, graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Civil e mestre em Direito Ambiental. Foi professor de graduação universitária e atualmente ministra aulas em cursos de pós-graduação e extensão. Integra a Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente. É autor dos livros Visão Jurídica da Água e Gestão da Água e Princípios Ambientais.
Fonte: Conjur